CARTAS
da
Maria da Purificação Jesus (7)
(publicitária portuguesa no Vietname)

 


(In Diáro da Minha Avó)

Meu querido Diário.
Sinto-me envergonhada e triste. Triste pela vergonha de te chamar Diário. Como podes tu ser o espelho da minha alma, a testemunha da minha vivência, se passo dias sem te tirar do contador que mantenho sempre fechado? Estás orgulhosamente só, com as raízes enterradas na seara onde nasceste. Mas hoje obrigo-te a renunciares à escuridão porque te saúdo nesta alvorada menos bonita de Fevereiro.
As minhas primeiras letras de agora são dedicadas a mim própria; estou outra mulher, mais crescida, mais senhora de mim. Ocupo a maior parte do tempo em conjecturas e abandonei quase todas as minhas tarefas no campo. Não abdico, isso não, de regar as flores que respiram no local onde nasceu minha filha. Mas as minhas grandes tarefas do quotidiano deleguei-as ao nosso cumpridor Joaquim.
E quando meu irmão insiste retomar a conversa que tanto anseia ter comigo, digo-lhe com clarividência que o nosso passado, a nossa origem, depois da morte do pai de ambos, não me faz falta conhecer. Nestes meses que antecedem a consumação do meu casamento, tenho muito mais em que me atentar.
Também esta ausência de dias é justificada por termos ido a Lisboa (eu e meu marido) passar uns dias com nossa filha que este ano termina a sua licenciatura apenas com 23 anos. Não levámos o carro, veiculo que só lhe tem sido dado conhecer o caminho de ida para Abrantes. E o de volta também, já me esquecia.
Fomos de comboio, primeira classe. Não temos necessidade de poupanças; vivemos bem graças a Deus.
Aproveitei a ida à capital para fazer algumas compras no Grandela onde nunca tinha entrado. O último catálogo que recebi era tão bonito, tão sugestivo, tão à moda dos armazéns Printemps, de Paris, conforme eles dizem em letras grandes, que não pude resistir.  E a divisa da casa "Sempre por bom caminho e segue" é sugestiva.
Tenho a confessar-te, meu querido diário, o que registo com tristeza: Não ia a Lisboa aí por uns cinco anos bem medidos e quando chegámos a Santa Apolónia, e respirei aquele fresco ar a mar, o bulício da metrópole, tantos carros de um lado para o outro que é necessário um policia de capacete branco para orientar os automóveis, senti-me uma estrangeira no meu próprio País. Não é necessário passaporte para se entrar em Lisboa mas é um mundo com uma geografia própria que necessita de bússola e mapa a condizer.
Mas aquela grande Praça do Comércio é esmagadora. Dizem ser a maior da Europa. Pois acredito, sim senhor.
Entrámos no belíssimo café "Martinho da Arcada" que fica por debaixo daqueles majestosos arcos. Meu marido telefonou para um novo hotel às Janelas Verdes informando o maitre que as nossas malas seguiam pelos galegos. Telefonou também a nossa filha tranquilizando-a pelo atraso com que o comboio chegou a Lisboa.
Encaminhámo-nos então pela Rua Augusta, onde jovens ardinas de calças rotas apregoavam as últimas notícias da ofensiva do exército alemão sobre os Países Baixos. Mas o Diário de Notícias trazia na primeira página uma frase notável do nosso Oliveira Salazar:  
"Para cada braço uma enxada, para cada família o seu lar, para cada boca o seu pão".
E o "República", um jornal pouco conhecido, ignorava este sublime contexto do Presidente do Conselho de Ministros e realçava que a Faculdade de Direito tinha atribuído 16 valores a um tal Álvaro Cunhal, na defesa duma tese sobre a despenalização do aborto.
Que vergonha.


Meus Amigos
Não é necessário grande esforço de memória para puxar pelas recordações do passado. Elas estão bem vivas em mim.
Mas, em contrapartida, também me é justo por a nu a total indiferença com que todos os Truquistas, incluindo o próprio Luís Gaspar, passaram a dispensar ao meu nome.
Sei, se me é dado malhar num ditado tão antigo, que "quem não aparece esquece", e deste pecado me penitencio. E também sei que separar o trigo do joio é quase tarefa impossível porque o joio já é raro. Mesmo assim, como todos sabemos, nestas andanças de culpas e desculpas, o justo acaba sempre por pagar pelo pecador.
Mas reconheço que o trigo saudável, nesta minha afirmação de conhecimentos agrícolas, já não abunda por esse Alentejo.
E Truquistas? Onde param?
Não esperava reconhecimento de ninguém; tenho plena consciência que durante muito tempo vos fiz companhia e perdi largas horas contando-vos o dia-a-dia da minha vida numa suprema vontade de não ser esquecida por vós e de manter sempre viva a amizade e a alegria de viver convosco.
Nem minha filha, agora uma senhora de dois anos, que cresceu ao vosso lado, vos merece o carinho com que me habituaram nos primeiros tempos.
O "Diário da Minha Querida e Santa Avó" que, semana a semana, vos remetia naquelas páginas maravilhosas onde, no silêncio das palavras escritas, se sentia, ou mesmo se ouvia, ressalvando qualquer exagero da minha parte, um grito de força e uma vontade suprema de viver, nem esse Diário, repiso o desgosto, senti que estava a merecer a vossa atenção.
Se agora, num impulso de consciência, me prenuncio, é por se estar em época do Natal da Cristandade.
Para lá dos repisados votos de "festas felizes e de um ano novo próspero" (frase já tão comum que perdeu o significado que intrinsecamente lhe é atribuído) apresento-vos, em duas fotos, o primeiro namoro de minha filha que está verdadeiramente apaixonada; a natividade tem destes milagres.
Nos dias de hoje, temporalmente falando, tudo começa muito cedo.
Mafalda é o meu orgulho e a minha esperança de vida.
Um beijo desta vossa Maria
Hanoi, 17 de Dezembro de 2008


(In Diário de Minha Avó)

