José de Matos-Cruz



IMAGINÁRiO319
· 16 ABR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004

PRONTUÁRiO

INVASÕES



A vertente histórica, com características pedagógicas de reflexão ou testemunho, continua a ser, em quadradinhos, uma das alternativas mais aliciantes e populares, conjugando a expectativa de empresas e criadores, ao interesse das instituições e dos leitores de todas as idades. Argumentista e ilustrador, prestigiado - sob chancela de Âncora Editora - na revisão de ocorrências do passado, recente ou remoto, através do perfil dos seus eventuais protagonistas, ou das ocorrências mais relevantes, José Pires concretiza outras propostas de revitalização, em incidências comunitárias e implicações primordiais: eis A Batalha do Bussaco - A Derrota Fatal dos Marechais de Napoleão Bonaparte, com o patrocínio da Câmara Municipal da Mealhada e celebrando 200 Anos - 1810-2001 - Batalha do Bussaco. Testemunhando os desafios singulares e os ideais colectivos, os agravos e os desafios, os desaires e o heroísmo, com escrúpulo minucioso e incidência épica, José Pires atribui à figuração narrativa uma componente interactiva, da função pedagógica e ao entretenimento virtual.
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CALENDÁRiO

19JUN-19SET2010 - No Museu da Electricidade, Fundação EDP apresenta Povo / People - exposição no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República, sendo comissários José Manuel dos Santos, José Neves, Diana Andringa e João Pinharanda. IMAG.301-303-304-311-312-317

23JUL-06OUT2010 - No Torreão Nascente do Terreiro do Paço, Turismo de Portugal expõe Viajar. Viajantes e Turistas à Descoberta de Portugal No Tempo da I República - no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República, sendo comissárias Cátia Carvalho, Maria Inez Queiroz e Paula Meireles.
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26JUL-14NOV2010 - No Centro Cultural de Belém/CCB, Museu Colecção Berardo apresenta Warhol Tv -  em exposição, sendo curadora Judith Benhamou-Huet, a produção televisiva de Andy Warhol (1928-1987) entre 1979 e 1987.
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1954-29JUL2010 - António Feio: «É óbvio que eu vou morrer, mas isso todos vamos… O que me assusta não é a morte, é viver mal a vida. Há um ano, eu era uma pessoa diferente» (2010). IMAG.76-113

1914-30JUL2010 - Giovanna Cecchi, aliás Suso Cecchi D’Amico: Argumentista do cinema italiano, colaboradora de Luchino Visconti, Vittorio De Sica ou Michelangelo Antonioni - «Não terminou apenas uma era do cinema italiano, e do romano em particular... É também o fim de um certo modo de entender o mister do cinema elevado a arte» (La Repubblica).

30JUL2010 - No concelho de Vila Nova do Foz Côa, é inaugurado o Museu do Côa - com projecto dos arquitectos Tiago Pimentel e Camilo Rebelo, e cujo investimento rondou os dezoito milhões de euros - a ser gerido pela Fundação Côa Parque, com o objectivo de divulgar e contextualizar as gravuras e achados do Parque Arqueológico do Vale do Côa, classificado pela UNESCO como Património da Humanidade em DEZ1998.

1928-04AGO2010 - Rolando Alves: Actor português do teatro e do cinema - revelado na tela em O Dinheiro dos Pobres (1954 - Artur Semedo), e em palco no Apolo com D. Beltrão de Figueiroa (Júlio Dantas) em 1956.

05AGO2010 - Bosque Secreto estreia Inimigo Sem Rosto de José Farinha; com Maria João Bastos e Paulo Nery.

MEMÓRiA

18ABR1901-1948 - Bento de Jesus Caraça: «Não foi um investigador, isto é, não foi um criador de ciência. E como poderia sê-lo, tendo sido nomeado assistente aos 18 anos (!) e professor catedrático aos 28, numa Escola da Universidade Técnica, onde grande parte da massa discente entrava com uma preparação deficientíssima em matemática? O que devemos admirar, sim, é o seu esforço de autodidacta, as suas invulgares qualidades de trabalho, de que as Lições de Álgebra e Análise são um dos frutos. E sinto-me inclinado a admitir que, sob esse aspecto, a sua actividade foi realmente criadora; isto é, sou levado a pensar que Bento Caraça criou, efectivamente, um estilo de ensino da matemática, de que eu próprio sou beneficiário» (José Sebastião e Silva - 1968). IMAG.224

1804-19ABR1881 - Benjamin Disraeli: «Nenhum Governo pode ser sólido por muito tempo, se não tiver uma oposição temível».

1660-21ABR1731 - Daniel Defoe: «Nem os melhores homens logram alterar o seu destino: os bons morrem cedo, os maus tardiamente». IMAG.6-191-259

23ABR1891-1953 - Serguei Sergueievitch Prokofiev: «A minha mãe explicou-me que ninguém poderia compor uma rapsódia de Liszt, porque o próprio Liszt já a tinha composto… Os ensinamentos da minha mãe deram-me a mais sistemática explanação dos princípios da notação musical» (1937). IMAG.117-284

VISTORiA


Em Legítima Defesa

Certo fidalgo, senhor de uma avultada fortuna, casou com uma dama, também de bons cabedais, de quem teve um filho e uma filha apenas, após o que anos passados, ela se finou. Em breve contraiu segundas núpcias; e a nova esposa, posto que de mais baixa condição e de menores haveres que a primeira, tomou a peito aborrecer e maltratar os filhos que ele tivera da outra mulher, o que causou a desarmonia da família, tanto no que respeita às crianças como no que toca ao próprio pai.

O primeiro resultado de tal comportamento da madrasta no seio da família coube ao filho. Mal principiou a sentir-se homem, pediu ao pai que o deixasse viajar por terras estranhas. A madrasta, conquanto desejasse ver-se livre dele, como o jovem precisava de uma soma considerável para se manter no estrangeiro, opôs-se violentamente, fazendo com que o pai o não deixasse partir, depois de lhe ter dado autorização.

Tão arreliado ficou o rapaz que, depois de haver renovado o seu pedido ao pai, com todo o respeito, quer directamente quer por intermédio de alguns parentes, sem ter conseguido o seu intento, encorajado por um tio, irmão da sua mãe, primeira mulher do pai, resolveu partir de casa sem licença. E, se bem o pensou, melhor o fez.

Por que parte do mundo viajou, não me recordo. Parece que o pai se manteve em contacto com ele por algum tempo, e em condições de lhe fazer chegar às mãos uma razoável pensão, a qual o rapaz mandava receber por meio de cartas de crédito, regularmente pagas. Mas, algum tempo depois, governando a casa a madrasta, uma dessas cartas foi recusada e, depois de protestada, devolvida sem ser aceite. Após o que não mandou mais nenhuma nem nunca mais escreveu, e o pai nunca mais ouviu falar dele durante quatro anos, pouco mais ou menos.

Desse longo silêncio, tirou a madrasta vários benefícios. Primeiro, começou por querer convencer o marido de que, tendo o rapaz necessariamente morrido, os bens dele deviam ser dispostos a favor do mais velho dos filhos dela (pois ela tinha vários filhos). O pai opôs-se firmemente a essa proposta, mas a mulher continuou a acossá-lo com questões inoportunas.

E eram dois os argumentos contra ele, isto é, por outras palavras, contra o filho.

Primeiro, se ele tivesse morrido, não havia lugar para objecções, pois o filho dela era o herdeiro legítimo.

Segundo, se ele não tivesse morrido, o seu comportamento para com o pai, a quem não escrevia há muito, era indesculpável, e este devia estar ressentido, e proceder como se o filho tivesse morrido... Que nada tão legitimamente o podia desobrigar e que, portanto, ele, seu pai, devia proceder como se ele, seu filho, estivesse morto, e tratá-lo em conformidade, porque quem procedia assim para com o próprio pai como morto, devia – quanto às suas relações filiais – ser considerado e ser tratado como merecia.  

Daniel Defoe

ANTIQUÁRiO

16ABR1581 - Nas Cortes de Tomar, representantes do clero, da nobreza e do povo reconhecem Filipe II (1527-1598) de Espanha como rei legítimo de Portugal, tendo tomado o título de Filipe I. Filho de D. Isabel de Portugal e do imperador Carlos V, tendo assegurado apoios através de Cristóvão de Moura, e vencido D. António o Prior do Crato na Batalha de Alcântara (1580) pelo Duque de Alba, Oliveira Martins atribuiu-lhe sobre o reino, com o qual pela primeira vez toda a Península Ibérica ficava reunida sob a mesma coroa: «Herdei-o, comprei-o, conquistei-o!».
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PARLATÓRIO

As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir, perdidos são aqueles períodos da história em que os melhores, gastos e cansados, se retiram da luta, sem enxergarem no horizonte nada a que se entreguem, caída uma sombra uniforme sobre o pântano estéril da vida sem formas.
Bento de Jesus Caraça

BREVIÁRiO

Vitamina Bd edita Vassya - A Herança de Bois-Maury de Yves H. (argumento) & Hermann (ilustração).

Cavalo de Ferro edita O Tesouro de Selma Lagerlöf (1858-1940); tradução de Liliete Martins. IMAG.203-204-267

Harmonia Mundi edita em CD, Gabriel Fauré [1845-1924]: Quartetos Com Piano por Trio Wanderer com o pianista Antoine Tamestit.

Relógio d’Água edita O Homem Que Era Quinta-Feira de G.K. Chesterton (1874-1936); tradução de Miguel Serras Pereira.

EXTRAORDINÁRiO

OS SOBRENATURAIS\
Folhetim Aperiódico

 ARRANCA DO PEITO ESSE FUROR
QUE TE EXPÕE, FERA E FELINA - 3

 Dolorida, contaminada.

Em vão, Leónia tentou um vómito que a libertasse daquele incómodo, acabando por afastar-se, sorrateira, do local ermo até à beira de Fafe. Tocava o ventre como se, no desconforto, o amaciasse, ao transpor o umbral da sua casa. Ainda a tempo de esgueirar-se, enquanto a madrugada ia avançando - a noite em transe, entre os primeiros laivos de luz num céu de nuvens plúmbeas.

- Foste lá fora ver se chovia? - perguntou-lhe a mãe, entre ensonada e irónica, meio erguida na cama que partilhavam.

Não dava para ver até onde ia a insinuação, nem Leónia se importava muito. Tinha mais com que se ralar. Aliás, nem sabia, naquela solitária relação de duas fêmeas crispadas, em que coabitavam, até que ponto a velha não lhe teria pegado a monstruosa depravação de que era maldita e fruidora.

Por isso, e silenciosa, Leónia apenas se deitou como de costume - ao contrário, com a cabeça para os pés de Cacilda.  

Continua  


  

IMAGINÁRiO318

· 08 ABR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

MÁSCARAS


Em princípios da década de 50, no século passado, mais precisamente ao sétimo filme, Cega Paixão / On Dangerous Ground (1951), a carreira do realizador Nicholas Ray (1911-1979) atingia um ponto culminante. Tinha, então, quarenta anos. Antigo estudante de arquitectura, actor e encenador teatral, assistente de Elia Kazan, com trabalho na televisão, Ray estreou-se como cineasta com Os Filhos da Noite (1948) - um testemunho vibrante, incontornável, quanto ao talento e ao carácter de um criador, em seu enquadramento actual ou futuro no reino de Hollywood. Estigmatizando toda a sua obra com peculiares estímulo e estilo, Ray entranha Cega Paixão de uma virtualidade narrativa, de uma intensa expressão e maturidade. Tal veemência magistral persistiria, com certa regularidade, algo mais de um decénio - alvo de críticas e de controvérsias mas suscitando, sintomaticamente, um culto primordial. A partir de 55 Dias em Pequim (1963), porém, considerado «intratável», Ray rompeu em definitivo com os grandes estúdios. Prosseguiu uma actividade escassa, marginalizada e experimentalista, que celebrou a aura de um autor maldito. Significativamente, sem fenómeno crepuscular - e, todavia, uma fantomática ressurreição sagrar-se-ia com Lightning Over Water (1979), em que filmou a sua própria morte, pela dedicação de Wim Wenders. IMAG.19-52-127-228-231-281

CALENDÁRiO

23JUL-26SET2010 - Centro de Arte Moderna/CAM da Fundação Calouste Gulbenkian expõe Menina Limpa, Menina Suja de Ana Vidigal, sendo curadora Isabel Carlos.

30JUL-10OUT2010 - No Centro Cultural de Cascais, Fundação D. Luís I apresenta Roteiro Para Uma Cave Em Chamas, exposição colectiva de Ana Viana, António Paulo, Francisco Condessa, Gila, Manuel Álvaro e Miguel Brazete.

