CARTAS
da
Maria da Purificação Jesus (1)
(publicitária portuguesa no Vietname)

 


Mais um bocado do "Diário" de minha Avó

"Depois da morte de meu marido, levei dois anos a desprender-me dos vestidos pretos.

Retomei a intimidade com este manuscrito, onde tenho relatado alguns dias da minha vida. Encontrei-o, por acaso, no fundo de uma caixa, entre várias outras recordações que vamos deixando, arrumadas, para sempre.

Hoje, neste presente Outono tardio, conjecturo que devo esquecer o dia em que me dispunha a fazer feliz o homem que gostava muito de mim, e a quem eu, nos últimos tempos, tentava corresponder.
O pequeno papel que encontrei, entre outros, revelou-me o segredo bem guardado pelo meu marido durante os últimos cinco anos da sua vida: uma vida inteira por um só dia que não chegou a viver.

Depois da sua morte, na azáfama atabalhoada da saída de S. Miguel de Rio Torto para Abrantes, caiu a meus pés um papel dobradinho, como uma carta perdida há anos e agora, enfim, a arribar ao seu destino. Quando me preparava para o ler, entra minha filha, mariposa sempre em voo, batidas do meu coração, floresta de sobreiros, suspiro da minha alma, pedindo ajuda num conflito de se lhe dar conta e, não fosse pressenti-lo pela curiosidade dos seus infantis 19 anos, escondi o manuscrito neste livro a que tenho chamado "diário". Ontem li-o. Transcrevo-o hoje. Mandarei o manuscrito ao colégio das Doroteias, donde fugi quando tinha os meus dez anos, justamente em 1917.

"Avé Maria Cheia de Graça... desculpai-me Virgem Santa, nada mais sei da oração que vos consagra. Há alguns anos que ouço falar de vós por peregrinos que me vão contando os vossos tão avisados alertas, especialmente sobre o inferno e o comunismo. Deus não quis que os dois angélicos videntes resistissem à nefasta gripe espanhola e o outro, a Lúcia de Jesus, há anos em Espanha, também pouco se conhece ou ouve falar. Mas o que importa é a voz do povo, que jura com cega confiança, teres poderes divinos e, por esses poderes, fiz eu esta caminhada de tantos quilómetros, para vos confessar que acredito ter minha mulher concebido sem pecado, tal como vós no encontro que tivestes com o Divino Espírito Santo. Ora se vós, Imaculada Virgem do Rosário de Fátima, o fizestes, porque minha mulher não o poderia ter feito? O Senhor Padre Amaro – que deveis pelo menos ter ouvido falar porque no ano passado foi chamado por Deus – disse-mo várias vezes; Podes acreditar meu Barrete. Vi nascer tua mulher. Ela não sabe como concebeu. Sou eu que to digo e afianço, em nome do Pai e da Filha. Maria é virgem. Crê em mim.

Mas, até hoje, nunca vivi o ditoso dia que me proporcionasse comprová-lo. Há anos, depois duma forte cornada, e por amor a ela, resolvi deixar para sempre as persistentes bebedeiras, recuperei a lucidez, trabalho com afinco nos negócios das quintas - prosperam Graças a Deus - e aprendi a amar a menina que perfilhei. Acima de tudo a amar minha querida mulher.

É certo que a vejo agora mais atenciosa, mais meiga, passei a conhecer-lhe o sorriso, o olhar, sinto-a interessar-se por mim... Mas, - Maria Cheia de Graça o Senhor é Convosco - dormimos em quartos separados, distância considerável, se atendermos que naquele casarão de 13 quartos, o meu é o primeiro e o dela o último.

Pois foi exactamente este número 13, ditoso dia dum Maio em que deste sinal da tua luz, que me fez pensar em ti, Senhora, na esperança que consigas iluminar aquela alma, agora com trinta e cinco anos de vida, eu com mais dez em cima.