Aquela inesperada entrada de teu pai abandonou-me num Mundo com dois lados; o do mistério que envolve a minha descendência, e a alegria há tanto tempo esperada de ter meu marido nos braços todas as noites do resto da minha vida.
Penso que Deus criou em definitivo apenas meio mundo; aquele onde existe a felicidade, a alegria de viver, a inexistência de maleitas, as flores do meu jardim, o Sol que germina a sementeira. O outro meio, inacabado ou esquecido, o dos espíritos malignos, o da fome e da desgraça, o dos terríveis erros que todos os homens cometem, está virado para o lado da escuridão. E sem luz não há Deus, porque Deus é luz e vida.
Escolhi o lado Divino. E, num impulso de guerreira, agarrei-me ao teu pai num abraço tão apertado que descobri, naquele momento, ter uma força hercúlea.
Enfim, Agosto! Dia 28, dissera ele; Dia sagrado a aureolar os cinquenta anos do homem que amo. Seis meses me separam de tantos anos vividos no segredo duma promessa.
Por fim compreendi a mensagem escrita no crucifixo em madrepérola de Lazaro Arteche Malaguilla; "o caminho para Deus é através da devoção e do sofrimento".
E assim foi durante tantos anos.
Prometo-me cuidar do meu papel de noiva; o espelho do meu quarto passa a ver-me todas as manhãs com uma rosa encarnada nos cabelos, a minha camisa de dormir que me tapa inteirinha até aos pés, terá um eterno aroma a violetas. Os meus vestidos de agora irão ser substituídos pela mais recente moda de Paris, e vais passar a ver a tua mãe com um penteado mais curto e ondas suaves, menos pó de arroz na minha face, mas tons carmim, aquele vermelho escaldante para as folies das minhas futuras primaveras.
Serei para meu marido a alegria do dia e a ternura da noite. Oferecer-lhe-ei um sorriso sempre renovado e uma canção lasciva nas alvoradas. Serei a mulher alegre, comunicativa, carinhosa. Cuidarei do seu cansaço, Ouvirei a sua voz com atenção submissa. Serei para sempre a sua melhor amiga.
Reconheço que perdemos o ímpeto dos nossos vinte anos, mas os dois veremos pelas manhãs, durante todos os dias de todos os anos das nossas vidas, o arco-celeste da nossa felicidade.
Os dois construiremos um castelo de certezas.
E tu, minha filha, nossa filha, és a aliança deste noivado.
Mas serei também a Dona-de-casa atenta.
O estado quase decadente de parte do Casarão, que teu avô descuidara nos últimos anos de vida, vai ser restaurado. O meu quarto repintado dum branco mais branco, Também as paredes de todos os quartos serão forradas de papel mais alegre, e reposteiros menos pesados. O comprido corredor e os degraus desgastados levarão novo madeiramento para deixarem de ranger.
Não me desfaço das relíquias do passado e que teu avô tanto estimava, mas alguns móveis serão substituídos por que entendo que o bicho da madeira não tem lugar numa casa nobre.
O grande jardim passará a ser jardim e não um monte de silvado apodrecido.
O pessoal de todas as nossas quintas sentirá o conforto duma mulher casada a acarinhar os seus filhos nascidos na ultima geração. Estarei atenta aos arruaceiros e com o parecer de teu pai, terei a oportunidade de os fazer ver que o Estado Novo só quer o bem de quem trabalha honradamente; nunca, juro, lhes faltará a sopa para a ceia.
Quando senti a boca de teu pai beber as lágrimas que saltavam dos meus olhos, desprendi-me daquele abraço eterno, e reparei em meu irmão de quem já me tinha esquecido completamente; Ele embevecia-se na contemplação da sua obra, numa orgia de vaidade, numa postura de análise critica como se estivesse num museu de arte pictórica. Detinha-se num dos últimos quadros que teu avô lhe comprou; o do touro "Islero Segundo".
Quando vejo este animal no campo, constato que está um soberbo exemplar com quase quatro anos, e recordo sempre a tua querida carta onde pedias a teu pai que lhe desse o nome de Islero. Ele ali anda em manada, aguardando serenamente o dia em que irá entrar num redondel para depois morrer.
É a vida dum toiro. Para a morte foi ele concebido.


(In Diário de Minha Avó)

Victor já me esperava na sala quando eu cheguei.
E foi ele mesmo, ao ver-me pela janela quando largava as rédeas do alazão, que desceu as escadas de pedra e veio ter comigo ao grande portão de ferro.
Deu-me um beijo e achou-me enregelada. Era o prenúncio de uma febre que me reteve na cama durante um mês, antecipando-se a um nevão deste Fevereiro ribatejano.
Só ontem me levantei com visíveis bons resultados do atencioso doutor Carrelo.
Retomo a escrita então interrompida…
Sentei-me no cadeirão perto da lareira. Margarida serviu  o chá nas chávenas de Sèvres e colocou na mesa um pratinho com rodelas de limão.
Estendi a meu irmão a travessa de bolos secos que rejeitou com simples gesto, mas serviu-se de açúcar mascavado.
O silêncio pousou entre ambos e assim se manteve uma eternidade. Victor Figueira não deixava de mexer o chá, enquanto olhava para os seus óleos rodeados por molduras de talha.
Eu, pequenina, arrumada na grande cadeira que parecia não ter fim, procurava com olhar lento algo de novo naquela sala que conhecia palmo a palmo.
Para sacudir o silêncio tossi, levantei-me, fechei uma entreaberta janela; Margarida entrou cuidando se o chá tinha arrefecido. Disse-lhe que estavamos bem, podia ir.
- Não queres mesmo provar um bolinho - disse para meu irmão - São deliciosos, com o cházinho, são deliciosos!
- São os mesmos que Juliana fazia?
- Não! a grande especialidade de Juliana era o bolo de chocolate! Estes são feitos pela nova cozinheira. Não conheço a receita. Mas são bons. Prova um, anda! Porque não provas?
Victor, enfim, estende a mão para o prato dos bolinhos.
Aconteceu um alívio no meu coração; A nossa timidez parecia querer refugiara-se noutra sala e deixar espaço para o som da voz de ambos.
Então Victor pousou a chávena. Compôs a gravata cinzenta, olhou para mim, olhou-me bem nos olhos, e balbuciou:
- Tens razão Maria! Os bolinhos são de facto muito bons…
- Basta Victor! Quero que te abras, quero que me contes! Conta-me o que sabes. A nossa irmã mais velha, mandou-me um simples telegrama de condolências. Coisa fria. Sem sentimento, sem alma, sem respeito...
- A nossa irmã mais velha não conheceu o nosso pai.
Estas palavras, minha querida filha, deixaram-me aturdida.
- Que dizes tu, Victor?
Recostou-se, abriu a cigarreira, inalou o fumo dum cigarro que lho acendi com um cavaco em brasa que tomei da lareira...
E no repouso das palavras, afoitas e sinceras, cruzou as pernas num à-vontade de família; Dizia a verdade. Um dia, ao fim duma tarde solarenga dum Estio decadente, quando, roto e sujo, apanhava cereais com as ceifeiras, alguém o chamou ao antigo escritório "- Lembras-te Maria do antigo escritório?; o da Nossa Senhora da Batida na Porta?".
Fora a segunda vez que vira o teu avô; alto, solene no seu roupão de veludo vermelho, de bonita e farta barba…
- Ora temos então por cá o nosso irmão?! - teu pai entrou na sala, assim, de repente. E de repente me deu um beijo. E de repente abraçou Victor - Ando para te perguntar quando pensas trazer as tuas coisas. Já escolheste o quarto? Ai este meu dia, este meu dia! Que estafa! Mas tenho uma surpresa para ti minha querida mulher; a minha festa já está marcada, enfim! Os convidados  confirmaram  - e depois duma pequena pausa -  Em Agosto, dia 28, na praça de Salvaterra.