MEMÓRiA

1892-08ABR1981 - Elvira Velez: «O drama, a tragédia, a comédia, a farsa, a revista, a opereta, em mais de um milhar de obras representadas em que participou, sempre a Elvira Velez expressou o seu talento de grande intérprete, de profissional exemplar, de dádiva total ao público que sempre a aplaudiu muito carinhosamente» (Igrejas Caeiro).

09ABR1821-1867 - Charles Baudelaire: «Odeio do oceano as iras e os tumultos, / Que retratam minh'alma! O riso singular / E o amargo do infeliz, misto de pranto e insultos, / É um riso semelhante ao do soturno mar» (Obsessão - excerto). IMAG.44-69-144

1753-11ABR1801 - Antoine de Rivarol: «Quando se quer agradar a toda a gente, há que fazer de conta que se aprendem coisas que já se sabem, ensinadas por gente que as ignora».

ANTIQUÁRiO

12ABR1961 - Iurin Gagarin concretiza a primeira viagem do Homem no espaço, inaugurando as missões tripuladas pela União Soviética através do Programa Vostok. IMAG.131

14ABR1951 - O ABC Cine-Clube de Lisboa realiza a sua primeira sessão cinematográfica, após a fundação em 1950.

VISTORiA

Tédio

Tenho as recordações d'um velho milenário!

Um grande contador, um prodigioso armário,
Cheiinho, a abarrotar, de cartas memoriais,
Bilhetinhos de amor, recibos, madrigais,
Mais segredos não tem do que eu na mente abrigo.
Meu cer'bro faz lembrar descomunal jazigo;
Nem a vala comum encerra tanto morto!

– Eu sou um cemitério estranho, sem conforto,
Onde vermes aos mil – remorsos doloridos,
Atacam de pref'rência os meus mortos queridos.
Eu sou um toucador, com rosas desbotadas,
Onde jazem no chão as modas desprezadas,
E onde, sós, tristemente, os quadros de Boucher
Fruem o doce olor d'um frasco de Gellé.

Nada pode igualar os dias tormentosos
Em que, sob a pressão de invernos rigorosos,
O Tédio, fruto inf'liz da incuriosidade,
Alcança as proporções da Imortalidade.

– Desde hoje, não és mais, ó matéria vivente,
Do que granito envolto em terror inconsciente.
A emergir d'um Saarah movediço, brumoso!
Velha esfinge que dorme um sono misterioso,
Esquecida, ignorada, e cuja face fria
Só brilha quando o Sol dá a boa-noite ao dia!

Charles Baudelaire - As Flores do Mal (1857)
(Tradução de Delfim Guimarães)

COMENTÁRiO


Mitos ou mistificações, tensões ou abrangências recortam uma abordagem radical, embora recorrente, sobre a intervenção e a postura de Nicholas Ray ante Hollywood - ou seja, pois, entre o cinema e a América... Baseado em novela de Gerald Butler, A.I. Bezzerides elaborou o argumento de Cega Paixão / On Dangerous Ground (1951) sob os auspícios do film noir - afinal convertendo, em termos dramáticos, uma pronunciada viragem pelo itinerário cénico e geográfico da acção, numa inversão simbólica, ritual, quanto aos valores e implicações do (anti)herói, qual desígnio existencial de redenção. Como se, assim mesmo, se representasse a própria dissensão ontológica de Ray - entre o clímax de violência e a crise espiritual. Tal como se Jim Wilson, um polícia de Nova Iorque obsessivo e hostil, subjugado pela náusea da grande cidade, perversa e viciada, se assumisse na dimensão trágica, essencial, duma demolição profissional. Acusado de brutalidade pelo superior, Wilson é enviado para uma localidade do Alasca, Westham Junction, onde precisam de um detective na secção de homicídios. Em causa, está o esquivo assassino de uma jovem. As pistas levam-no até uma casa isolada pela neve nas montanhas. Ali vive Mary Malden, uma mulher solitária, serena, bela... e cega. Talvez ela esteja a proteger o criminoso. Wilson sente-se intrigado e atraído.

A par com a fractura dimensional de Wilson, Mary - desolada, imaculada - é o signo magnificente da paisagem, que a fotografia de George E. Diskant transfigura, lírica, qual natureza anímica e resgatadora. Assim reintegrando, iluminando também o seu mundo de sombras, depressivo, em relação a Wilson - que por fim, após um clímax expiatório da aventura, desiste de ir-se embora e volta para junto de Mary, reencontrando-se pois. Ao conjugar uma tal assimilação essencial, em contraste com o choque emotivo, a pulsação das sensações, sobressai o envolvimento musical de Bernard Herrmann. Marcando ou sublimando atmosferas, definindo o processo controlado de Nicholas Ray sobre esta Cega Paixão - pelo desempenho de nervo que Robert Ryan consuma, subjugado à sóbria veemência por Ida Lupino. Ambos logo contracenarão em Beware, My Lovely (1952 - Harry Horner), porém sem o fascínio quebrantado de uma Cega Paixão - incompletos em si, indivisos na inquietude que os abala, mas partilhando-se desde a angústia interior para uma salvação íntima. Ele da agonia na noite, ela que vivia a noite, unidos e revelando o amanhecer do amor no inverno dos corações - essa alvura que é chegar ao dia, da mais profunda travessia de um terreno perigoso.

BREVIÁRiO

Editorial Presença lança A Pousada da Jamaica de Daphne du Maurier (1907-1989). IMAG.241-251











Universal edita em CD, sob chancela Archiv, Giovanni Battista Pergolesi [1710-1736]: Missa S. Emidio por Veronica Cangemi, Rachel Harnisch, Teresa Romano e Sara Mingardo com Orchestra Mozart, sob a direcção de Cláudio Abbado. IMAG.296

Antígona edita Livros & Cigarros de George Orwell (1903-1950); tradução de Paulo Faria. IMAG.170-205-212-222-259-313

EMI Classics edita em CD, Giuseppe Verdi [1813-1901] - Messa da Requiem por Anja Harteros e Rolando Villazón, com Coro e Orquestra da Accademia Nazionale di Santa Cecília, sob a direcção de Antonio Pappano.
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Quidnovi edita As Missões: Bandeirantes, Jesuítas e Guaranis de Miguel Real; ilustrações de Graça Morais. IMAG.65-68-139-305

INVENTÁRiO


ELVIRA VELEZ E O CINEMA

Falecida aos oitenta e oito anos de idade, Elvira Velez contracenou, para o grande ecrã e durante um quarto de século, com outros dos maiores artistas portugueses, tendo-nos legado algumas das mais notáveis composições secundárias - em que o nosso cinema é característico, e que constituem um dos elementos primordiais de atracção popular. Natural, exuberante, ou intensa, contida, ela personificava, com talento e desenvoltura, um temperamento propício ao seu tipo físico, sublinhado pela inimitável entoação de voz. E, se as primeiras intervenções físicas foram decisivas, para a consagração de uma carreira, os derradeiros contributos correspondem, prestigiosamente, ao culminar de um género que fez tradição e logrou culto, entre nós. Já retirada destas lides, por 1964, aguardava ainda com expectativa a hipótese de nova participação, desde que não a obrigassem «a dançar o twist», e julgando que «as nossas fitas já saíram do marasmo». Não se considerava cómica, mas sim «uma actriz», apontando como explicações para o êxito: «dignidade artística, sentido de profissionalismo, apego às plateias e um pouquinho de sorte». A sua diversão favorita era o cinema, sendo fã de Katharine Hepburn, Spencer Tracy, Melvyn Douglas e Ingrid Bergman. Nunca esqueceu um abraço de Alves da Cunha, durante a rodagem de Duas Causas (1952), pois ficou com uma costela quebrada. Quando lhe perguntavam qual a melhor criação, invariavelmente respondia: «A minha filha Irene!»

EXTRAORDINÁRiO

OS SOBRENATURAIS
Folhetim Aperiódico

 ARRANCA DO PEITO ESSE FUROR
QUE TE EXPÕE, FERA E FELINA - 2

 Além da bruma densa que castrava o olhar furtivo de Leónia, o espesso matagal permitia-lhe escapar a qualquer assalto de surpresa ou curiosidade. Compôs-se, pois, com os andrajos esfarrapados que lhe restavam, disfarçando a loba ávida sob uma felina sensualidade, que lhe era tão natural.

Depois, Leónia suspirou. Estava já inteiramente refeita, equilibrada pela sua transcendência. E predisposta à normalidade, como outrora lhe tinha acontecido. Só que, desta vez, o instinto turbilhava nela emoções contraditórias, como se frustrasse a plena consumação da mulher incompleta.

 Desta vez, algo da voraz caçada impregnara a mutação primordial. Não era pânico ou agonia, antes uma inquietação que lhe dilacerasse as vísceras, até se entranhar na própria consciência de Leónia.

– Continua   


 

IMAGINÁRiO317
· 01 ABR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

RESSURREIÇÃO


O acontecimento mais importante da banda desenhada europeia, desde que Tintin e o Capitão Haddock desceram na Lua, consuma-se enfim em Portugal, com o amplo lançamento d’As Aventuras de Tintin e Milu sob chancela Asa, em novo formato e com nova tradução. Os doze primeiros títulos estarão disponíveis em 2010, e outros vinte e quatro em 2011, privilegiando-se desde já As Aventuras de Tintin Repórter do “Petit Vingtième” No País dos Sovietes. Oitenta anos depois, assim voltamos ao princípio - pois foi em 10 de Janeiro de 1929, nas páginas daquele suplemento juvenil do jornal Le Vingtième Siècle, que tudo começou, semanalmente, para o audaz mancebo e herói. O respectivo álbum saiu logo no ano seguinte e, tornando-se politicamente incorrecto, nunca foi redesenhado ou colorido. Então e aí aparece, também, o fiel Milu... Primitivo ou moderno, sempre irresistível, superando as contingências culturais e históricas, Tintin fascina os velhos fanáticos e envolve as novas gerações. Para além da narrativa exuberante, de uma escrita rigorosa, sugestivamente enquadrada pelo estilo de Hergé - aliás, Georges Prosper Remi (1907-1983) - expõe-se uma saga universalista, entre drama e euforia, tragédia e resgate, em que a camaradagem sobrevive, paralelamente aos valores do bem e do mal. IMAG. 131-136-210-217-245-250-252

CALENDÁRiO

1923-05JUL2010 - Cesare Siepi: Cantor lírico italiano, basso, famoso pela representação de Don Giovanni de Mozart - «A sua voz é ouro puro» (Giulietta Simionatta).

1935-15JUL2010 - Hank Cochran: Compositor de música country, autor de I Fall To Pieces e Make the World Go Away, promoveu Willie Nelson, entrando para o Hall da Fama de Nashville em 1974.

27JUL2010 - ZON Lusomundo estreia Contraluz/Backlight de Fernando Fragata; com Joaquim de Almeida e Michelle Mania. IMAG.17-48

27JUL2010 - Ecofilmes estreia Lucky Luke de James Huth; sobre o herói de banda desenhada concebido por Maurice de Bevère, aliás Morris (1923-2001), sendo protagonista Jean Dujardin. IMAG.5-15-23-34-61-94-114-135-211-249-257

27JUL-05SET2010 - Museu Nacional do Teatro apresenta, na Galeria de Exposições Temporárias, os trabalhos a concurso à II Bienal de Humor Luiz d’Oliveira Guimarães - Penela 2010, tendo como tema O Teatro, em produção Humorgrafe.

22OUT-07NOV2010 - O 21º Festival Internacional de Banda Desenhada da Amadora - Amadora Bd apresenta como exposição central, no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República, A I República Na Génese da Banda Desenhada e No Olhar do Século XXI, antes patente no Centro Nacional de Banda Desenhada e Imagem/CNBDI e de vocação itinerante, com cinco temas fundamentais: A 1ª República e a Amadora (João Castela Cravo), A Caricatura Modernista e a 1ª República (Osvaldo de Sousa), O Primeiro Filme de Animação Português (Paulo Cambraia), A Génese da Moderna Banda Desenhada Portuguesa e A 1ª República Na Banda Desenhada Portuguesa Contemporânea (João Paulo de Paiva Boléo). IMAG.301-303-304-311-312

MEMÓRiA

29FER1891-1982 - Alfredo Rodrigo Duarte, aliás Alfredo Marceneiro: «Quando eles não valem nada / Não se ganha em discutir / Não é bom servir de escada / Para qualquer asno subir // Há gente que só diz mal / Para se impor, para ser notada / Quem discute menos vale /Quando eles não valem nada» (Conceito - excerto). IMAG.175-261

1882-06ABR1971 - Igor Stravinsky: «Sinto uma espécie de terror quando, ao começar a trabalhar, me encontro perante a infinitude de imagens que me surge, e compreendo que tudo me é permitido. Mas, se tudo me é permitido, seja o melhor ou o pior, se nada me oferece resistência, então o meu esforço não tem sentido e não existe nada em que me possa apoiar; consequentemente, toda a tentativa me aparece como fútil».
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1883-10ABR1931 - Khalil Gibran: «A verdade de outra pessoa não está no que ela revela, mas naquilo que não pode desvendar. Portanto, se quiseres compreendê-la, não escutes o que ela diz, mas antes, o que ela não exprime».