Maria de Jesus Purificação (repara bem Virgem de Fátima – minha mulher tem o nome de teu filho, Jesus, ainda por cima Purificação, ou seja, Jesus Purificado), disse-me há dias, peremptória: Abandone as farpas e os toiros e depois falamos.

Pois vou faze-lo. Prometo que em breve deixarei o Traje de Luces e também te afianço, Senhora Virgem, que não entrará um único comunista nas minhas terras ribatejanas...  Ámen"

Dobrei o papel, tal como o encontrei, meti-o num sobrescrito, lacrei-o e mandei-o pela Juliana, às Doroteias".
Queridos Truquistas; não retirei uma vírgula ao manuscrito que acabaram de ler.

Beijos frescos – tenho conhecimento do calor que faz em Portugal.
Maria, 10 de Agosto/06



As surpresas da semana.

Não posso deixar de referir a grande alegria que senti ao receber, duma querida Truquista de Alferrarede, a primeira chucha que o meu filho vai usar. Não sei se é a indicada para recém-nascidos (ainda tenho que aprender estes mistérios da maternidade) mas a sua atenção, D. Maria Guilhermina, fez-me chorar de comoção. Compus um pequeno resumo do seu texto tão terno, e escrevi-o na tampa da caixa da chucha que digitalizei e anexo para os Truquistas se poderem lembrar dos tempos em que chuchavam. Têm saudades?

Gostava de saber se a D.Guilhermina é da nobre família dos Castro Vaz, grande Casa ribatejana de quem minha avó tanto falava. Era uma família oriunda, precisamente, de Alferrarede. Quem sabe se não nos conhecemos?!. Muito obrigada, minha amiga.

Nunca esperei tão grande e bonita reacção que muitos Truquistas estão a ter para comigo. Sabem que estou a pensar em deixar ao cuidado de todos os amigos a escolha do nome para o meu filho ou filha? (Os médicos já sabem qual o sexo da criança. Eu sabê-lo-ei apenas na altura do parto).

Maria do Céu diz-me ser despropositada esta minha ideia. Que lhe parece D. Guilhermina?

Já agora, Luís Gaspar; os seus Truquistas gozarão com esta paciência?

Um motivo com bastante interesse para esta semana.

Com aprovação de Hanói, Tam foi despedida. Com justa causa, digo-vos desde já. Aquela nossa colega "executiva de contas", há dois meses promovida a "Gestora de Projectos", admitida a pedido dum cliente ganho em concurso (com a condição de ficarmos com a sua secretária, lembram-se?), estava a entrar numa ostentação insuportável para todos nós. Entrava às horas que muito bem lhe apetecia. Quando lhe apetecia faltar, faltava. Não percebia absolutamente nada daquilo que fazia. Ganhava quase tanto quanto a Directora desta casa. Carro da Agência com todos os benefícios. Dava-se ao luxo de pôr "os palitos" ao Cliente com o maior dos à-vontades. Julgo até tratar-se duma ninfomaníaca; há dias foi apanhada a fazer um "bo-bó" (não sei se tem traço de união, ou não tem, mas que importa?) a um dos meus colegas. Kim (a minha amiga que distribui chá durante o dia) sabe quem foi o contemplado e, segundo lhe constou, este não ficou particularmente satisfeito com o serviço.

O Cliente "paliteiro", quando foi informado que a "gestora dos seus projectos" ia ser posta na rua, espumou e informou-nos, à laia de admoestação, estar a por a hipótese de levar a conta de novo a concurso. A Direcção desta Agência, também com o parecer favorável da sede, apontou-lhe a porta por onde tinha entrado.

Aqui, nesta 145 Worldwide, parece haver um movimento que contesta não sei bem o quê. A ser verdade, a coisa é séria.

Um pequeno grupo de empregados (incluindo o "account predador" e um ou outro apoiante do rombo financeiro de Chu-Lien) vai sair para abrir uma nova agência, de nome ainda em estudo, mas já com escritório moderníssimo numa das principais avenidas de Saigão.