(in Diário de Minha Avó)

O que meu pai te deixou no testamento não passa dum simples pro-forma porque tu sabes, minha querida filha, que és herdeira universal.
Após a nossa morte tudo é teu porque não me conformo, não me posso conformar com o que ouvi a seguir ao teu nome e que provocou em algumas das pessoas que ainda se mantinham na sala, um clamor de inesperada surpresa como se de repente entrasse por ali adentro uma estranha voz dando noticia do nascimento de uma fonte de água pura no largo de S.Miguel.
O tabelião Sr. Januário, que sabia o que ia ler, fez uma pequena pausa, refrescou a palavra, olhounos atentamente, e prosseguiu a leitura:
"E para o meu filho Victor Figueira, baptizado com o nome de Victor Figueira da Purificação de Jesus são-lhe destinadas…."
Agora, neste momento em que te escrevo, refeita daquele impacto dum tremor de terra avassalador, lembro-me de ter procurado o pintor pela sala, com os meus olhos. Descobriu-o a um canto, recolhido num dos seus quadros taurinos, encostado ao aparador, chorando.
Os nossos olhos encontraram-se guiados por sentimentos antagónicos.
E nesse preciso instante, ao tempo dum relâmpago que antecede o trovão de gigantesca borrasca, encontrei as respostas de tantas interrogações que fiz ao longo dos anos; estava explicada a protecção que meu pai dava ao pintor, a sua saída para o estrangeiro ainda jovem, a suax aventurosa estada em França e em Espanha, a sua fracassada vida sentimental e, por fim, o regresso à sua terra natal, ao conforto dos serões no Casarão, ao êxito dos seus quadros a óleo e às sôfregas encomendas de teu avô…
O Sr. Januário deu por finalizada a leitura do extenso documento… " como disse no inicio quem tiver dúvidas…", mas já quase ninguém se encontrava na sala o que tornava inútil acrescentar mais quaisquer palavras. Assim, guardou a papelada na mala de couro, retirou as lunetas embaciadas, desapertou ligeiramente o colarinho e, já informal, já com o seu hábito de amigo da família, disse um cordial "boa-noite" e saiu.
Meu marido acompanhou-o. Fiquei só com Victor.
Ele, trémulo, aproximou-se de mim e, ao alcance dum abraço, olhámo-nos como se pela primeira vez nos conhecesse-mos.
- Minha querida irmã!… - foram as primeiras palavras, banhadas em lágrimas.
Não sei, filha minha, escrever o que me fez estremecer; fui abraçada pelo pintor, agora meu irmão, filho de meu pai, correndo-lhe pelas artérias o mesmo sangue; e, sem saber o que fazer porque nemforças tinha para falar, balbuciei ao de leve a grande interrogação de toda a minha vida.
" - Mas, afinal, quem é a tua mãe? A tua mãe é a minha mãe? Somos filhos da mesma mãe?"
Limitou-se a dizer-me que o dia seguinte ainda não tinha sido usado por ninguém do universo e, por isso mesmo, podia ser nosso.
E no dia seguinte, quinta-feira, dia de mudar a água da jarra de flores, abri a porta do jazigo.
Olhei o caixão de meu pai de outra maneira. Aquele homem que adorei era, de facto, um outro
homem. Não me tinha só a mim. Compartilhara a sua fertilidade. Criara uma outra vida; meu irmão.
E ao lado, na prateleira oposta, lá estava o misterioso caixão anónimo, sarcófago dum defunto já decerto em ossada.
E quando limpava com pano húmido o pequeno vitral que representava a pomba do Espirito Santo, não tive dúvidas. Minha mãe e a mãe de Victor, estava ali.
Acendi então uma nova vela vermelha, que ficaria uma semana inteira a arder, fechei a porta do Jazigo e desci a pequena rampa.
Cantava um melro.