ANTIQUÁRiO

07ABR1921 - É lançado o jornal Diário de Lisboa, sendo fundador Joaquim Manso; o último número foi publicado em 30NOV1990, sendo director A. Ruella Ramos. Entre jornalistas e colaboradores, sobressaem Fernando Pessoa, Norberto Lopes, Rogério Perez, Norberto de Araújo, António Lopes Ribeiro, Pedro Alvim, Ernesto Sampaio, Álvaro Salema, João César Monteiro, Fernando Assis Pacheco, Rogério Rodrigues, Mário Castrim, António Ramos Rosa, Rodrigues da Silva, Acácio Barradas e Neves de Sousa.

VISTORiA


Do Primeiro Olhar

É aquele momento em que a Vida passa da sonolência para a alvorada. É a primeira chama que ilumina o íntimo mais profundo do coração. É a primeira nota mágica arrancada das cordas de prata do sentimento. É aquele momento instantâneo em que se abrem diante da alma as crónicas do Tempo, e se revelam ao olhar as proezas da noite, e as vozes da consciência. Ele abre os segredos da Eternidade para o futuro. É a semente lançada por Ishtar, deusa do Amor, e espargida pelos olhos do ser amado na paisagem do Amor, depois regada e cuidada pela afeição, e finalmente colhida pela alma.
O primeiro olhar vindo dos olhos do ser amado é como o espírito que se movia sobre a face das águas e deu origem ao céu e à terra, quando o Senhor sentenciou: «E agora, vivei!»

Khalil Gibran - A Voz do Mestre




Quanto à cultura, uma espécie de pedagogia do berço que na esfera social confere brilho à educação, mantém e completa a instrução académica. Esta educação do berço é justamente importante na esfera do gosto e é essencial ao criador, que deve incansavelmente educar o seu gosto ou correr o risco de perder a sua perspicácia. O nosso espírito, assim como o nosso corpo, requer um exercício contínuo. Fica atrofiado se não o cultivarmos.
É a cultura que traz à luz o valor completo do gosto e lhe dá a oportunidade de provar o seu valor simplesmente pela sua aplicação. O artista impõe uma cultura sobre si próprio e termina por impô-la aos outros. É desta maneira que se estabelece a tradição.
A tradição é completamente diferente do hábito, mesmo dum hábito excelente, porquanto o hábito é, por definição, uma aquisição inconsciente e tende a tornar-se mecânico, ao passo que a tradição resulta duma aceitação consciente e deliberada. Uma tradição verdadeira não é a relíquia de um passado irremediavelmente desaparecido; é uma força viva que anima e nos informa do presente... Longe de implicar a repetição daquilo que foi, a tradição pressupõe a realidade daquilo que tolera. Surge-nos como uma herança, um legado que se recebe com a condição de o fazer frutificar, antes de o passar para os nossos filhos.

Igor Stravinsky - A Poética da Música
(excerto - 1947)

NOTICIÁRiO


Diário de Lisboa
Renasce em Sintra

A colecção completa e encadernada do jornal Diário de Lisboa é entregue hoje, na Biblioteca Municipal de Sintra, pela família Ruella Ramos, proprietária do jornal, ao Presidente da Câmara Municipal de Sintra. A colecção fica assim disponível para consulta pública.
08FEV2007 - Diário de Notícias

BREVIÁRiO

Imprensa Nacional-Casa da Moeda edita Livro do Desassossego de Fernando Pessoa (1888-1935); edição de Jerónimo Pizarro. LIMAG.26-28-64-82-105-130-131-157-182-187-196-207-211-233-236-264-280-297-307

Cavalo de Ferro edita O Gerânio - Contos Dispersos de Flannery O’Connor (1925-1964); tradução de Luís Coimbra. IMAG. 55-179-229

Universal edita em CD, sob chancela Deutsche Grammophon, Pierre Boulez Conducts [Igor] Stravinsky [1882-1971]; com Filarmónica de Berlim, Orquestra de Cleveland e Ensemble Intercontemporain.

Harmonia Mundi edita em DVD, sob chancela BelAir, Igor Stravinsky [1882-1971] and the Ballets Russes: «The Firebird», «Le Sacré du Printemps» por Ekaterina Kondaurova e Ilya Kuznetsov, com Marlinsky Orchestra and Ballet, sob a direcção de Valery Gergiev.

Edições 70 lança Nascimento da Biopolítica de Michel Foucault (1926-1984); tradução de Pedro Elói Duarte. IMAG.102

Dinalivro edita Contos de [Edgar Allan] Poe (1809-1849) de Denise Despeyroux (argumento) e Miguel Serratosa (ilustração).
IMAG.17-29-66-129-211-244-252-254

EMI edita em DVD, sob chancela Virgin, Gaetano Donizetti [1797-1848]: L’Elisir d’Amore por Rolando Villazón e Maria Bayo, com Orquestra Sinfónica e Coro do Gran Teatre del Liceu, sob a direcção de Daniele Callegari. IMAG.156-297

Presença edita O Coração É Um Caçador Solitário de Carson McCullers (1917-1967); tradução de Marta Mendonça.

Universal edita em CD, sob chancela Decca, The Farwell Concerts pelo pianista Alfred Brendel, com Wiener Philharmoniker, sob a direcção de Sir Charles Mackerras.

Dom Quixote edita Antologia Poética de Mário de Sá Carneiro (1890-1916); organização de Fernando Pinto do Amaral. IMAG.65-71-236-275-307

EXTRAORDINÁRiO

OS SOBRENATURAIS
Folhetim Aperiódico

 ARRANCA DO PEITO ESSE FUROR
QUE TE EXPÕE, FERA E FELINA - 1

 11 de Março de 1906

Alvoroçada, arfante, Leónia raspou, então, ambas as garras pelo rosto, do qual escorria aquela amálgama de porcarias, suores e de pêlos. Instantes depois, recobrava o ânimo, enquanto ia passando as que já eram mãos por todo o corpo, até tornear em si a forma humana.

Lambeu, com uma última delícia de animal, os lábios ainda entumecidos, onde havia alguns resquícios do sangue que, pouco antes, regurgitava pelo pescoço da sua vítima. Os dentes que lhe cravara, com o frenesim de predador, tinham-se reduzido ao aspecto banal num facies feminino.

  Continua  


 

IMAGINÁRiO316
· 24 MAR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

ESTILHAÇOS




Os actuais prodígios tecnológicos permitem expandir o universo característico dos quadradinhos, transferindo a acção para a virtualidade dos fotogramas. Além da providencial reconfiguração em celulóide dos heróis de papel, um tal potencial reincidido atrai o público para outras dimensões alternativas - como propõem Shari Springer Berman & Robert Pulcini em American Splendor (2003), a partir da manifestação original de Harvey Pekar (1976) em comic book. Em causa contemporânea está uma deprimente realidade nacional, política e culturalmente ferida pela banalização. Em 1962, Pekar vivia em Cleveland, vizinho de Robert Crumb - autor de Fritz, o Gato, com quem percebeu que a banda desenhada era algo mais que mera «literatura infantil». Polémico, insolente, a sua dimensão artística e pessoal é estilizada pelo desempenho de Paul Giamatti, num vínculo fascinante entre testemunho e representação.

CALENDÁRiO

20JUN1921-06JUL2010 - Matilde Rosa Araújo: «Deixa contar... / Era uma vez / O senhor Mar / Com uma onda... / Com muita onda... / E depois? / E depois... / Ondinha vai... / Ondinha vem... / Ondinha vai... / Ondinha vem... / E depois... / A menina adormeceu / Nos braços da sua Mãe...» (História do Sr. Mar - O Livro da Tila: Cantigas Pequeninas).

1930-12JUL2010 - Harvey Pekar: Autor de banda desenhada, criador de American Splendor (1976): «O humor do dia-a-dia é muito mais divertido do que aquele que os comediantes fazem na televisão. É o que acontece mesmo à nossa frente, quando não há rotina e tudo é inesperado. É sobre isso que me interessa escrever».

1925-14JUL2010 - Sir Charles Mackerras: «Nos últimos sessenta anos, a sua importância como maestro foi enorme, no desenvolvimento da execução musical. Era uma força da natureza, um verdadeiro artista do palco, que honrou o talento dos compositores com elegância, expressão e entusiasmo» (Antonio Pappano). IMAG.290

MEMÓRiA

1772-25MAR1801 - Georg Philipp Friedrich von Hardenberg, aliás Novalis: «Ao homem é lícito desejar as coisas sensíveis de maneira racional, enquanto à mulher é lícito desejar as coisas racionais de maneira sensível... A natureza secundária do homem é a principal da mulher». IMAG.135

25MAR1881-1945 - Bela Bartók: Compositor húngaro, representante da modernidade clássica, esteve entre os fundadores da etnomusicologia, do estudo da antropologia e da etnografia musical. IMAG.128-213-236

28MAR1911-1944 - Bernardino Machado: Conselheiro e professor universitário, pedagogo, parlamentar, embaixador, Grão-Mestre da Maçonaria Portuguesa, Chefe do Governo, Presidente da República em 1915-1917 (destituído pela Junta Militar liderada por Afonso Costa) e em 1925-1926 (destituído pelo Golpe Militar chefiada por Gomes da Costa) - «O mais fino ornamento de pedagogia de que o país justamente se orgulha tanto mais que esse belo atributo se dá as mãos com o seu carácter diamantino, alma aberta para tudo quanto seja praticar o bem» (Estrella do Minho - Famalicão, 1903) .
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1882-28MAR1941 - Virginia Woolf: «A beleza do mundo tem duas margens, uma do riso e outra da angústia, que cortam o coração em duas metades».
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VISTORiA

Voltou a poisar o bloco. Devagar, a mão assente no corrimão, tornou a subir as escadas. Era como se tivesse acabado de sair duma festa onde se cruzara com um número ilimitado de amigos. Fechara a porta, saíra e vira-se entregue a si mesma, qual figurinha recortando-se contra a noite aterradora, ou, melhor dizendo, e neste caso concreto, contra o olhar indiferente daquela manhã de Junho. Bom, sabia perfeitamente que, à mesma hora, haveria pelo menos uma pessoa para quem o dia apresentaria a suavidade duma pétala de rosa. Acabou por parar junto à janela, os estores a baloiçarem ao sabor do vento, o som dos cães que ladravam lá fora a chegar como se viesse de longe, e, de súbito, ei-la a sentir-se velha, gasta, cansada.
Virginia Woolf - Mrs. Dalloway (excerto)

VISTORiA


Agora sei quando chegará o derradeiro amanhecer: quando a luz não afugentar mais a Noite e o Amor, quando o sono persistir sem o despertar, existindo apenas um sonho contínuo. Sinto em mim uma exaustão celestial. A minha peregrinação para o túmulo sagrado foi longa e cansativa, e a cruz esvaía-se. Aquele que experimentou a onda de cristal que, imperceptivelmente ao sentido comum, brota do seio obscuro da colina batida pelo fluxo do mundo, aquele que esteve na montanha fronteiriça do mundo, e vislumbrou o interior das novas terras nos domínios da noite, certamente não regressará ao tumulto do mundo, às terras nas quais a Luz reina em inquietude perpétua. 
Nessas alturas, ele constrói para si tabernáculos - tabernáculos de paz; lá recorda, ama e contempla, até que a mais querida das horas o lança nas águas da fonte. Tudo o que é mundano flutua sobre ele, revolvendo-se em tempestades; mas o que se tornou sagrado pelo toque do Amor flui livremente através dos caminhos ocultos, das regiões mais além, onde, junto aos aromas, se mistura ao amor adormecido. Doce Luz, tu ainda acordas o homem cansado para o trabalho, e lanças em mim a alegria da vida; mas tu não me afastarás do monumento coberto de musgo da memória. Oferecer-te-ei a mão laboriosa sempre que necessitares de mim; louve a rica pompa de teu esplendor; persiga, incansável, as harmonias amáveis do teu habilidoso artesão; contemple feliz a meditativa paz de teu poderoso, radiante relógio; explore o equilíbrio das forças dos maravilhosos e incontáveis mundos e suas estações; mas o meu coração secreto permanece da Noite, e do seu filho, Amor, o criador. Poderias tu revelar-me um coração eternamente verdadeiro? Possui, o teu sol, olhos amigos que me conhecem? Seguram as tuas estrelas a minha mão, quando ela se oferece? Retribuem elas a pressão suave da minha palavra carinhosa? Tu não as adornaste com cores e com trémulo contorno? Ou terá sido ela quem concedeu às tuas jóias um significado mais elevado, e querido? Que delícias, que prazeres, a tua vida me oferece, para aliviar o fardo dos transportares da Morte? Não será tudo aquilo que nos inspira investido da vivacidade da Noite? A tua mãe, é ela que te gera, e a ela deves toda a tua glória. Tu poderias desvanecer-te em ti, poderias dissipar-te no espaço infinito, se ela não te amparasse, não te enfaixasse para que permanecesses quente e flamejante, concebendo o universo. É certo que eu já existia antes de ti; a mãe enviou-me com as minhas irmãs para habitar o mundo, para santificá-lo, com amor de modo que ele se tornasse um memorial eternamente presente, para semeá-lo com flores que jamais fenecerão. Mas assim como elas não germinaram, e nem estes pensamentos divinos; não há sinal algum do apocalipse que está próximo. Mas um dia o teu relógio apontará para o fim do Tempo, e então deverás ser apenas um connosco, e deverás, pleno de ardente saudade, extinguir-te e morrer. Eu sinto em mim o término de tua actividade, experimento  a liberdade celestial, e a restauração feliz. Com dores selvagens, reconheço como estás distante do nosso lar, teu feudo junto ao antiquíssimo domínio, o Céu.
A tua ira e os teus delírios são em vão. Inconsumível, paira a cruz, bandeira de vitória em nossa senda.
Novalis - Hinos Para a Noite I (excerto)

Balada das Vinte Meninas Friorentas

Vinte meninas, não mais,
Eu via ali no beiral:
Tinham cabecinha preta
E branquinho o avental.