Levam com eles alguns clientes (especialmente os saturados destas nossas instalações) que, segundo parece, já foram contactados. Também a dupla criativa, e dois dos mais conceituados gráficos desta casa, estão de malas aviadas.

A encabeçar a lista de clientes a sair está o "paliteiro" (uma das melhores contas) pondo à partida, como condição básica, a necessidade da nova agência considerar a admissão da sua antiga secretária "inexplicavelmente despedida da 145".

A nossa ex-colega Tam.
Bem feito e bom proveito!

Beijos desta vossa Maria.
Saigão, 3 de Agosto/06


Uma pessoa passa por cada uma...

 Dia 19 lá fomos à 23ª esquadra prestar "declarações detalhadas" da noite onde nos engavetaram e mal trataram. Eram 9 horas.
Nguyen Ahn, ainda com dois adesivos na cara, acompanhou-me, contrafeito.
Como Director Criativo sente-se sempre indisponível porque se distrai da leitura atenta dos briefings, dos momentos cruciais onde as ideias carregam a criatividade pura, genuína, sem picanços. Estava exactamente num desses dias, obcecado com um caminho que lhe parecia genial mas, por azar seu, a copywriter com quem fazia dupla não encontrava o texto mais adequado para a imagem. Normalmente trabalham assim; primeiro o desenho, depois as palavras.

A 23ª esquadra encontra-se na rua Ho Huan Nghiep, D1, a uns 10 minutos da Agência indo a pé, devagar.
Nguyen aproveitou para entrar na popular livraria Xuan Thu, onde comprou o best-seller "As Tendências do Capitalismo e os Seus Malefícios" (traduziu-me o titulo no seu razoável inglês). Eu também me entretive um pouco a invejar as instalações dum SPA para mulheres ricas (tomem nota do telefone amigas Truquistas: 837-3977 – não esquecer o indicativo 84).

Quando chegámos à esquadra fomos imediatamente recebidos com a vénia do chefe que exibia, numa secretária aglomerada de papéis, o relatório da Agência sobre o complexo problema da alteração da bandeira deste País, o comprovativo do "meu estado interessante" (não basta ver-se e saber-se que estou de 4 meses) e, quanto a Nguyen – inquérito mais complexo – uma longa lista de perguntas mas que, não tinha dúvidas, lhe responderia sem hesitações.
Convidaram-me a sair para uma outra sala onde encontrei uma polícia, ainda bastante jovem, que me indicou uma cadeira aonde me sentei.
Confidenciou-me que a polícia já estava ao corrente da campanha criada pela agência para o Turismo. O problema, em relação à minha pessoa, estava mais directamente relacionado com a droga e onde a tinha adquirido. Disse-lhe que eram cigarros que passavam de boca em boca, sem saber de que droga se tratava. Tinha sido, se assim se pode dizer, a minha primeira grande experiência. Pede-me também para lhe explicitar pormenorizadamente, onde e como tinha sido molestada. "Fui apalpada ostensivamente mas sem agressividade" – "Mas onde?" Não lhe respondi, apenas encolhi os ombros.

Enluva com látex a mão direita e pede-me para me levantar. Querem saber? Pois ordena-me para tirar a saia, "eu que a desculpasse, era apenas uma formalidade!". Obedeci exibindo as minhas cuequinhas "fio dental". Ei-la com o pequeno dedo indicador a penetrar no meu sexo, tentando chegar ao fundo sem todavia o conseguir. Não contente com isso, ainda pesquisa no meu rabinho onde, por fim, perdidas as esperanças de encontrar fosse o que fosse que lhe proporcionasse um louvor por altos serviços prestados à causa socialista, manda-me vestir.
Esperei ainda uma boa meia hora pelo Director Criativo. Vejo, enfim, Nguyen sair dum gabinete, um pouco comprometido.

Caminhámos os dois em silêncio. 