(In Diário da Minha Avó)

O Casarão abre as portas ao silêncio. A ausência de teu avô, tida por perpétua, transformou-o numa clausura por onde ingénuo raio de Sol não se atreve a entrar.
Ainda esta manhã abri as janelas do meu quarto na esperança duma nova claridade; Apenas um Arco-Íris muito bem desenhado no céu cinzento, me ofereceu a dádiva dum mundo colorido e, com a infinidade de cores que entraram pelos meus olhos, vou tentar pintar a minha primavera. Espero-te, filha, para me ajudares nas matizes mais importantes da pintura da vida que traçamos a grafite.
...Meu pai voltou ao Casarão oito dias depois de o terem levado.
Assim foi feito, por sua própria vontade; ia abrir-se o testamento escrito pela sua mão, naquela linda letra francesa, uns anos antes.
Recolhi-me ao canto da sala não obstante o tabelião me ter pedido para me sentar no cadeirão da frente.
O silencio encheu a sala; as expressões dos presentes, a ansiedade estampada nos rostos, a expectativa duma recompensa…
Como se pode resumir uma vida de esforço e dedicação a algumas folhas manuscritas, assinadas e lacradas?!
O resultado material do trabalho de teu avô era agora distribuído por quem ele em vida entendeu merecedor duma atenção.
O tabelião, com a solenidade do momento, colocou as lunetas no nariz aquilino, olhou para a sala como que a certificar-se da atenção que a sua presença impunha, refinou as pontas do bigode, e disse;
"- Cabe-me a ingrata tarefa de ler o desejo do meu querido amigo senhor Purificação de Jesus, de quem todos reservamos respeitosa saudade. Este testemunho foi manuscrito há oito anos e, até à morte do testador, apenas foi revogado uma única vez, também manuscrito na minha presença. Vou ler com vagar, soletrando bem as palavras. Se alguém dos presente entender comentar, que o faça mas depois da minha saída; Não quero eu ser testemunha de criticas dirigidas ao meu querido amigo… (corrigiu a posição das lunetas). Este testamento continuará em meu poder durante o tempo que se julgar necessário mas, para quem deseje efectuar uma leitura pessoal, basta deslocar-se a Abrantes e procurar-me. Alguém ficou com dúvidas?… sendo assim passo à leitura":
"Eu, Purificação de Jesus, no meu perfeito juízo, avaliado pelo Doutor Cardoso, físico desta numerosa família, declaro que pretendo serem os meus bens materiais, após a minha morte, distribuídos pelas pessoas que a seguir vou dando conta…"
Olhei para as pessoas. Conhecia algumas, mas muitas delas não tinha a menor ideia de alguma vez as ter visto.
Mais tarde vim a saber haver na sala um representante de Juliana, a nossa criada e governanta do pessoal da casa, de quem tenho tanta saudade. Veio de longe a mando não sei de quem, mas não foi de mãos vazias; teu avô lembrou-se  de Juliana ao deixar-lhe pecúlio suficiente para abrir uma salinha de chá onde podia vender o seu famoso bolo de chocolate.
" - Bem lembrado! - comentou alguém em voz baixa.
" - Estou de acordo, sim senhor! Que será feito dela? - outro comentário.
" - Deus a guarde, que bem merece! - outro ainda.
O tabelião levantou os olhos das lunetas e olhou na direcção das vozes, mas retomou a leitura.
A seguir leu o nome de alguns dos empregados que desde adolescentes trabalhavam na lavoura e a eles meu pai dedicou pequenas parcelas de terreno, afastadas da grande quinta, terrenos que eu própria desconhecia como património.
" - Para que quero eu aquilo! Só calhau!" - não me apercebi quem proferiu este sussurro mas parece-me que a pessoa abandonou a sala.
O tabelião bebeu um pouco de água, respirou fundo e continuou.
" - A Maria das Dores, da vacaria, o produto total dum ano de ordenha... ".
A ascética mulher visada, de cor trigueira, teve um chelique, e agarrou-se aos cabelos com força, puxando-os para cima e, aos gritos de desespero, gritou num desatino: " - É uma vergonha, é uma vergonha, não merecia, eu não merecia esta afronta. O que eu lhe fiz, hem?!. Alguém sabe o que eu lhe fiz, hem?!. "
Julgo que ninguém sabia mas o tabelião foi peremptório:
" - Chamo a atenção do dono da casa que nestas condições não posso prosseguir no meu trabalho".
Meu marido levantou-se e com ar grave avisou os presentes da necessidade de se não manifestarem ou então "… a leitura é agora interrompida e os herdeiros avisados por escrito ".
" - Pode continuar Sr. Januário." - disse teu pai ao tabelião,
" - Ao meu querido anjo, vida da minha vida, amor dos meus amores, força da minha força, minha querida neta Maria dos Remédios, deixo-lhe toda a quinta das rosas que produz um dos melhores vinhos do Ribatejo, reconhecido no Mundo inteiro e que representa uns bons trinta por cento do produto total desta casa de lavoura. E por brincadeira, a partir de agora, fica proprietária do toiro por ela baptizado, o Islero Segundo, que depois de lidado, se se mostrar bravo e nobre, seja indultado e incluído no lote dos nossos seminais, ficando assim também proprietária de todas as futuras gerações do citado Islero.


(In Diário da Minha Avó)

“Amanheceu.
Ao lado do nosso silencio voltámos para a igreja. No adro, agora quase vazio, um dos serviçais varria as folhas das árvores e pontas de charutos. A comprida mesa já tinha sido retirada.
O funeral estava marcado para as 10 horas mas, muito antes das nove, entraram dois homens altos com uma caixa de folha, um maçarico, e duas palavras; “Bom dia”.
Vi então que iam soldar o chumbo.
Destapei o rosto do meu querido pai para um último adeus. E naqueles breves instantes de despedida, corri anos de recordações dos tempos tão bonitos e tão sentidos.
Adeus pai, até um dia. Guardarei de si o que lhe devo; a alegria duma companhia saudável que sempre me fez. Guardarei os nossos passeios à beira do rio. Guardarei o seu feitio de justo e sempre prestável para com todos, a saudável postura de gostar de fazer amigos, a sua delicadeza, a infinita bondade, a disponibilidade para tudo, sempre sem um queixume ou má vontade.
Foi um homem belo, meu pai!
A sua fortuna foi conseguida com trabalho, com afinco, com a esperteza dos homens inteligentes. Mas nunca foi avaro. Nunca negou uma ajuda a quem lhe estendeu a mão. Por isso, até hoje, não entendi o clima menos saudável de alguns trabalhadores que contestavam a sua actuação.
Tinha defeitos? Claro que sim! Quem não os tem? Os homens perfeitos são uma criação imaginária de Deus.
Nunca lhe perdoaram ter posto fora da quinta um antigo trabalhador que sempre tão bem o tinha servido. Foi uma posição de força que tomou; não era necessária tanta, todos sabem que a casa é sua e sua será sempre!
Agora vá. Aceite o mesmo beijo que todas as noite lhe dava ao despedir-me de si.
Uma boa noite pai, durma bem.
Tapei-lhe o rosto.
Os homens altos dobraram as partes laterais do chumbo, acenderam o maçarico e iniciaram o trabalho de soldar.
A pouco e pouco o teu avô ia desaparecendo dos meus olhos. Foi um trabalho lento, o dos altos homens.
Deixaram um pequeno orifício no meio de toda a soldadura. E então um deles, talvez o mais forte, comprimiu todo o chumbo até chegar ao corpo de meu pai, como se se tratasse de um molde. E do pequeno orifício saíam lufadas do ar que lá tinha ficado, como se fora, oh! meu Deus! como se fora os últimos suspiros do defunto. Então, devagar, porque devagar tem que ser aquele trabalho feito, soldaram definitivamente o orifício. Pouco depois apareceu um outro homem, mediano, deu uma volta ao féretro, inspeccionou o trabalho da soldadura, e desapareceu com um sinal de concordância.
Os homens pegaram na pesada tampa da urna e colocaram-na no lugar certo. Entregaram a chave a meu marido e saíram com as mesmas palavras com que tinham entrado na igreja; “Bom dia”.
Não me recordo o que o padre disse na missa que aconteceu.