Vinte meninas, não mais,
Eu via naquele muro:
Tinham cabecinha preta,
Vestidinho azul escuro.

As minhas vinte meninas,
Capinhas dizendo adeus,
Chegaram na Primavera
E acenaram lá dos céus.

As minhas vinte meninas
Dormiam quentes num ninho
Feito de amor e de terra,
Feito de lama e carinho.

As minhas vinte meninas
Para o almoço e o jantar
Tinham coisas pequeninas,
Que apanhavam pelo ar.

Já passou a Primavera
Suas horas pequeninas:
E houve um milagre nos ninhos.
Pois foram mães, as meninas!

Eram ovos redondinhos
Que apetecia beijar:
Ovos que continham vidas
E asinhas para voar.

Já não são vinte meninas
Que a luz do Sol acalenta.
São muitas mais! muitas mais!
Não são vinte, são oitenta!

Depois oitenta meninas
Eu via ali no beiral:
Tinham cabecinha preta
E branquinho o avental.

Mas as oitenta meninas,
Capinhas dizendo adeus,
Em certo dia de Outono
Perderam-se pelos céus.

Matilde Rosa Araújo - O Livro da Tila: Cantigas Pequeninas (1957)

PARLATÓRiO

São urgentes grandes reformas para a salvação nacional; essas reformas reclamam do Estado uma administração exemplar, e é necessário fazê-las, seja como for, ainda que se tenha de começar pela reforma das instituições.
Bernardino Machado - (Vanguarda - 10NOV1897)

EPISTOLÁRiO

A Afonso Costa

Meu querido Amigo

No momento em que se torna necessário dar uma nova forma à união dos exilados para integrarmos nela os nossos correligionários recentemente vindos para França, cumpro, deveras reconhecido, o dever de lhe significar, e aos seus dignos colegas quanto me foi grata a camaradagem patriótica que, na perfeita solidariedade com os outros delegados, VV Ex.as me dispensaram nos trabalhos que nos coube realizar para o restabelecimento das livres instituições democráticas entre nós.
Escuso de acrescentar com que empenho desejo ver constituída o mais breve possível a nossa união dos exilados de Paris. Tanto estou certo de que os seus membros continuarão a tradição de manter a estima e generoso civismo que os delegados à nossa precedente união demonstraram sempre em todas as reuniões que tive a satisfação de presidir, sendo os nossos votos aprovados e executados honrosamente pela Liga de Defesa da República e pelo Grupo do Partido Republicano Português sem olharem a sacrifícios.

Aceitem VV. Ex.as os protestos da minha maior dedicação.

Saúde e Fraternidade
Paris, 24-12-928.

Bernardino Machado


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· 16 MAR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

PIONEIROS



Um clássico entre os maiores sobre a conquista do Oeste, A Caravana Perdida / Wagon Master (1951) converteu-se num dos filmes preferidos de John Ford (1894-1973) - de quem era a história original, adaptada em argumento cinematográfico por Frank Nugent (seu habitual colaborador) e (o próprio filho) Patrick Ford. Tendo assumido a produção com Merian C. Cooper, para Argosy a cargo da RKO, Ford inspirou-se em factos reais, ocorridos por 1849, almejando - como vectores dramáticos/narrativos - a simplicidade e as emoções, numa magistral emergência romântica e optimista. Espíritos rudes, força telúrica. A infinita matriz visionária do cineasta é estilizada pela fotografia de Bert Glennon, em prodigioso preto e branco, tendo por contraponto palpitante a música de Richard Hageman, ainda com recurso aos Sons of the Pioneers. Eis todo o tipo de pessoas, de anos e sexos vários, sob humores e perigos variegados. Como se o próprio coração da América, premente e genuíno, se revelasse pois - numa pulsão latente, intemporal, da natureza humanista com a paisagem arrebatadora.
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CALENDÁRiO

29MAI-29AGO2010 - Em Lisboa, Culturgest apresenta, em colaboração com Office for Contemporary Art Norway, Notas. Reflexões Sobre o Modernismo Indiano, exposição de desenhos, pinturas e fotografias por Nasreen Mohamedi (1937-1990).

16JUL-12SET2010 - No Centro Cultural de Cascais, Fundação D. Luís I apresenta A Arte Ponto Por Ponto, exposição de Tapeçarias de Portalegre.

MEMÓRiA

15JAN1791-1872 - Franz Grillparzer: «De todas as virtudes, a mais difícil e rara é a justiça. Por cada justo, encontram-se dez homens bons».

16MAR1931-2009 - Augusto Boal: Dramaturgo e encenador brasileiro: «Teatro não pode ser apenas um evento - é forma de vida, porque o que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro». IMAG.249

16MAR1931-2010 - Acúrcio Freire Alves Castela, aliás Acúrcio - guarda-redes do Futebol Clube do Porto, em 1958 marcou ao Belenenses, no Estádio do Restelo, o primeiro golo de baliza a baliza, de que há memória no futebol português («Estava muito vento…»). IMAG.285

1919-19MAR1991 - Ruy Furtado: Prémio Garrett em 1986 - «Um óptimo colega nos trabalhos partilhados para a rádio e, sobretudo, para a televisão» (Ruy de Carvalho). IMAG.219

1897-20MAR1971 - Brice Parain: «Somos sempre responsáveis, mesmo por um mundo que não quisemos» (Sur la Dialectique - 1953).

21MAR1931-2009 - Alda Merini: «Existem dois tempos, na minha poesia. Um, o primeiro, o tempo da minha adolescência, que surpreendeu alguns leitores pelos voos do verso, pelas assonâncias, pelo relevo dos mitos e o segundo tempo, que se seguiu ao internamento num hospital psiquiátrico». IMAG.276

26MAR1911-1983 - Thomas Lanier Williams, aliás Tennessee Williams: «O ódio é um sentimento que apenas pode existir na ausência da inteligência».
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1867-27MAR1931 - Enoch Arnold Bennett: «Nada como umas férias estragadas, para nos reconciliar com o dia a dia do trabalho».

28MAR1911-1960 - John Langshaw Austin: Professor da Universidade de Oxford (1952-1960), especialista em Filosofia analítica, autor de How To Do Things With Words - «Pode haver uma lógica formal dos enunciados performativos? Seria tentado a dizer: sim. Mas com esta reserva, todavia: penso que seria preciso que estivéssemos muito seguros de saber o que entendemos por enunciados performativos, o que supõe de antemão um inventário muita mais detalhado e minucioso que este que indiquei brevemente na minha exposição. Neste caso, e neste caso somente, em posse de um inventário e de uma definição, poderemos em caso de necessidade encarar a formalização de uma lógica dos enunciados performativos, ou ao menos em certos tipos, ou famílias de expressões deste género. E ainda, teríamos um trabalho considerável para desenvolver antes de chegar a alguma coisa de utilizável sobre certos aspectos» (1958). IMAG.262

ANTIQUÁRiO

18MAR1911 - Em Lisboa, é constituído o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a partir do Arquivo Real, cuja origem remonta a 1378 - com a instalação, na Torre Albarrã do Castelo de São Jorge, da documentação, outrora ambulante juntamente com o Recabedo Regni, ou Livro do Tombo.
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COMENTÁRiO


Rumo à fronteira do Utah, e chefiada pelo austero patriarca Elder Wiggs, uma caravana de Mormons anseia chegar à terra prometida, o Vale de San Juan. Expulsos de Crystal City, e acompanhados pelos cowboys Travis Blue e Sandy Owens como guias, junta-se-lhes uma trupe de actores ambulantes: Miss Denver, Fleuretty Phyffe e o Dr. A. Locksley Hall. Quando a água começa a escassear, a confiança em Deus premeia-os com a chegada a um rio - onde festejam, bailando, a travessia do deserto. Então, aproxima-se uma quadrilha de foragidos, a Família Clegg, liderada por Uncle Shiloh, a quem tratam mas, receosos, exigem que os sigam à distância. Quando exploram a região dos Grandes Canyons, Travis e Sandy são acossados por índios Navajos, os quais aceitam que os Mormons vêm em paz, levando-os ao seu acampamento, onde Elder chicoteará um dos bandidos que tentara violar uma nativa. Mais tarde, os cómicos despedem-se rumo à Califórnia, e os Clegg dominam os colonos, em breve ausência de Sandy. Escapam assim - escondendo-se nos veículos, e ameaçadores - à patrulha de um Xerife, que os deixa continuar viagem. Após abrirem caminho através das montanhas, à força de picaretas, para que o grande carro das sementes consiga passar, atingem finalmente o destino. Mas a alegria é breve, pois os Clegg planeiam partir, roubando-lhes o precioso trigo. Enquanto a revolta alastra, Sandy e Travis liquidam Shiloh e os seus filhos. Os Mormons estão em paz, para fundar a nova comunidade...

Como outros cinco dos seis westerns assinados por John Ford, em 1945-50, a rodagem de Wagon Master / A Caravana Perdida decorreu em Monument Valley, na esplendorosa zona entre Utah e Arizona, por finais dos anos ’40, sem vedetas nem intérpretes salientes. Era, afinal, o privilégio dos actores secundários, ou característicos - cabendo referir Ben Johnson e Harry Carey Jr. - tão importantes no ideário épico do realizador, sempre por ele tão bem dirigidos e definidos, e tão determinantes no envolvimento contingencial das suas reconstituições pioneiras. Em expressão primordial, para consagração da gente humilde, do povo aventureiro - baseando a mística consensual e determinista, em que se perpetua a utopia do Novo Mundo. Anos mais tarde, Wagon Master motivou a série televisiva Wagon Train, em que voltou como protagonista outro favorito, Ward Bond. Os valores colectivos em exaltação e o desafio insolidário das personagens são expostos através de uma vivência inexorável, violenta. Sob os desígnios contrastantes, mais além dos símbolos que forjam os heróis, marcados por o bem e o mal, a subsistência ou a sedução, paira uma saga na plenitude de um imaginário deslumbrante, árduo, transcendente, cuja ressurreição virtualmente se alicia ao culto dos cinéfilos.

VISTORiA

Os jornalistas afirmam uma coisa que, concretamente, sabem não ser verdadeira, na esperança de que passe muito tempo, até que, entretanto, possa tornar-se realidade.
Arnold Bennett - The Title (Acto II - 1918)

Em 1928, o reverendo Dakin (avô materno de Tennessee Williams e figura privilegiada do seu reportório, a par de Rose, a irmã) enviou à Europa o neto, então com dezassete anos, o qual lhe ficou grato até à hora da sua morte, em 1955. Antes de morrer, o pastor deixou os bens a uns vadios não identificados e por razões nunca aclaradas... Com o tempo, Tennessee afastou-se da mãe, demasiado histérica, e preferiu um pai quase sempre ausente. Eis aqui as cartas que a vida repartiu a Williams: nunca jogou com outras. Não mudou de personagem, ainda que vulgarmente de amantes, os quais parecem representar na sua obra os fantasmas, as versões juvenis de um pai grosseiro, recriado de um modo demasiado provocatório por Marlon Brando.
As aventuras homossexuais de Williams têm sido amplamente comentadas, inclusive pelo próprio. Já que os seus exegetas têm mantido normalmente relações ainda mais confusas que as suas - o que não é pouco - com a sexualidade, é tempo de clarificar algumas coisas.