De repente desabou uma carga de água. Recolhemo-nos até a chuva passar.
Despedi-me dele à porta do meu habitual restaurante onde já me esperava Maria do Céu.
Após o almoço, na Agência, os meus colegas interrogavam-se da palidez de Nguyen. Não se sentia indisposto mas concordava não gostar de se ver ao espelho. Parecia estar com uma repentina crise anémica. O seu almoço, inócuo como quase sempre, não podia ser a causa.  Mais tarde Nguyen (que, com o interrogatório, perdera completamente a matutina veia criativa) sente necessidade de defecar.
Confessou, depois, que viu, na sanita, dois dentes de alho saídos dos seus regulares intestinos.

Os polícias, nesta terra, não brincam em serviço.

 Maria, Saigão 21 de Julho/06


( 2ª parte da carta anterior)

Meu avô, então com 42 anos, não se podia queixar. Estava rico. Depois do desastre de Pamplona, esquecera para sempre a carreira de pegador de touros, actuando apenas quando solicitado em festas de beneficência como bandarilheiro de um só braço ("El Ezquerdito" – como lhe chamavam).

A tarde de glória da sua vida deveu-se, paradoxalmente, a um dia aziago. Numa festa em honra de Nossa Senhora da Misericórdia, perante um touro em segunda lide, sofre uma das maiores cornadas da sua vida, pelo efeito duma bebedeira que durante cinco dias não o largara, desistindo, por isso, e em definitivo, de beber o malvado vinho da Casa ou doutra adega por mais afamada.

"Nunca mais bebo, querida mulher" teria dito, entre a vida e a morte, a minha avó, que todos os dias o visitava no Hospital de Nosso Senhor Jesus Cristo, em Santarém.

Cumpriu a promessa. A pouco e pouco foi recuperando uma lucidez que não se lembrava alguma vez ter sentido. Agarrou-se aos livros dos negócios das propriedades e estudou a lição dum homem que tanto admirava; Salazar, ministro das finanças, católico e autoritário, que apoiava os grandes latifundiários e, com um programa de governo denominado "Deus, Pátria e Família" o País moribundo estava a reflorescer. Por outro lado, com a guerra civil em Espanha (à qual não se alistara nos "Viriatos" para não manchar o prestigio do seu nome) o gado bravo português passou a valer uma verdadeira mina de volfrâmio.

Só uma coisa lhe faltava para ser um homem feliz. Conquistar o amor de sua mulher, minha avó.

Esta mantinha-se como nos seus 16 anos; bonita, fresca, inteligente, duma agilidade impressionante, atenta a todos os desaforos da imutável embriaguez do marido, dando ordens, inovando costumes, medindo a meteorologia com apreciável exactidão. Muitas vezes era vê-la com minha mãe ao colo, no fim da tarde, mostrando-lhe os campos cultivados, o conhecimento do pastorear, os desvelos cuidados no conduzir das gavinhas, e como apanhar papoilas para as manter viçosas durante o dia.

Barrete Salvação de Jesus teve várias e longas conversas com sua mulher, dizendo-lhe que o casamento implicava fidelidade para com ele, seu marido, e não para com um mariachi, pai de sua filha, decerto, mas que ele, Barrete, então com 26 anos, em plena mocidade, a tinha perfilhado, assinando um documento notarial onde se assumia pai de Maria dos Remédios Purificação Jesus por quem nutria tanto amor como se na realidade a pequenita fosse sua legitima filha.

Deixou crescer uma barba que aparava rotineiramente. Vestia-se à moda, sempre impecavelmente limpo. Minha avó, contudo, não parecia reparar naquele homem, seu marido, alto, elegante, que lhe sorria o dia inteiro e parecia amá-la, e a Maria, minha mãe. Continuava fidelíssima a Lazaro Arteche Malaguilla o mariachi.