O carro de seis colunas, todo de negro pintado, tinha sarrafos de veludo e franjas de ouro. O cocheiro fardado acalmava os cavalos tapados de mantas pretas.
Mas os campinos, depois de falarem com teu pai, fizeram questão de transportarem o caixão aos ombros, da igreja até ao jazigo. O carro acabou por levar a enorme quantidade de flores.
Não havia muita gente. A noite de cavaqueira tinha sido longa...
Mas todo o pessoal da quinta estava presente. E foi com eles que caminhámos as duas centenas de metros, atrás de meu pai transportado pelos campinos que se iam revezando.
À porta do jazigo, já aberta, esperavam Fortunata e Genoveva; “… Está tudo num brinquinho, minha rica senhora. O Sr. Purificação, que Deus tem, era uma boa alma”.
E limpavam os olhos molhados… o caixão de teu avô foi coberto com uma colcha bordada, trabalho de 20 anos daquelas santas mulheres.


(in Diário de Minha Avó)

Foi uma noite longa.
Passas-te-a encostada a mim. Pousavas de quando em vez a tua cabeça no meu ombro.
Meu marido vinha amiúde ter connosco, com palavras doces, indagando do nosso conforto.
Na urna de mogno onde jazia meu pai, era visível o forro de chumbo que o cetim plissado não disfarçava inteiramente. O rosto do defunto, tapado com um lenço de seda bordado, parecia-nos dormir na maior paz do mundo. Vestiram-no a rigor com o seu fraque negro, camisa impecavelmente branca, gravata dum cinzento pálido. Uma gardénia perfumava delicadamente as suas mãos cruzadas.
A igreja - à qual o padre Amaro chamava a sua “catedral gótica” - foi-se enchendo de flores.
Vieram de todo o Ribatejo. E todo o Ribatejo ali se juntou; os grandes senhores das terras hortícolas, de toiros, de vinhos, de coudelarias; Moita, Salvaterra, Santarém, Coruche e Benavente, Cartaxo, Rio Maior, enfim minha filha, lembras-te que o grande adro estava cheio de pessoas que por ali se mantiveram até altas horas da noite.
Recebemos condolências de Oliveira Salazar e de alguns membros do governo.
Manolete enviou a teu pai um extenso telegrama manifestando-lhe grande pesar pela perda dum dos homens que mais admirava; Ainda poucas semanas passadas tinha saído em ombros pela porta grande da Maestranza depois de enfrentar um dos mais nobres toiros que lhe fora dado conhecer; O animal , que o toureiro matara numa estocada certeira ao coração, fora nascido e criado no nosso campo.
A certa altura viemos as duas para fora da igreja.
Estava calma a noite. Disseste-me; “Que noite serena, minha mãe…”
À esquerda, perto da porta que dá para a sacristia, tinha sido montada uma comprida mesa com generosa quantidade de bebidas e muitos pratos com comida.
Iluminadas por fracas tochas, pessoas conversavam, em grupos, das coisas mais variadas da vida. Recolhidas na sombra da noite ouvia-mos o nome de teu avô como se ele por ali estivesse presente em alegre cavaqueira; variavam as conversas, alguns sorrisos por uma anedota fresca ou previsões futuristas sobre a nossa casa…

“ - Agora, é uma incógnita!- dizia um - o Purificação é que dava ordens, é que sabia! A herdade vai sofrer um bom bocado. Não sei se o Barrete e a Maria…”

“ - O que falta a esta ganadaria - dizia outro - é um toiro que mate. Ainda não houve, até hoje, um toiro que mandasse um toureiro desta pra melhor. Mas não pode ser um toureiro qualquer…”

“ - Tem razão, tem razão! As ganadarias que matam ganham prestigio. Veja-se a fama dos Miuras…”

Nunca mais esqueci esta frase; “...As ganadarias que matam ganham prestigio”.
Depois caminhámos devagar, lado a lado, até ao estreito canal que teu avô, muitos anos antes, tinha mandado sulcar para que a água do rio chegasse a uma pequena barragem de terra; A cultura de regadio ficara então resolvida.
Mais à frente, atrás da fila de ciprestes, lá estavam os mortos num sono perpétuo, palidamente iluminados pela lua. Naquele momento, minha filha, nada te disse, mas senti-me perdida por entre eles.
O nosso jazigo, o jazigo da família Jesus, sobressaí-se pela austeridade das suas paredes de mármore, As velhinhas Genoveva e Fortunata ainda o cuidavam como casa sua a par dos santos hábitos de limparem a igreja de Jesus. Já tinham perdido a virtude de comunicarem entre si e as tarefas eram repetidas, ora por uma, ora por outra, no mesmo dia. Não rara era a circunstancia de se encontrarem no mesmo local, na mesma hora, para  executarem o que ambas já tinham feito a horas diferentes nesse mesmo dia.
No jazigo, naquele refúgio para eterna meditação, meu pai ia enfim repousar. A seu pedido, seria colocado na primeira prateleira, do lado direito ao do caixão sem nome, que duma campa rasa para ali viera, depois de concluído o único jazigo de S. Miguel.
O misterioso corpo continua, até hoje, a ser grande mistério. Já te disse, minha filha, que teu avô nunca lhe fez qualquer referencia e nós, eu e teu pai, respeitando o segredo da sua vida, também nunca lho tentámos desvendar.
E em frente da muito provável casa onde um dia entrarei para nunca mais sair, modesta no tamanho mas tão grande na amplitude da alma, foi-me impossível não recordar o meu defunto pai no apogeu da sua vida; e viu-o à minha frente, alto, forte, austero, de farto bigode e ombros largos, a olhar para mim, pequenina, trémula, a chorar e a pedir perdão por ter fugido do convento e das freiras:

“- Quando menos espero mais me acontece -“. E passado momentos voltou-se para mim, abraçou-me e disse-me com voz doce: “ - Já tinha muitas saudades tuas…”.

Era impossível deixar de o ouvir agora, na hora da sua partida; recordar as suas ordens desde logo rigorosamente cumpridas, a sua simpatia, o sorriso quase constante, o mesmo sorriso que o acompanhou até à morte e nesta se fixou para sempre. A hegemonia do senhor Purificação era por todos respeitada porque todos sabiam que era um homem que dizia a verdade.
Amei e amo meu pai. Ama-lo-ei até ao meu ultimo suspiro.
Vai-me acompanhar pelo estrada da minha vida; uma vida que espero próspera, plena de paz, de amor, de amizade. Uma vida contigo, filha, que agora, mais do que nunca, vais fazer falta a esta casa.
E também uma vida com meu querido marido.
Disse-te uma coisa que julgo não teres entendido perfeitamente; “ - Até esta manhã, com lágrimas de desgosto pela morte de teu avô, esta tua mãe não conhecia os prazeres do amor”


(in Diário da Minha Avó)

Oh! minha querida filha; sei que virá o dia em que lerás estas letras.
E como tenho por certo que esse dia já não faz parte da minha vida, porque os dias, depois da minha morte, nunca deixam de ser noite, posso sem me corar pela confidência, prosseguir no milagre da morte de meu pai.
Meu marido e eu, ambos roídos de saudade pelo defunto que, no andar de cima, esperava o doutor e o caixão, chorávamos cascatas de água duma fonte bravia, apertados num abraço eterno.
A profunda dor do desgosto tomou conta de nós.
O jardim emudecera. Os pássaros não chilreavam. Nem a ligeira brisa remexia as mais tenras folhas das árvores.
A luz que iluminava o meu quarto vinha dum Sol distante, quase vela mortiça num candelabro esquecido.
Um silêncio enorme envolvia o Casarão, em sinal de luto carregado.
Apenas se ouviam as nossas lágrimas, os nossos soluços não reprimidos, e as minhas palavras “meu querido pai! meu querido pai!” chegavam-me da planície numa voz que não era a minha.
Oh! filha da minha alma! Tua mãe passou naquele dia o seu primeiro grande desgosto.
Mas também, Deus me perdoe, a sua segunda grande alegria.
E foi uma alegria de amor!
Um amor que se desbravava como o arado na terra dura, um amor que meu defunto pai aplaudiu.
Naquele abraço de lágrimas aconteceu uma enorme ânsia de ternura. O desejo da nossa carne batia-nos à porta, pedia-nos licença para nos ensinar os primeiros caminhos da entrega, as primeiras carícias vividas na minha virgem cama de solteira.
E foi assim, entre lágrimas de desgosto e de alegria, que nos demos conta que as nossas bocas se encontravam numa ânsia de frescura como quem procura saciar-se na travessia dum deserto. Foi um beijo sublime, iluminado, tão diferente dos que já tínhamos experimentado nas brincadeiras de namorados juvenis à sombra de chaparros.
Ambos dissemos, numa súplica de desmaio; “não! hoje não!” mas as palavras saíram-nos sem sentido e perderam-se nos batidas desordenadas dos nossos corações. Sentia-me desfalecer, não sabia onde estava o meu corpo, onde estava eu inteira, mas era ali, era ali naquela cama adormecida que eu agora me deitava com o homem que fui aprendendo a amar durante anos.
O docel, nas alturas da cama nupcial, era nuvem branca num céu azul. Branca não, não branca! Reparei, entre suspiros de prazer e lágrimas de desgosto, que a nuvem tinha cores. Todas as nuvens têm cores.
E nessas cores me deitava, já sem roupa, e sentia em mim o corpo de meu marido, despido também, que me beijava com lágrimas de paixão arrebatada.
Desejava-o, sim. Queria-o meu. Queria-o inteiro.
Dei-lhe beijos infinitos com os lábios humedecidos e ofereci-lhe o meu maior tesouro; a paixão há tanto tempo reprimida, febril, patética, fantástica. Sabia enfim o que era ser mulher e amante.
“Hoje não! hoje não!”.
Foi então que senti uma pequena dor aguda e rápida como ligeira picada num espinho de rosa.
Meu marido, pai de minha filha, genro de meu pai, ali estava num esforço hercúleo fazendo-me a mulher mais feliz do mundo num dia da maior tristeza que alguma vez vivera.
Olhavamo-nos para dentro de nós. Eramos dois seres perdidos num mar encapelado de delicias.
Vivia-mos uma dádiva da Natureza. Meu marido encharcava-me de vida.

Em cima, no quarto onde jazia meu pai, ouvi passos e despertei. Despertámos.
Olhámo-nos como dois seres enfim realizados; “És linda minha mulher!”, “És lindo meu marido!”
Vestimos as roupas em profundo silêncio e numa lentidão de despedida;
“Hoje não nos amámos!”, “Hoje não nos possuímos!”.
“Mas fomos lindos minha amada esposa!”, “Fomos lindos meu querido marido!”
E ficou assente, no silencio de palavras pensadas e não ditas, que aquela entrega tão só nossa, naquele dia de negro vestido, seria continuada a aprendida com mais denoto, quando daí a meses meu marido tivesse a sua festa de despedia das lides taurinas. Faltavam apenas nove meses; uma eternidade.