Williams nasceu em 1911 em pleno coração da fanaticamente religiosa Bible Belt, em Columbus, Mississippi; cresceu em Saint Louis, Missouri, cidade sulista por antonomásia. Em 1919, alguns santarrões protestantes impuseram a Lei Seca a todo o país. É inútil acrescentar que num universo de rudes valores cristãos e rurais, todo o prazer era considerado pecado e equivalia à condenação. É provável que Williams não acreditasse em Deus, mas acreditava no pecado; iniciou-se no sexo nervosa e tardiamente (tinha mais de vinte anos); as suas primeiras experiências foram heterossexuais; depois passou a ter relações homossexuais com um grande número de partenaires dos mais diversos, ao longo dos anos. Ainda que não pusesse em dúvida que aquilo que gostava de fazer era absolutamente natural, a verdade é que devia sentir-se um pouco culpado, o que era compreensível naquela época, sendo ele um pequeno burguês WASP (White Anglo-Saxon Protestant) com ares de grande senhor sulista.
Gore Vidal - Introdução de A Noite da Iguana e Outras Histórias (1961)


Sono nata il ventuno a primavera
ma non sapevo che nascere folle,
aprire le zolle
potesse scatenar tempesta.
Così Proserpina lieve
vede piovere sulle erbe,
sui grossi frumenti gentili
e piange sempre la sera.
Forse è la sua preghiera.
Alda Merini - Vuoto d'Amore (1991)

NOTICIÁRiO

Está a concurso o lugar de Porteiro do Arquivo da Torre do Tombo, com o ordenado anual de 160$500 réis.
06DEZ1872 - Diário de Notícias

BREVIÁRiO

Relógio D’Água edita Orlando de Virgínia Woolf (1882-1941); tradução de Ana Luísa Faria. IMAG.51-220

Bruaá edita Lágrimas de Crocodilo de André François; tradução de Miguel Gouveia.

Universal edita em CD, Way Out West pelo saxofonista Sonny Rollins.


IMAGINÁRiO314

· 08 MAR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

«Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade a navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico de um miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, até a brisa que corre me sabe a sal…» Eis Lisboa - Livro de Bordo (1997), pelo testemunho cúmplice e pela escrita familiar de José Cardoso Pires (1925-1998), em viagem cujo imaginário se refaz com Fotogramas Soltos das Lisboas de Cardoso Pires (2008) - documentário realizado por António Cunha, em produção da Videoteca Municipal de Lisboa. Cinema e literatura prolongam, assim, uma relação articulada e reveladora, interactiva e comovente - em homenagem a um autor recriado em filmes, sagrando uma capital de vocação cinéfila. Amigos, colegas, próximos e companheiros, Lídia Jorge, Carlos do Carmo, Pedro Tamen, Manuel Alegre, Camané, Ana e Rita Cardoso Pires, Maria Lúcia Lepecki, Inês Pedrosa, Rui Zink, Fernando Lopes e João Lobo Antunes dão voz às palavras transfiguradas - na paisagem urbana dos afectos e das memórias. IMAG.53-200-226-227

MEMÓRiA

1807-09MAR1891 - José Silvestre Ribeiro: «…Repartiu-se pela acção revolucionária, a militância política e o exercício de cargos públicos de evidência e responsabilidade - governador civil, deputado, ministro da Justiça, conselheiro de Estado, membro do Supremo Tribunal Administrativo. A partir de 1 de Agosto de 1867 ingressou na Academia das Ciências, onde, quase até à morte, desenvolveu intensa actividade. Fundou, em 28 de Novembro de 1875, a Sociedade Protectora dos Animais» (António Valdemar); autor de História dos Estabelecimentos Científicos, Literários e Artísticos de Portugal (1871-1893).

11MAR1921-1992 - Astor Piazzola: «El tango ya no existe. Existio hace muchos anos atras, hasta el 55, cuando Buenos Aires era una ciudad en que se vestia el tango, se caminaba el tango, se respiraba un perfume de tango en el aire. Pero hoy no. Hoy se respira mas perfume de rock o de punk... El tango de ahora es solo una imitacion nostalgica y aburrida de aquella época».

14MAR1681-1767 - George Philipp Telemann: Compositor (o mais prolífico de todos os tempos e músico alemão), organista e mestre de capela da Neue Kirche de Leipzig (1704) e director da Ópera de Hamburgo (1722) - «Lully é louvado, Corelli pode ser louvado, mas somente Telemann está acima do louvor» (J. Mattheson - 1740). IMAG.136-261

15MAR1851-1925 - Carolina Michaёlis de Vasconcelos: Romancista, filóloga, etnógrafa e historiadora da literatura portuguesa - «No tempo da minha juventude a entrada das Universidades ainda estava rigorosamente vedada às estudiosas do sexo feminino, mesmo em Berlim, minha cidade natal, a metrópole da inteligência, como é costume chamá-la».

CALENDÁRiO

01JUL2010 - Atalanta Filmes estreia A Dama da Lapa de Joana Toste; vozes de Maria de Medeiros e Américo Silva.

1927-02JUL2010 - Victor de la Fuente: Ilustrador espanhol e artista de banda desenhada - Um «dos autores mundiais que maior atenção recebia por parte dos seus companheiros de profissão, graças sobretudo ao seu domínio do desenho, sua capacidade para dar forma ao movimento,  sua  habilidade narrativa - onde dava uma lição sobre como utilizar os distintos tipos de planos - e a sua espectacular montagem - com a qual conseguia explorar a dimensão vertical da página». Clique AQUI (José Carlos Francisco)

1935-02JUL2010 - Laurent Terzieff: Encenador francês e actor de teatro e cinema - Dirigido por Luis Buñuel, Henri-Georges Clouzot, Jean-Luc Godard ou Pier Paolo Pasolini.

ANTIQUÁRiO

11MAR1851 - No Teatro La Fenice, em Veneza, estreia Rigoletto, ópera em 3 actos de Giuseppe Verdi, com libreto de Francesco Maria Piave, e baseada na peça Le Roi S’Amuse de Victor Hugo. IMAG.72-89-156-188-203-222-223-308

OBSERVATÓRiO

Cinema em Cartaz - Colecção Internacional de Cartazes dos Primórdios do Cinema - documentário realizado por Fernando Carrilho, sob chancela da Videoteca Municipal de Lisboa e coordenação de António Cunha - LIMAG.299
Clique AQUI

COROLÁRiO






Filologia é portanto etimologicamente: amor da ciência; o culto da erudição ou da sabedoria em geral. E em especial: o amor e culto das ciências do espírito (Geisteswissenschaften) - sobretudo da ciência da linguagem, do verbo ou do logos que é distintivo do homem - expressão do pensamento, manifestação da alma nacional, órgão da literatura e instrumentos de nós todos, mas principalmente e sublimadamente dos letrados que, apesar de tudo quanto contra êles se tenha dito e se possa dizer, são poderosos obreiros de Deus. Sem eles, se ninguém assentasse o que presenciou, pensou e viu, não havia progresso nem civilização, torno a dizê-lo.
Carolina Michaёlis de Vasconcelos - Lições de Filologia Portuguesa (excerto)

HISTÓRiA





Sentença Proferida Em 1487 No Processo Contra o Prior de Trancoso

- Autos arquivados na Torre do Tombo, Armário 5, Maço 7

Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de sessenta e dois anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de: ter dormido com vinte e nove afilhadas e tendo delas noventa e sete filhas e trinta e sete filhos; de cinco irmãs teve dezoito filhas; de nove comadres trinta e oito filhos e dezoito filhas; de sete amas teve vinte e nove filhos e cinco filhas; de duas escravas teve vinte e um filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas; da própria mãe teve dois filhos. Total: duzentos e noventa e nove filhos, sendo duzentos e catorze do sexo feminino e oitenta e cinco do sexo masculino, tendo concebido em cinquenta e três mulheres.

El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos dezassete dias do mês de Março de 1487, com o fundamento de ajudar a povoar aquela região da Beira Alta, tão despovoada ao tempo, e mandou arquivar os papéis da condenação.

ANUÁRiO

1500-1556 - António Gonçalo Anes, o Bandarra: «Em dois sítios me achareis, / Por desgraça, ou por ventura: / Os ossos na sepultura, / A alma, nestes papéis». Natural de Trancoso, sapateiro de profissão, messiânico e místico, abordou o Quinto Império, a partida e o regresso de D. Sebastião e os destinos de Portugal. Acusado de judaísmo pelo Santo Ofício (Inquisição - 1541), as suas trovas foram incluídas no Catálogo de Livros Proibidos. Autor popular e visionário da Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias de Bandarra, levada ao prelo por D. João de Castro (Paris, 1603).

VISTORiA

Sente Bandarra as Maldades do mundo e Particularmente as de Portugal - sonho segundo


¨Oh! Quem tivera poder
Para dizer,
Os sonhos que o homem sonha!
Mas hei medo, que me ponha
Grão vergonha
De mos não quererem crer.
Vi um grão Leão correr
Sem se deter
Levar sua viagem,
Tomar passagem,
Sem nada lho defender.

Tirará toda a escória
Será paz em todo o Mundo,
De quatro Reis o segundo
Haverá todo a vitória.

Será dele tal memória
Por ser guardador da lei,
Polas armas deste Rei
Lhe darão triunfo, e glória.

Trinta e dois anos e meio
Haverá sinais na terra;
A Escritura não era;
Que aqui faz o conto cheio.

Um dos três que vão arreio
Demonstrar ser grão perigo;
Haverá açoite, e castigo
Em gente que não meneio.

Já o tempo desejado
É chegado
Segundo o firmal assenta
Já se passam os quarenta
Que se ementa
Por Doutor já passado.
O Rei novo é acordado
Já dá brado:
Já arressoa o seu pregão
Já Levi lhe dá a mão
Contra Siquém desmandado.
E segundo tenho ouvido,
E bem sabido,
Agora se cumprirá:
A desonra de Dina
Se vingará
Como está prometido.

O Rei novo és escolhido
E elegido,
Já alevanta a bandeira
Contra a Grifa parideira
Que tais pastos tem comido;
Porque haveis de notas,
E assentar
Aprazendo ao Rei dos Céus
Trará por ambas as Leis,
E nestes seis
Vereis coisas de espantar.

Trovas do Bandarra - A Dom João de Portugal,
Bispo da Guarda (excerto)

BREVIÁRiO

Universal edita em CD, sob chancela Deutsche Grammophon, In the Still of Night pela soprano Anna Netrebko, com o pianista Daniel Barenboim.

EXTRAORDINÁRiO

OS ALTERNATIVOS
Folhetim Aperiódico


NARIZ RACHADO AO PÉ DA TESTA,
PATA QUEIMADA NO FLANCO - 7

 Emérito fumava charutos pestilentos, divertindo-se a escarrar para o estendal de roupa - enquanto as mulheres se riam, sem acharem graça nenhuma.

- Tenho que manter esta malta ocupada - matutava Emérito de si para si, com lassidão. Apenas isso. Viviam-se tempos sem justificações nem consequências. Quem mandava, excedia-se. Quem obedecia, humilhava-se.

Um dia, quando Mataka estava na sabonária, para limpar a mulatagem, o capataz colheu-o de cócoras e varou-lhe o ânus, que até fez faísca nos quadris. A partir de então, sempre que se lavava, Mataka sentia-se sujo.

 – Continua


   

IMAGINÁRiO313

· 01 MAR 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

EXORCISMOS




Um grupo de pistoleiros percorre a fronteira entre a América e o México, por 1914, em vertigem pelo assalto a bancos, cometendo atrocidades ou roubando armas transportadas em comboios. Sob armadilhas, ou para escapar em qualquer confronto, deixam um rasto de devastação e dor, além do remorso ou da piedade. Com um bizarro código de honra, sem (res)sentimentos pelos opositores. Seguem para a frente, como se de tal dependesse a sobrevivência: humilhando, destruindo, em sangrento apocalipse... Eis A Quadrilha Selvagem  / The Wild Bunch (1969) de Sam Peckinpah (1925-1984) - um dos raros cineastas cujos filmes atraem o grande público pelo nome do próprio realizador. Como motivação imediata, criando um estilo, Peckinpah sagrou um tipo de espectáculo, obcecou-se pela violência alucinante e quase fatalista, assumida como um desígnio redentor. Tal violência poderia simbolizar um fim em si mesma - não entrando, pois, na concepção da narrativa como um reforço formal; outras vezes, o seu impacto ritual era exorcizado, para denunciar o racismo, a brutalidade, o ódio ou a opressão.

CALENDÁRiO

1940-27JUN2001 - Luís Zagallo: Encenador e actor português de teatro, cinema e televisão - «Um homem leal e profissional» (Eunice Muñoz).

30JUN-03OUT2010 - Museu de Évora expõe Rostos de Roma - Retratos Romanos do Museo Arqueológico Nacional de España; em diversos suportes, quinze expressões imperiais das mais importantes dinastias reinantes do Império Romano.