Mas houve um acontecimento que foi determinante para a vida dos dois: a morte do Padre Amaro no dia 1 de Novembro de 1942. Morreu no dia certo, dia de "Todos os Santos". Aquele Padre foi um verdadeiro Santo para minha avó, especialmente no célebre almoço de Páscoa onde, em voz alta, à frente de todos, assegurou que "Maria tinha concebido sem pecado".

No ano seguinte a este desenlace meu avô tomou uma decisão drástica. Foi a Fátima.

Reservarei para uma outra crónica esta peregrinação que no diário de minha avó ocupa três páginas.

Por agora – e para concluir pois esta já vai longa – sei que minha avó se lhe entregaria toda inteira, no dia em que seu marido fizesse 50 anos.

Barrete Salvação de Jesus organizou uma grande corrida de toiros na praça de Salvaterra de Magos, com o seu curro de quatro anos e o anúncio da sua despedida de bandarilheiro. A praça, naquela quinta feira de 28 de Agosto de 1947, às cinco da tarde, estava esgotada e cheia de Sol. Minha avó, sentada em lugar de honra, olhava-o, sorridente e carinhosa.

O primeiro toiro, de 500 quilos, "Islero Segundo" de seu nome, foi recebido pelo capote dum dos toureiros e, quando chega o momento das farpas, "El Ezquerdito" sai do "burladero" com duas garridas bandarilhas no braço esquerdo. Foi bonita a sorte. O público, de pé, aplaude respeitosamente o veterano bandarilheiro que agradecia e saudava minha avó, sentindo-a enfim sua, depois de vinte e quatro anos de casamento. Esta correspondia-lhe com os olhos cheios de lágrimas.

Num segundo fatal, "Islero Segundo" distrai-se do capote dum peão de brega e carrega sobre o meu avô que, com o seu braço esquerdo, mandava um beijo a sua mulher. A cornada foi violentíssima. Meu avô morria pouco depois.

Naquele mesmo dia, na praça de toiros de Linares, o famoso toureiro Manulete era também colhido de morte, por um toiro de nome "Islero".

Eu já trabalhava na Truca quando mandei acasalar, numa única prova fotográfica, aquelas duas almas que estão juntas depois de mortas.

Maria, Saigão, 12 de Julho/06


É sempre um prazer dedicar algum tempo e escrever-vos.

 Na sequência do relatório que a Agência enviou ao chefe da 23ª esquadra – e que vos contei ao detalhe na última crónica - esta vossa amiga foi notificada para comparecer na polícia, no próximo dia 19, a fim de lhes prestar "declarações detalhadas"; querem saber como e em que partes do corpo eu fui apalpada e, se for caso disso, tentar identificar os polícias que, na confusão, abusaram de mim.

Também o director criativo Nguyen Ahn tem que se deslocar à esquadra mostrar as zonas do corpo molestadas "pois o pequeno relatório do posto de enfermagem não é esclarecedor".

A grande novidade da semana é saber-se que o Sr. Chu-Lien vai pôr esta agência em tribunal ou, para não o fazer, vende o silêncio por milhões de Dongs. Que se teria passado?

Mas esta vossa amiga está hoje mais virada para continuar com a "saga da Família" neste dia cheio de chuva, enquanto o meu filho se acomoda no pequeno espaço do meu útero que lhe serve de berço, e não de albergue uterino, como já por aqui ouvi dizer.

Preparem-se. Vou ser longa.