Ao fundo do corredor deparou-se-nos o Dr. Carrelo, ; tinha acabado de ver teu avô e confirmado o óbito. Evitaria a autópsia.
“ - Os meus pêsames. Vosso pai morreu sem sofrimento... Despediu-se da vida com um sorriso!”.
Vestiu o casaco, fechou a pequena mala e ainda nos disse:
“- Algumas vezes confidenciou-me do seu desgosto de vocês não terem um outro filho. Façam-lhe a vontade. Talvez ainda seja tempo”.
Deu-me um beijo, abraçou meu marido e saiu.

A criadagem, reservada, já se vestira de luto.
A notícia do passamento espalhou-se pelas quintas com celeridade. Solenemente foram chegando mensagens de condolências, e teu pai prontificou-se a tratar de tudo que se relacionasse com o funeral.
O pintor Victor Figueira, angustiado, carregado de desgosto e de lágrimas, afogueado pelo calor do Sol de meio-dia, entrou no Casarão, com palavras incompreensíveis, pois a voz se lhe entorpecia na garganta; ainda ontem o Sr. Purificação lhe tinha pedido um último retrato, assim, tal como estava, velhinho e corcovado.
“ - Uma última encomenda, meu filho. Mas não me exageres, hem! Não me pintes mais velho do que sou!”.

Pelas cinco da tarde, chegou o caixão de mogno, numa carreta puxada a quatro cavalos.
Meu querido pai ia passar a sua última noite entre os vivos na igreja de S. Miguel de Rio Torto.
E, no momento em que o seu corpo partia para a vila, chegaste tu.


Desta Maria que vos ama

As páginas do Diário que descrevem a morte de meu bisavô são dignas de se lerem.
Exprimem um sentimento profundíssimo duma alma pura e bela como sempre classifiquei a personalidade de minha avó.
E também como sempre tenho feito, desde a data em que resolvi “dar à estampa” o Diário, estas páginas também não estão inseridas numa normal cronologia.
Realçar este aspecto é importante para que o Truquista entenda que a morte de meu avô, agora ao alcance da sua leitura, aconteceu antes de alguns “episódios” que já têm sido publicados.
Realço outro aspecto para mim mais valioso; Mando para vós uma selecção, isto é, faço-vos chegar textos onde minha avó é sublime e parece ser o seu interior que debita as palavras; por vezes medidas e pensadas, por outras em turbilhão com medo que a inspiração se lhe desvaneça.
Estas páginas que descrevem a morte do Sr. Purificação têm ainda o privilégio de sentirmos a hipocrisia, a mentira, o desdém, a falta de amizade. Enquanto alguém serve para alguma coisa os amigos não nos largam a porta. Depois, por velhice ou por doença, quando já não temos préstimo, ficamos isolados, só no seu mundo e no destino.
Leiam. Merece a pena.
Eu, Maria, por cá vou andando e agora, numa das rádios de Hanoi, ouço Anna Netrebko sublinhar em canto, uma frase cheia de personalidade; “Oui, c’est moi”.
Beijos,
Maria, Hanoi, 24 de Julho/08

(in Diário da Minha Avó)