01JUL-04SET2010 - Em Lisboa, Galeria Bernardo Marques expõe Fragmentos Quotidianos de Susana Luna Vaz.

02JUL-26SET2010 - No Centro Cultural de Cascais, Fundação D. Luís I apresenta, com Fundació Bancaja, Aquisições Recentes da Colecção Bancaja: Linóleos e Gravuras.

03-31JUL2010 - No Porto, Casa da Animação organiza Curso de Banda Desenhada - A Arte de Narrar Histórias por Paulo Patrício, Oficina de Ilustração Infantil - A Arte de Ilustrar Para a Infância por Marta Madureira, e Um Livro Sem Letras - Quando a Imagem Dispensa Qualquer Palavra por Rui Vitorino Santos.

MEMÓRiA

04MAR1881-1937 - Gustavo Teixeira: «Quando eu morrer, enterrem-me na praia / Onde se irisa a espuma alvinitente, / Para que eu pense, ouvindo o mar, que guaia, / Que alguém chora por mim eternamente...»

1857-04MAR1911 - José Valentim Fialho de Almeida: «Civilizado ou embrutecido, todo o homem é presa de duas forças rivais que constantemente se investem e disputam primazias. Uma, que o reporta ao passado e lhe transmite por hereditariedade as ideias, hábitos e modos de ser e de ver dos antecessores. Outra, evolutiva, que adapta o indivíduo aos meios novos, e não cuida senão de o renovar e transformar rapidamente. A vida humana não é mais que o duelo entre duas forças antagónicas».
IMAG.129-199-296

06MAR1851-1910 - Miguel Bombarda: «Não queria morrer já; isso seria dar um alegrão à canalha que me odeia».IMAG.293

ANTIQUÁRiO

07MAR1871 - O Professor Young, de Bóston, vê uma protuberância solar expelir matérias incandescentes até 200.000 milhas de altura, com uma velocidade de 166 milhas por segundo.

VISTORiA


Cleópatra

¨Sob o pálio de um céu broslado de cambiantes,
a galera real, de tírias velas têsas,
avança rio a dentro, arfando de riquezas,
cheia de um resplendor de pedras coruscantes.

Sob um dossel de bisso, entre espirais ebriantes
de incenso, a escultural princesa das princesas
cisma... Remos de prata, à flor das correntezas,
deixam móbeis jardins de bolhas trepidantes...

Soluçam harpas d'oiro às mãos de ancilas belas;
branda aragem enfuna a púrpura das velas
e à tona da água alveja um espumoso friso.

E a Náiade do Egito, ao ver a frota ingente
de Marco Antônio, ri, levando unicamente
contra as lanças de Roma a graça de um sorriso...
Gustavo Teixeira

VISTORiA



Correndo através do montado, cheguei à ribeira, que pude saltar num pulo de lobo, e, sem me deter, entrei a trepar a pedregosa encosta, na direitura do ninho. Faziam-se ali acumulações selváticas de tojeiros e silvados, cabeças de rochedos pardacentos, espinhais de luxuriante amplitude, que tolhiam o passo a quem ia. E aquele recanto, plutónico e brusco, desenhava-se numa como penumbra de floresta, que de cima caía filtrada pelos amontoados da folhagem. Deixara de ouvir a águia, e era pungente o sossego daquela região, equiparado ao orfeão gigantesco de voláteis, que na planície entoava o poema sinfónico da manhã. Por duas ou três vezes ergui a voz para insuflar a vida nos ecos do desfiladeiro. De rocha em rocha, quando muito, o eco repetia a última sílaba, num murmúrio tímido, como rezado à roda de um féretro, e morria.
Pela montanha, troncos penitentes e negros orando de braços abertos. Nos pegos da ribeira, as reticulações verde negras dos limos deixando evolar a putrilagem das febres más. Silêncio abrasado, pesando.
Quando cheguei ao ninho, arquejava. E, antes de erguer a vista sobre ele, detive-me um instante, olhando à roda com um terror sombrio, que o remorso envenenava. Se a águia desse comigo podia matar-me à bicada. E teria razão – ai de mim!
Estava sozinho. Não se via dali o monte já. De repente, casualmente, sem mesmo querer, dei como a águia, que, de cima do ninho, abria as asas e sobre mim estendia o seu pescoço ávido. Fiquei tremendo ante a raiva silenciosa que paralisava a terrível rainha. Ela ia decerto formar voo e cair sobre mim, para delacerar-me com as suas garras de três gumes implacáveis de uma vingança cruel.
Olhámo-nos por tempo. As asas da águia abriram os seus leques enormes de varetas curvas. A imobilização porém continuava e o pescoço permanecia caído à borda do ninho. Veio-me a ideia de que podia estar morta. Atirei-lhe com uma pedra – a mesma indiferença.
Sem querer saber de mais, desenrolei a corda e atirei-a à primeira pernada da árvore. Quando atingi a altura do ninho, pude olhar bem de perto a águia agonizante, que um frémito vago percorria. Era poderosa e magnífica, de enormes asas pardacentas, cujas fortes rémiges se aguçavam como punhais, na ponta. Estava de bruços sobre o ninho, como se quisera aquecer o peito de encontro aos frouxéis alvinitentes em que os filhinhos tinham visto a primeira luz. A cabeça um pouco chata descaía adiante num bico de bordos dentados, e sobre a íris de oiro a nictitante ia descaindo na sombra da agonia, como um apagador sobre a luz do círio pascal.
A águia morreu nesse dia, à mesma hora em que as outras aves voltavam cantando aos ninhos, para dormir com a prole. Por muito tempo, cruzando o montado atrás dos rebanhos de meu pai, pude ver nos cimos da azinheira gigante, suspenso, o berço-túmulo, a que o esqueleto da águia fazia guarda, dia e noite, de asas estendidas, branquejando na sombria folhagem da árvore. E vinham-me então remorsos, que fora eu o assassino daquela dinastia real!
Fialho de Almeida - O Ninho de Águia
(Vila de Frades, 1881 - excerto)

RELATÓRiO







Eu, Miguel Augusto Bombarda, lente da Escola Médica de Lisboa, de 59 anos de idade, casado, nascido no Rio de Janeiro, mas português, morador hoje no hospital de Rilhafoles, filho de António Pedro Bombarda e de Maria Teresa Bombarda, não professando a religião católica, desejo que, por ocasião do meu falecimento, me seja feito o enterro civilmente e por ser esta a minha espontânea e consciente vontade, quero que fielmente se cumpra.
Lisboa, 14 de Julho de 1910

BREVIÁRiO

Warner edita em DVD, A Quadrilha Selvagem / The Wild Bunch (1969) de Sam Peckinpah; com Ernest Borgnine e William Holden.
IMAG.17-113-121-257

Guerra & Paz edita Dedicácias de Jorge de Sena (1919-1978).
IMAG.60-67-87-112-181-202-249-264-268-305

Megamúsica edita em DVD, sob chancela Woodstock Tapes, Terrifying - The Legendary Atlantic City Concert por The Rolling Stones. IMAG.54-118-206-309

Quetzal edita A Viúva Grávida de Martin Amis; tradução de Jorge Pereirinha Pires. IMAG.157

Universal edita em CD e DVD, sob chancela Polydor, Love Never Dies de Andrew Lloyd Webber; com Ramin Karimloo e Sierra Boggess. IMAG.78

Afrontamento edita Eça de Queiroz [1845-1900] - Uma Biografia de E. Campos Matos.
IMAG
...203-205-214-242-244-248-250-261-275-287-307

Warner edita em CD, sob chancela Nonesuch, John Adams: Doctor Atomic Symphony pela Saint Louis Symphony Orchestra, sob a direcção de David Robertson.

Antígona edita George Orwell [1903-1950] - Uma Biografia Política de John Newsinger; tradução de Fernando Gonçalves. IMAG.170-205-212-222-259

NOTICIÁRiO

A média da exportação de azeite português para países estrangeiros, no período de 35 anos, que decorreram de 1796 a 1831, foi em números redondos de 40 mil decilitros, sendo de 400 mil nos últimos quatro anos, de 1867 a 1870.
27MAI1872 - Diário de Notícias

EXTRAORDINÁRiO

OS ALTERNATIVOS
Folhetim Aperiódico

NARIZ RACHADO AO PÉ DA TESTA,
PATA QUEIMADA NO FLANCO - 6

 Estúpidos, lancinantes quando sentiam o facalhão nas goelas, aqueles grotescos animais podiam também ser devoradores fatais.

Asquerosos e sem critério, deliciando-se com os seus próprios fetos ou atentando às partes tenras de algum dos tratadores mais distraídos.

Herdade das Virtudes, pois sim. Quem ali comandava a exploração, Emérito Nobre era um lúbrico arrevesado. Mataka achava-o com focinho de hipopótamo, mas mantinha-se à distância, entretido em acamar a carapinha. Com a cabeça desfeita, o coração perde-se na paisagem.  

– Continua   


 

IMAGINÁRiO312

· 24 FEV 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004

PRONTUÁRiO

CAPRICHOS

À sua terceira produção americana, Alfred Hitchcock (1899-1980) assinou um dos filmes mais insólitos e surpreendentes, durante a extensa carreira em que se consagraria como mestre do suspense. É sabido que além de intrigas, fatalidades, ameaças ou sobressaltos, o que caracteriza as suas obras-primas é uma ironia subtil, sofisticada, que paira sobre a estilizada irrupção das emoções. Porém, Hitch apenas terá dirigido duas genuínas comédias em longa metragem: O Terceiro Tiro (1955) entre os rituais do humor negro e, uns quinze anos antes, O Sr. e a Sr.ª Smith / Mr and Mrs Smith (1941) sob o signo da screwball comedy. Baseava-se esta em argumento de Norman Krasna - sobre história sua original - que acabara de o vender à RKO e, segundo Eric Rohmer, o mesmo escritor propôs a Hitch a respectiva adaptação. Era outra, porém, a versão do cineasta, revelada a François Truffaut. Grande amigo de Carole Lombard, casada à época com Clark Gable, foi a rainha da screwball comedy quem lhe falou duma história de que tanto gostava e que queria representar, só não tinha realizador... «Num momento de fraqueza», Hitch aceitou a incumbência - confessando, também, que não chegou a compreender as personagens, limitando-se a seguir escrupulosamente o guião técnico. Lombard faleceu meses depois, aos trinta e quatro anos, vítima dum acidente de aviação.
IMAG...-112-142-146-163-168-179-188-191-238-271-280-283-288-307

CALENDÁRiO

1952-21JUN2010 - Christian Desbois: Editor e galerista francês, pelo auspício dos quadradinhos, amigo de Jacques Tardi e Enki Bilal - «A história me julgará. Apenas reivindico a divulgação de artistas contemporâneos, e assumo que estou sob o signo da infâmia da banda desenhada» (Livres Hebdo - 2007).

23JUN2010 - CTT Correios de Portugal emite, no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República, a série Busto da República Portuguesa, em oito selos com a reinterpretação do símbolo clássico do regime político, por João Abel Manta, Costa Pinheiro, Luís Macieira, André Carrilho, João Machado e Júlio Pomar.
IMAG.301-303-304-311

24JUN2010 - Costa do Castelo produziu, e estreia Duas Mulheres de João Mário Grilo; com Beatriz Batarda e Débora Monteiro. IMAG.6-122-251-272

24JUN-25JUL2010 - No Palácio do Beau Séjour (Lisboa), Cassefaz apresenta O Burguês Fidalgo de Molière (1622-1673); encenação de Cláudio Hochman, com João Didelet e Marina Albuquerque. IMAG.42-132-146

25JUN-AGO2010 - Em Lisboa, Museu do Fado e Sociedade Nacional de Belas Artes/SNBA expõem, no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República,  O Fado e a República, ilustrando o peculiar universo criativo e citações nas artes plásticas, ou noutros domínios artísticos como a literatura, o teatro e o cinema; inclui O Fado (1909 e 1910) de José Malhoa (1855-1933), ou O Mais Português dos Quadros a Óleo (2005) de João Vieira (1934-2009), além de documentação impressa, fonogramas e instrumentos musicais alusivos. IMAG.6-54-122-198-208-210-251-267-272

06JUL-26OUT2010 - Associação Portuguesa de Escritores / APE promove o ciclo de debates Alexandre Herculano [1810-1877] 200 Anos Depois, com a coordenação de Luís Machado. IMAG.38-95-146-220-268-309

MEMÓRiA

27FEV1951-2008 - Torcato Sepúlveda: Jornalista, escritor - «[Luiz] Pacheco nunca escreveu romances porque a sua literatura era de urgência: de matar a fome, de zurzir os bonzos que mandavam nas letras pátrias, de atacar o salazarismo a golpes de impropérios e de gargalhadas». IMAG.180-199ANUÁRiO

ANUÁRIO

1775-1861 - José Joaquim da Gama Machado: fidalgo da Casa Real, comendador da Ordem de Cristo, conselheiro da Legação de Portugal em Paris, sócio correspondente da Academia Real de Ciências de Lisboa, autor de Théorie des Ressemblances - «Ensaio filosófico sobre os meios de determinar as disposições físicas e morais dos animais segundo as analogias das formas, da pelagem e das cores» (1831-1858). Tinha por objectivo «demonstrar duma maneira incontestável, para as pessoas mesmo as menos familiarizadas com o estudo das sciências naturais, que aí onde se encontrem formas, robes e côres idênticas, na imensa série dos seres organizados, aí se encontrarão também as mesmas conformidades de instintos, de habitos e costumes».