 ...Uns quatro anos depois do nascimento de minha mãe, Barrete Salvação de Jesus, meu avô adoptivo, começa a aperceber-se do que lhe tinha acontecido em Maio de 1923; casara com uma mulher grávida que lhe negava diariamente a consumação do matrimónio, era pai duma menina bonita mas mestiça por cruzamento entre sua ingénua mulher com um mexicano e, por má sorte sua, continuava sem conseguir livrar-se do tremendo vício do vinho, normalmente tinto, com que se embebedava nas tertúlias tauromáquicas.
Jamais se impôs na difícil arte de pegador de toiros, não por lhe faltar saber e coragem mas, nas vésperas das actuações, para se esconder na camuflagem do medo, mais se encharcava na maldita bebida, tornando-se pesado, sonolento, sem garra e valentia.
Forcado da cara, no momento da sorte, a visão toldava-se-lhe e, à sua frente, dois toiros preparavam-se para a carga, quatro cornos em riste, embolados mas de respeito. Citava de largo, devagar, fixando os toiros como mandam as regras, e lá vinham os bichos com forças brutas aos derrotes do costume.
O meu avô toureava queza sempre o toiro que não era.
Tentara a sua sorte em Pamplona, nas Festas de S. Fermin, correndo à frente dos animais no dia do encierro, vestido a rigor, levando bem desfraldada a bandeira da República Portuguesa. Foi repisado por todos os toiros e cabrestos que corriam mais depressa do que ele. Levado para o hospital, inanimado, com fractura exposta no braço direito e várias escoriações por todo o corpo. Foi operado de urgência por um cirurgião carroceiro que lhe deixou o braço inutilizado para sempre. Este acidente, que recordou até ao fim da sua vida, pôs ponto final na sua carreira de forcado.
Mas nem tudo era mau. Antes pelo contrário.
O casamento com minha avó tinha salvado da ruína eminente a enorme quinta em Almeirim pois herdou o conhecimento de gente entendida nas andanças da lavoura, pecuária e afins. Nos campos férteis da Chamusca, Golegã e Alpiarça, floresciam os pomares, os sobreiros rendiam toneladas de cortiça, milhares de litros de bom vinho em caves conceituadas, envelheciam com o saber dos homens, o mel de diferentes aromas, paladares e colorações, era distribuído pelo País e estrangeiro, e os produtos hortícolas vendiam-se em todas as feiras do Ribatejo.

As duas famílias podiam agora gabar-se da escolha acertada dos novos touros de cobrição que refrescaram as vacas ansiosas. Desde então foi criado um novo ferro, junção das duas famílias, com duvidoso grafismo (SPJ – Salvação Purificação Jesus) mas que, quando em brasa, divisava os jovens animais para toda a vida.
Desses cruzamentos nasceram magníficos exemplares, bravos e nobres, com tal fortuna que desde logo passaram a ser disputados pelas grandes praças taurinas de Portugal, México e Espanha.
Toureiros afamados e aficionados exigentes gabavam os toiros ribatejanos. Uma das maiores honras da ganadaria foi o toiro "Castanho" ter-se recusado a colaborar na sorte suprema, acabando por ser indultado a pedido de milhares de lenços brancos, pombas brancas de paz, na brancura esgotadíssima da praça de La Real Maestranza, em Sevilha.
Até Manulete, um dos mais famosos do Mundo, no apogeu da sua carreira, declarara que grande parte do seu êxito se ficava a dever aos toiros de "Miura" e aos nobres animais "SPJ"....


Mais uma crónica desta vossa Maria.

 Em primeiro lugar quero agradecer do fundo do meu coração as manifestações de simpatia, de amizade, de carinho, até de amor, meus amigos, daquele amor sentimento que apenas pode vir duma alma nobre e pura que atingiu a perfeição. De qualquer modo, meu querido "desconhecido" que me ama perdidamente, hei-de ultrapassar esta fase de incerteza e espreito uma oportunidade em que retome o meu brilho de luz. Claro que o meu filho há-de nascer; nascer com saúde e ter uma vida feliz. Quanto ao pai, logo se verá...

... Da parte da Administração desta Agência, estou autorizada a dar a conhecer o comunicado que a todos foi distribuído, a propósito da noite de 16 de Junho em que fomos parar à esquadra.