“Há muito que esperava pelo fim de meu pai. Era notória a sua falta de energia e um precoce cansaço reflectia-se desde logo pela manhã quando mastigava a sua peça de fruta fresca. Depois, enfim, saia para o campo, ligeiramente curvado sobre a grossa bengala de apoio.
Mas a vida de meu pai foi sempre muito fechada, fechada na sua solidão espiritual.
Ainda não fizera setenta e oito anos mas parecia-nos ter noventa. Trabalhou muito, de Sol a Sol, tostando a tez no elevado calor da lezíria.
Os seus braços, atléticos no antigamente, estavam flácidos e a pele parecia folha de papel amarrotada.
Depois da ceia, despedia-se com um “Vou-me chegando…”, subia a custo os sete degraus que o levavam ao seu quarto e, às vezes, pela noite dentro, perecia-me ouvir o arrastar dos seus passos pelo soalho e um catarro persistente a entorpecer-lhe a respiração.
Os amigos, sentindo-o fraco e doente, foram rareando as visitas para o “cálice de porto” bebido na sala do obsceno “A Origem do Mundo”.
E desse tempo de cavaqueira tinha saudades; Por vezes, com o olhar perdido na alvura da toalha da mesa da sala, perguntava-nos;
“- Que será feito dos Camarinha? Estarão com algum problema?”.
Recordava aqueles que já nos tinham deixado;
“ - Tenho saudades do padre Amaro. O maroto muito gostava do bolo de chocolate e de nos massacrar com citações em latim...
Ao longo da sua vida dedicou-se inteiramente à família, estava sempre pronto para tudo o que fosse necessário, não regateava um favor aos amigos por mais árduo que este fosse.
Agora, sentindo que a sua companhia era um fardo, arranjava desculpas várias para se levantar da mesa, depois da frugal ceia.
Na véspera da sua morte disse-nos;
“ - Meus filhos; a vida é um amontoado de tristezas salpicada com sorrisos mentirosos”. Olhou depois para mim com aqueles seus olhos pálidos e disse-me: “ - Menina! amanhã desejo dar-lhe um recado. Boa Noite”.
Foram as ultimas palavras que ouvi de meu pai.
No dia seguinte, quando me levantei e afastei o cortinado cor de pérola, um resto de nevoeiro tentava dissipar-se ao fundo do jardim.
Veio-me à memória a voz da nossa Juliana quando me entrava pelo quarto, com leite quente e bolinhos de mel; abria as janelas e deixava entrar sem cerimónia a luz do dia madrugador:
“ - Vamos menina! - dizia então - são oito horas, santo Deus! O galo cantou diversas vezes, seu pai há muito que saiu para as vinhas, o senhor Barrete para a lezíria. São horas! hem! Já vão sendo horas!”
Deves lembrar-te, querida filha, que raras eram as vezes em que Juliana acertava com os ponteiros do relógio. Fazia-o de costumeira para me apressar na toma do quente leite e não me espreguiçar para o lado contrário em que dormira.
Naquela manhã olhei-me no espelho alto do guarda-fato. E ali estava eu, de corpo inteiro, de camisa de linho, descalça, sentindo-me desamparada, arrepiada de angústia, mas sorri para a minha imagem. Pensei que em breve podia abraçar o meu marido e interroguei-me como seriam os mistérios do amor. Deixei então cair a camisa que me tapava e vi-me nua, quase numa descoberta de mim, sentindo-me já não só minha, mas nas duas mãos quentes que contornariam o meu corpo.
Dessa alegria sentida, e sem saber o porquê, veio-me uma tristeza profunda e foi com ela que abri a larga porta do jardim e olhei para a trepadeira do caramanchão.
Uma leve brisa balouçava a cadeira do teu avô. A Janela do seu quarto estava aberta e batia de mansinho.
Reentrei no meu quarto, vesti a camisa abandonada, percorri o corredor, subi os sete degraus que rangeram e entrei resoluta na ante-câmara que dava acesso ao recolhimento.
O Sr. Purificação de Jesus, meu querido pai, teu querido avô, recostava-se no grande cadeirão com os olhos abertos sobre um livro. Estava morto!
Mesmo assim, já sem vida, carcomido pelos anos, ainda se pressentia o altivo senhor do Ribatejo a comandar o campo de toiros bravos.
Naqueles breves momentos ajoelhei junto às suas pernas; recordei num repente, como um raio feroz que corta ao meio uma oliveira, momentos que com ele vivi desde pequenina até às longas lições de música onde prevalecia a sua convicção na beleza de Wagner Fechei-lhe os olhos e beijei-lhe a testa fria.
Morreu com dignidade. Abandonou a vida com um ligeiro sorriso. Agora não era nada mas tinha sido tudo.
Voltei a descer os mesmos degraus e à primeira criada que passou pedi-lhe que mandasse por meu marido, que te telefonassem para Lisboa, e que todos se reunissem na sala de fumo.
No meu quarto vesti uma blusa branca, uma saia preta, um simples lenço ao pescoço, e um véu sobre os cabelos, também preto.
E foi naquela sala, onde durante tantos anos conviveu com os seus amigos, naquelas paredes que ouviram as picantes conversas dos homens num ambiente de fumo com aroma a Cabañas e a Tawnies, sala de política e costumes, de confidencias e sonolência, que comuniquei solenemente, sem uma lágrima, com a minha mão na mão de meu marido, que o Dono da Casa, o Dono do Casarão, o proprietário de uma grande área do Ribatejo tinha morrido.
A criadagem, inicialmente boquiaberta pela fúnebre notícia, principiou a chorar e, um a um, vieram abraçar-me numa comoção verdadeiramente sentida. Depois abandonaram a sala devagar com lenços brancos a enxugarem os olhos.
Foi então que me senti completamente perdida, pequenina, indefesa.
Saí da sala com meu marido, percorremos o comprido corredor e entrámos no meu quarto. A porta do jardim continuava aberta, o leve nevoeiro dissipara-se de todo, as rosas já abriam, e foi então que nos demos conta de que Barrete Salvação de Jesus e sua mulher Maria de Jesus Purificação Jesus se encontravam pela primeira vez na nossa vida de casados, ali, naquele meu quarto de cama aberta com lençóis ainda quentes do meu dormir.
E ambos chorámos abraçados como irmãos.


Custa-me perceber o que se passa comigo.
Atribuo este desatino à grande dificuldade em conseguir um emprego aceitável.
Também Mafalda me tem feito sofrer; estou em crer que o clima de Hanoi não lhe é favorável à saúde.
E foi nesta cidade capital que testemunhei o corpo frio do pai de minha filha.Muitas vezes, quase sempre em noites de insónia que propiciam pensamentos claros no quarto escuro, acontece escorrerem lágrimas dos meus olhos, como uma nascente de saudade.

Saudade de quê? De minha avó decerto, única pessoa duma família de latifúndio que enchia o “Casarão” e que ficou reduzida a uma velhinha de cabelos brancos neve.
Não estou com memória artificial. A que tenho é hereditária.
Se agora visse minha avó reconhecia-a de imediato, e correria para ela mandando à fava o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Ela abriria aqueles belos olhos para se certificar de mim. Não correria porque para isso já lhe faltariam as pernas do passado. Mas abria-me os braços e recolhia-me, até eu acordar do pesadelo maravilhoso.

“ - Farta de dizer-te, minha filha, que estou sempre contigo. Chama-me quando de mim necessitares”- ouvi-la-ia.

Tenho nada. Eu, pessoa, Maria vossa, tenho nada.
Mafalda é minha, disso tenho certeza. Mas Mafalda é já outra pessoa, desliga-se do meu ser todos os dias. Vejo-a mulher amando o homem dos seus sonhos, em qualquer país do mundo.
E eu que lhe entreguei a minha vida madura e a ensinei a ouvir histórias de adormecer, serei naturalmente abandonada como farrapo.
Há dias, um amigo, de passagem, disse-me; “És jovem, arranja um amor, volta a renascer…”
Ainda retorqui; “Para quê?”.
Já não me ouviu; sumiu-se no nevoeiro da tarde.
E de nevoeiro estão todas as tardes de todas as estações dos anos da minha vida.
Restam-me as manhãs.
E porque, durante as madrugadas, não me agarro a Deus?
Qual deles?!

Pois vos digo; um qualquer, desde que esteja vivo. Com Deuses mortos, cheirando a cadáveres putrefactos, não me parece ter alguma chance de bom conselho. Antes me fazem arrepiar de medo, arrepiar de vergonha por ter tido uma filha dum prostituto, de ter vivido em pecado durante uns anos, fornicando em quartos alugados ou atrás das árvores seculares que rodeiam Aiana-de-Cima, aí, em Portugal

É prodigioso pensar-se na existência de um Deus vivo, eternamente vivo.

Acompanhava e orientava a evolução da sua obra, produto Dele próprio e não da sociedade. Reformava os seus erros (próprios de um Deus que se preze) e criava a imagem perfeita do “Homem Novo”.
Que conversa esta, senhores!
Vou tomar ecstasy,

Maria, Hanoi, 16 de Julho/08