COMENTÁRiO



A rodagem de O Sr. e a Sr.ª Smith decorreu nos Estúdios da RKO, em clima de grande afabilidade e irreverência. Alfred Hitchcock - que certa vez declarara «os actores são como gado, e assim devem ser tratados» - lembraria também que, logo no primeiro dia, Carole Lombard apareceu com três vitelos, trazendo ao pescoço dísticos com o seu nome e dos dois co-protagonistas, Robert Montgomery e Gene Raymond!
Harry Stradling foi responsável pela fotografia, Van Nest Polglase ocupou-se dos cenários, William Hamilton procedeu à montagem - todos eles, colaboradores do segundo filme de Hitch para a RKO, Suspeita (1941) com Gary Grant; este e Ingrid Bergman, também favorita de Hitch, seriam os intérpretes em Indiscreto (1958) de Stanley Donen, a partir de Kind Sir por Norman Krasna...

Voltando a O Sr. e a Sr.ª Smith, Hitch privilegiou - portanto - a bizarra concepção ficcional do seu autor, salvaguardando embora uma tão fascinante perspectiva como cineasta: a articulação formal entre o contexto romântico e a narração subjectiva, inerente a cada um dos comparsas enredado numa consumação insólita do matrimónio.
Em causa estão Ann e David Smith, casados há quatro anos, e que se regem por normas muito peculiares: sempre que se zangam, por exemplo, permanecem fechados no quarto até que tudo, entre eles, fique esclarecido e apaziguado. Então, ao fim de quatro dias, podem voltar à feliz rotina conjugal, quando a Sr.ª Smith decide accionar a sétima regra, perguntando ao Sr. Smith: «Se começássemos tudo de novo, voltarias a casar-te comigo?» Para espanto de Ann, David responde que não. Embora a ame muito, sente-se limitado na sua liberdade. Ora, por capricho do destino, um funcionário notarial irá comunicar-lhes, em separado, que a união celebrada entre eles não é válida: devido a uma incongruência jurídica, há quatro anos, suscitada pelo rio que atravessa a cidade - separando dois Condados, de Estados diferentes. Agora, poderão regularizar a situação, voltando a contrair matrimónio - mas David mostra-se evasivo, e Ann expulsa-o de casa. Segue-se um irresistível jogo de sedução e rejeição - pois Ann é cortejada por Jeff Custer, um amigo de David, que também não desiste dela...
O suposto distanciamento de Alfred Hitchcock gera um estranho sortilégio quanto ao precário envolvimento - em percalços/desafios - prodigiosamente disputado por Carole Lombard e Robert Montgomery. A carisma cintilante de vedetas transfigura-se, por um volúvel artifício em peripécias, dissabores, cumplicidades, na singular personalidade e no comportamento anti-convencional de O Sr. e a Sr.ª Smith. Vítimas dos rigores próprios ou institucionais, anacrónicos heróis para glória da screwball comedy.

INVENTÁRiO

Desejo que o meu corpo seja guardado o mais tempo possível, e colocado num caixão de chumbo. O meu corpo será levado directamente ao cemitério do Pire-Lachaise: gastar-se-à o menos dinheiro possível (despesa inútil de vaidade). Tomar-se-à para modêlo do meu túmulo o que mandei elevar ao meu estorninho; esta ave, estando embalsamada, depositar-se-à o seu corpo com o meu. Este modêlo será enviado para Lisboa. Os meus cavalos acompanharão o meu entêrro sem puxar ao meu carro, o meu criado de quarto levará numa pequena gaiola uma das minhas aves favoritas. Proíbo expressamente que se convide seja quem fôr para o meu entêrro. Os meus criados acompanharão o meu corpo no meu entêrro; será o último testemunho de reconhecimento por todas as bondades que tive para com eles.
O meu entêrro terá logar às três horas da tarde, à hora em que os corvos do Louvre têm o costume de vir procurar o seu jantar. Servir-se-ão do meu caixão que tem relação com o meu trabalho das sciências naturais. Êste caixão encontra-se em minha casa, bem como a mortalha. Depositar-se-ão no meu caixão as aves contidas nos quatro túmulos que ornam as minhas colecções de história natural.
José Joaquim da Gama Machado - Disposições para o Funeral

COROLÁRiO

Théorie des Réssemblances

O grande livro do nosso José Joaquim da Gama Machado é, e sempre foi, uma das mais extraordinárias colecções de disparates que têm aparecido à superfície da terra...

O homem era rico, amável, bem relacionado, tinha amigos e parentes em altas situações. Ninguém o queria desgostar, a êle que se desfazia em amabilidades para tôda a gente. A obra tinha aspecto considerável, grande formato, óptimo papel, elegância tipográfica, magníficas estampas. Tudo isto infunde respeito. Quem recebia um volume, oferecido pelo autor, folheava-o, admirava as figuras, lia bocado aqui, bocado acolá, achava tudo muito curioso e, se não era do métier, ficava pensando que por certo lá estaria a última palavra da sciência. Os outros, os naturalistas, esses é de crer que não tomassem muito a sério as descobertas do comendador. Lá uns com os outros, sabe Deus o que diriam; mas, coitados, em público, não diziam nada, calavam-se prudentemente, bem sabiam que, se falassem, ninguém os acreditaria e que se sujeitavam a ser acusados de invejosos. Assim se criou e sòlidamente se estabeleceu uma reputação que o Parlamento, as Universidades, as Academias e os eruditos consagraram…
E talvez não seja caso único…
Alberto Pessoa - Revista da Universidade de Coimbra (1926)

BREVIÁRiO

Bertrand edita História Alegre de Portugal de Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895, texto) e Artur Correia (ilustração). IMAG. 17-30-32-59-91-92-128-256-258-278

EXTRAORDINÁRiO

OS ALTERNATIVOS
Folhetim Aperiódico

NARIZ RACHADO AO PÉ DA TESTA,
PATA QUEIMADA NO FLANCO - 5

  O singelo Mataka até tentou entremeá-los, mas foi impedido por uma só trancada com que os feros amantes quase o racharam a meio. Desconexo, assanhado, agoniado, decidiu portanto deixar tudo e todos, acabando em Coina, Ribatejo, sabe-se lá como a trabalhar à jorna.

Apanhado no negócio da suinicultura, Mataka passou a chafurdar nas pocilgas, com os porcos - entre grunhidos e excrementos numa engorda absurda, que acabava fatalmente com a carne em salmoura ou em enchidos saborosos.

Continua   


 

IMAGINÁRiO311

· 16 FEV 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

TESTEMUNHOS



Obra notável, deslumbrante, alicerçada pelo imaginário da história, desenvolvida entre a ilustração e os quadradinhos, Portugal - sob chancela das Edições Asa - expande as Viagens de Loïs, concebidas por Jacques Martin (1921-2010) a partir de 2003, sobre os reinados de Luís XIII e Luís XIV em França. Um desafio monumental, minucioso, assumido com engenho e talento por Luís Diferr - também autor dos textos, revistos por Anne Deckers, transfigurando as aventuras de Loïs Lorcey, um jovem pintor que chega a Portugal por finais do Século XVII, inícios do Século XVIII. Arquitecto de formação, professor do ensino básico e secundário, criador de banda desenhada, cujas virtualidades exploram a realidade e o fantástico, com um peculiar aliciante gráfico e virtual, Diferr concilia uma ampla dimensão, cultural e pedagógica, lúdica e memorial, referenciando tempos e lugares, paisagens e pessoas, a vivência e o esplendor dos testemunhos humanos e edificados. Em destaque e em detalhe: Portugal e Lisboa; O Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém; Os Templários e a Ordem de Cristo; A Arquitectura Monumental No Reinado de D. João V; Palácios e Solares; Porto: o Vinho, Nasoni e os Ingleses; Mobiliário e Coches; Personagens e Trajes.
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CALENDÁRiO

03MAI-26SET2010 - Em Lisboa, no âmbito das Comemorações Nacionais do Centenário da República,  Galeria de Exposições dos Paços do Concelho apresenta O Jogo da Política Moderna! - incluindo Desenho Humorístico e Caricatura Na I República (1910-1926) e Os Humoristas de Lisboa Na I República - Roteiro Patrimonial.
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25JUL1930-16JUN2010 - Maureen Forrester: Meio-soprano e contralto canadense - «Interpretar uma bela melodia é uma coisa, mas entoar um texto de modo a que as pessoas o entendam, logo numa língua estrangeira, exige muito e árduo trabalho».

1922-18JUN2010: - José Saramago: «Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõe-se que de uma maneira bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratularmo-nos ou para pedir perdão, aliás, há quem diga que é isto a imortalidade de que tanto se fala».
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22JUN2010 - Em Lisboa, são entregues os prémios da 7ª edição do Prémio Stuart de Desenho de Imprensa - El Corte Inglés / Casa da Imprensa 2010: Grande Prémio - A Literatura Portuguesa É Má Na Cama? de Nuno Saraiva (Ípsilon/Público); Tira Cómica - Sismo Sentido Em Arraiolos de José Bandeira (Diário de Notícias); Cartoon/Caricatura - O Último a Sair de Cristina Sampaio (Expresso).

24JUN-23SET2010 - Todas as quintas-feiras, Museu de Évora apresenta Noites de Verão, com uma conferência ou uma visita guiada no âmbito da sua colecção.

¯26JUN2010 - Em Comemorações dos 70 Anos Sobre o Nascimento do Maestro Jorge Peixinho (1940-1995), Câmara Municipal de Montijo expõe Jorge Peixinho - Vida e Obra, no Museu Municipal; e In Memoriam em pintura de São Nunes, no Cinema-Teatro Joaquim de Almeida. IMAG.36-40-67-155-175-182-198-259-279

02JUL-10OUT2010 - No Porto, Museu de Serralves expõe Contra o Muro de Marlene Dumas.

MEMÓRiA

1869-19FEV1951 - André Gide: «Na vida, nada se resolve, tudo continua. Permanecemos na incerteza; e chegaremos ao fim sem sabermos com o que podemos contar».
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1795-23FEV1821 - John Keats: «Here lies one whose name was writ in water - Aqui descansa um homem cujo nome está escrito sobre a água» (inscrição pessoal para o túmulo em Roma).

BREVIÁRiO

Caminho edita Correspondência - José Rodrigues Miguéis [1901-1980] / José Saramago [1922-2010] - 1959-1971; organização de José Albano Pereira.

OBSERVATÓRiO

www.robertdoisneau.com - Robert Doisneau - Site dedicado a Robert Doisneau (1912-1994), um dos mais populares e prolíficos fotógrafos de reportagem franceses, autor de O Beijo No Hotel de Ville (revista Life, 1950) - Inclui Vida & Obra, Impressões & Livros e Galeria 1942-48, 1949-52 e 1953-66 - «As maravilhas da vida quotidiana são excitantes, nenhum realizador de cinema poderia reconstituir o inesperado com que nos deparamos nas ruas».

VISTORIA

Tu não me dominarás, tristeza! Ouço um canto suave através das lamentações, dos soluços. Um canto cujas palavras invento a meu talante. Um canto que me fortalece o coração quando o sinto prestes a ceder. Um canto que encho com teu nome, Camarada, e com um apelo aos que com ânimo responderão:
Erguei-vos frontes inclinadas! Olhares voltados para os túmulos, erguei-vos. Não para o céu vazio, mas para o horizonte da terra. Para onde te conduzirão os teus passos, Camarada, regenerado, valente, disposto a sair desses lugares empestados pelos mortos; deixa a tua Esperança transportar-te para a frente. Não permitas que nenhum amor ao passado te retenha... Lança-te para o Futuro! A poesia, cessa de transferi-la para o sonho; que saibas vê-la na realidade. E, se não estiver nela ainda, coloca-a lá!
As sedes não estancadas, os apetites insatisfeitos, os frémitos, as esperas vãs, as fadigas, as insónias... que tudo te seja poupado, ah, como o desejaria, Camarada! Inclinar para as tuas mãos, para os teus lábios, os galhos de todas as árvores frutíferas. Fazer ruírem os muros, abaterem-se diante de ti as barreiras sobre as quais o açambarcamento ciumento acaba de escrever: «Entrada proibida. Propriedade Privada». Lograr enfim que te caiba a recompensa integral do teu trabalho. Erguer a tua fronte e permitir enfim que o teu coração se encha não mais de ódio e inveja, mas sim de Amor! Sim, permitir enfim que todas as carícias do ar, os raios do Sol e todos os convites à felicidade te atinjam.
Ó tu, para quem escrevo - a quem chamava outrora por um nome que hoje se me afigura demasiado dorido, a quem eu agora chamo Camarada - não admitas mais nada de dorido no teu coração.
Que saibas obter de ti o que torne a queixa inútil. Não implores mais de outrem o que podes obter.
André Gide - Les Nourritures Terrestres (1935, excerto)


Ode Sobre Uma Urna Grega

I
Inviolada noiva de quietude e paz,
Filha do tempo lento e da muda harmonia,
Silvestre historiadora que em silêncio dás
Uma lição floral mais doce que a poesia:
Que lenda flor-franjada envolve tua imagem
De homens ou divindades, para sempre errantes.
Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo?
Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes?
Que louca fuga? Que perseguição sem termo?
Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem?
II
A música seduz. Mas ainda é mais cara
Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,
O supremo saber da música sem som:
Jovem cantor, não há como parar a dança,
A flor não murcha, a árvore não se desnuda;
Amante afoito, se o teu beijo não alcança
A amada meta, não sou eu quem te lamente:
Se não chegas ao fim, ela também não muda,
É sempre jovem e a amarás eternamente.
III
Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor
Das folhas e não teme a fuga da estação;
Ah! feliz melodista, pródigo cantor
Capaz de renovar para sempre a canção;
Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante!
Para sempre a querer fruir, em pleno hausto,
Para sempre a estuar de vida palpitante,
Acima da paixão humana e sua lida
Que deixa o coração desconsolado e exausto,
A fronte incendiada e língua ressequida.
IV
Quem são esses chegando para o sacrifício?
Para que verde altar o sacerdote impele
A rês a caminhar para o solene ofício,
De grinalda vestida a cetinosa pele?
Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente
Ou no alto da colina foi despovoar
Nesta manhã de sol a piedosa gente?
Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe
Em tuas ruas, e ninguém virá contar
Por que razão estás abandonada e triste.
V
Ática forma! Altivo porte! em tua trama
Homens de mármore e mulheres emolduras
Como galhos de floresta e palmilhada grama:
Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas
Tal como a eternidade: Fria Pastoral!
Quando a idade apagar toda a atual grandeza,
Tu ficarás, em meio às dores dos demais,
Amiga, a redizer o dístico imortal:
«A beleza é a verdade, a verdade a beleza»
- É tudo o que há para saber, e nada mais.

John Keats
(Tradução de Augusto de Campos)


Na Ilha Por Vezes Habitada

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.
José Saramago


 

IMAGINÁRiO310

· 08 FEV 2011 · Edição Kafre · imaginario@imaginarios.org
· Ano VIII · Semanal · Fundado em 2004


PRONTUÁRiO

FASCINAÇÃO



Berlim, 1931. Enquanto a asa negra do nazismo começa a esvoaçar, funestamente, uma bizarra fauna - de aventureiros, escroques, turistas, milionários, homossexuais - acorre todas as noites ao Kit-Kat Club, onde actua Sally Bowles, exuberante e talentosa cantora americana… Eis Cabaret, Adeus Berlim (1971), o mais popular filme do director / coreógrafo Bob Fosse, inspirado no musical de Joe Masterof, a partir da peça de John Van Drutten e do romance de Christopher Isherwood. Uma atmosfera sórdida mas fascinadora, em paralelo a uma ameaça subtil, avassalante, são admiravelmente traçadas, destacando-se o desempenho de Joel Grey como mestre de cerimónias do Cabaret - afinal, fulcro precário, volúvel, duma sociedade exposta ao espectáculo entredevorador dos seus crepusculares reflexos, vícios e anacronismos. A composição de Liza Minelli valeu-lhe um dos oito Oscars atribuídos a uma obra-prima referencial enquanto género dramático ou testemunho histórico.

CALENDÁRiO

21MAR1931-12JUN2010 - Al Williamson: Ilustrador norte americano, um dos maiores artistas de banda desenhada, na herança de Alex Raymond, assinou Flash Gordon, Jungle Jim/Jim das Selvas, Secret Agent X-9/O Agente Secreto X-9, Blade Runner  ou Star Wars. IMAG.67-70-71-86

1915-13JUN2010 - Hua Junwu: Caricaturista chinês de inspiração humana, social e política, ligado ao Partido Comunista e Mão Tsé Tung, director da secção de arte e cultura do Diário do Povo (1949).

16-19JUN2010 - Em Lisboa, Castelo de S. Jorge celebra Histórias do Castelo - Séculos de História Em 100 Anos de Monumento Nacional; uma viagem visual, musical e literária, com a colaboração de António Jorge Gonçalves, Bernardo Sassetti e Nuno Júdice.

17-29JUN2010 - Teatro Nacional de São Carlos apresenta Eugene Onegin de Piotr Ilitch Tchaikovsky (1840-1893), com Laryssa Savechenko e Natalija Kovalova; encenação de Peter Konwitschny, direcção musical de Michail Jurowski e Johannes Stert.
IMAG.235-261-273-280-296

18JUN-19SET2010 - No Centro Cultural de Cascais, Fundação D. Luís I apresenta A Nossa Cármen - A Maior Luso-Brasileira de Sempre; sobre Cármen Miranda (1909-1955). IMAG.45-141-232

20-27JUN2010 - Na Associação Casulo, em Guimarães, decorre a Exposição de Bd/Ilustração Feminina; inclui concertos, performance e workshops; organização de Fiadeira, com a participação de Ana Biscaia, Caroline Sury, Claire Lenkova, Dame Darcy, Isabel Carvalho, Ivo Gonçalves, Joana Figueiredo, Patrícia Guerra, Pedro Moura, Sílvia Rodrigues e Ulli Lust. http://fiadeira-caldeiroa.blogspot.com/

MEMÓRiA

08FEV1851-1904 - Kate Chopin: «O toque do mar é sensual, envolvendo o corpo no seu abraço suave e estreito… Virou o rosto para o mar aberto, para obter uma impressão de espaço e solidão, que a vasta extensão de água, encontrando-se com o céu enluarado, transmitia à sua excitada fantasia. Ao nadar, parecia querer alcançar o infinito em que se perderia» (O Despertar). IMAG.266

1842-08FEV1921 - Piotr Kropotkine: «As letras e a ciência só tomarão o seu verdadeiro lugar na obra do desenvolvimento humano no dia em que, livres de toda a servidão mercenária, forem exclusivamente cultivadas pelos que as amam e para os que as amam» (A Conquista do Pão).

08FEV1931-1955 - James Dean: «Viver o mais intensamente, arriscar sempre... Se tivesse cem anos para viver, eu ainda não teria tempo para tudo o que pretendo fazer».
IMAG.52-305

11NOV1821-09FEV1881 - Fiodor Dostoievski: «O homem adora fazer a contabilidade dos seus problemas, mas não considera as suas alegrias. Se contasse estas, veria nelas a felicidade suficiente». IMAG.220-281-297

ANUÁRiO

1541-1614 - Doménikos Theotokópoulos, aliás El Greco: «Um grande talento para a pintura» (Giulio Clovio) - «Acredito que a reprodução da cor é a maior dificuldade da arte». IMAG.81-196

1871 - Este ano, nas costas do continente de Portugal e das ilhas dos Açores, ocorrem 20 naufrágios, sendo 13 em distritos marítimos no departamento do Norte, 4 no do Centro e 3 no do Sul. Destes, 9 eram portugueses, franceses 2, ingleses 4, 1 prussiano, 1 sueco, 1 russo, 1 austríaco e 1 espanhol. Nestes naufrágios houve 17 vítimas.

VISTORiA

O sofrimento evidencia, sempre, uma consciência ampla e um coração nobre. Em minha opinião, os homens verdadeiramente grandes devem sentir-se muito desolados na Terra -  concluiu com súbita melancolia, que contrastava com o tom em que a conversa decorrera até ali.
Feodor Dostoievski - Crime e Castigo
(excerto - Raskolnikov)

ANTIQÁRiO

15FEV1931 - Órgão oficial do Partido Comunista Português/PCP, o jornal Avante! inicia publicação clandestina. Lema: «Proletários de todos os Países: Uni-vos!».

COROLÁRiO

Ao Proletariado de Portugal

Camaradas:

A persistente repressão que vimos sofrendo por parte do governo, apoiado em forças mercenárias, que têm como único objectivo, a satisfação da sua vaidade, o brilho dos seus galões, sem a menor consciência pela dor e pela miséria que o povo sofre, levou o PCP a desenvolver uma maior acção revolucionária, dispondo-o a lutar, sem desânimo, pelos sagrados direitos do proletariado português.
15FEV1931 - Avante! (excerto)

PARLATÓRiO

A Nação não está preparada, nem pela opinião nem pela instrução, para tamanha largueza de liberdade.

Joaquim Pereira Annes de Carvalho, Deputado por Tomar no Parlamento, em prol da Comissão de Censura - 13FEV1821


Les Demoiselles d’Avignon

Em absoluto, apenas a execução conta. Sob este ponto de vista, pode dizer-se que o cubismo tem origem espanhola e que eu inventei o cubismo. É necessário procurar a inspiração espanhola em Cézanne. Os elementos, por si só, parecem reclamar a influência de El Greco neles. Mas a sua estrutura é cubista.
Pablo Picasso

Quando um actor interpreta uma cena exactamente da forma como o realizador pretende, isso não é representar. É seguir instruções. Qualquer pessoa com as qualificações físicas exigidas pode satisfazer esses objectivos… Sem espaço, um actor é apenas um robô insignificante, com um peito repleto de botões, para o controlarem.
James Dean

BREVIÁRiO

Al Williamson

Algo que torna a arte de Al Williamson única e especial, que nos leva a regressar à sua obra, é o facto de que, mais do que qualquer outro criador de quadradinhos, ele superou as vias tradicionais da ilustração, sob o signo da aventura. Embora Al incorporasse a ilustração tradicional, tal como fez Alex Raymond, que o inspirou, ele era um grande apreciador de cinema, especialmente os velhos serials dos anos ’40. Via esses filmes incessantemente, a coreografia das suas cenas de luta, e tinha o génio de extrair tal coreografia e interpretá-la no papel. Criava a ilusão de movimento numa simples página, e não conheço outro que lograsse tamanha elegância e movimento. Características que fazem dele o melhor, e tornam única a sua obra. Além da noção de movimento e acção, há um sentido de elegância no seu labor, nas suas figuras e composições. Embora ele privilegiasse a fantasia e a ficção científica, paira, em tudo o que ele criou, uma extraordinária sensibilidade estética, de mistério e integridade, que o torna excepcional.
Mark Schultz (JUN2009)
www.newsarama.com/comics

BREVIÁRiO

Cine Digital edita em DVD, Cabaret, Adeus Berlim (1971) de Bob Fosse (1927-1987); com Liza Minelli e Michael York.

Universal edita em CD, sob chancela Decca, Franz Peter Schubert [1797-1828] - Die Schöne Müllerin pelo tenor Jonas Kaufmann, com o pianista Helmut Deutsch.
IMAG.116-125-203-209-223-285

Gailivro edita As Aventuras de Zé Leitão e Maria Cavalinho 5 - Os Artistas da Almofadinha Verde com argumento e ilustração de Pedro Leitão.

Dargil edita em CD, sob chancela ECM, Othmar Schoeck [1886-1957]: Notturno pelo Rosamunde Quartett, com o barítono Christian Gerhaher.

¨Dom Quixote edita O Outono Em Pequim de Boris Vian (1920-1959); tradução de Luísa Neto Jorge. IMAG.231-286-289

EXTRAORDINÁRiO

OS ALTERNATIVOS
Folhetim Aperiódico

NARIZ RACHADO AO PÉ DA TESTA,
PATA QUEIMADA NO FLANCO - 4

  O pior era o Inverno, mafarrico.

Tinham de garantir cóio certo, coberto, e andar à pedincha numa azáfama de porta em porta, que só os fazia perder tempo.

Mucusse metia medo com um gabão em fiapos, e já se contentavam com pão e umas cebolas. A pinga resolvia o resto, aquecendo-se uns aos outros - mais a corja vadia, todos engrolados nalguma pensão de piso térreo.

Até que veio a reviravolta, quando Mucusse e Mataka ficaram ambos pelo beicinho, banzados com os cheiros e as curvas da Cambiambia, uma mestiça lambuzona que se lhes pôs à frente, junto à Travessa da Portuguesa. Atreveram-se os dois. Com um lânguido riso, a mocetona deixou-se lambiscar na macieza de Mataka, até ser engolida, ávida, por Mucusse num transe alarve.

– Continua  



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