Depois de vários considerandos, reza assim:

 "A Administração quer dar-vos conhecimento que recebeu, no dia 19 de Junho, uma monitória da policia desta República Socialista, para não voltar a permitir atitudes impróprias dos colaboradores da Agência, apanhados e depois interrogados na esquadra 23ª desta cidade, na noite do dia 16 do mesmo mês por, na discoteca "Apocalypse Now", terem sido vistos a distribuir a Nossa Sagrada Bandeira completamente desfigurada porquanto, diz a mesma monitória, em vez da estrela de cinco pontas, ostentava duas figuras que a policia ainda não tinha identificado, muito embora reforce que na mira estão já alguns suspeitos. Para lá disto todos os colaboradores encontravam-se num deplorável estado de dopagem e, alguns, ainda reforçavam a inconsciência com uma estrondosa bebedeira".

"A falta de decoro foi reforçada pela senhora Maria da Purificação Jesus pois, propositadamente (esta palavra está sublinhada a vermelho), vomitou para cima de um dos guardas que pacientemente e com o maior profissionalismo, tomava nota das suas alegações".

Mais adiante:

"A Administração já fez saber ao chefe da 23ª esquadra desta cidade que a "nova Bandeira" era uma proposta criativa da agência como resposta ao briefing do nosso "Cliente Turismo" e, portanto," do Estado". e a exibição pública da maqueta tinha sido, salvo o devido respeito, de propósito, confessamos,  para "fazer barulho", "cruzar fogo", para se ficar a saber a honestidade do nosso trabalho e demonstrar, por A mais B, que a vitória de Hanói não teve qualquer mérito. Quanto às "figuras suspeitas" que a bandeira exibe, fizemos uma longa dissertação acerca dum amigo do Vietnam, chamado Lennon, John Lennon. O vómito da nossa colaboradora portuguesa justifica-se pelo facto da senhora estar no seu "estado interessante, conforme análise que se anexa."

A terminar:

"Chamamos a vossa atenção que também referimos a dualidade de critério do corpo policial da esquadra; enquanto uns apalpavam as nossas colaboradoras, especialmente o corpinho da portuguesa, outros caceteavam todos os homens, com violenta incidência no nosso Director Criativo que teve de receber tratamento num posto de enfermagem". Por fim, a Administração agradece que aguardemos serenamente o resultado do inquérito (que deve demorar uns três ou quatro meses) e, até lá, pede-nos o favor de evitarmos divertimentos desmesurados. "A imagem desta casa não pode ser prejudicada por estroinices sem sentido".

Por mim podem estar descansados. Tenho agora mais com que me preocupar; oferecer o Bó à rameira fumadeira, procurar um bom obstetra (não esquecer que tenho 42 anos já feitos), e tratar de mim com desvelos cuidados. Felizmente posso contar com a ajuda de Maria do Céu. É notória a sua recuperação física e moral. Já reconquistou as cores sadias, está mais gordinha e é muito meiga para mim. O mais difícil tem sido tentar arranjar-lhe um emprego. Na agência é impossível.
Faz por merecer o abrigo que desinteressadamente lhe ofereci.
É muito cuidada em tudo; trata da lida da casa e prepara as refeições, inclusive as do Bó.
Passou a dormir na minha cama. O cadeirão na salinha não lhe podia proporcionar noites repousadas.
Deita-se sempre mais tarde do que eu. 
Quando resolve ir para o quarto fá-lo sem acender a luz, devagar, com medo de me acordar. Eu estou semicerrada no sono mas sinto-a despir-se, deitar-se, encostar-se a mim, por vezes abraça-me, dá-me um beijo nos cabelos e acaba por adormecer.

Maria, Saigão, 4 de Julho/06


É sempre um prazer dedicar algum tempo e escrever-vos.

 Na sequência do relatório que a Agência enviou ao chefe da 23ª esquadra – e que vos contei ao detalhe na última crónica - esta vossa amiga foi notificada para comparecer na polícia, no próximo dia 19, a fim de lhes prestar "declarações detalhadas"; querem saber como e em que partes do corpo eu fui apalpada e, se for caso disso, tentar identificar os polícias que, na confusão, abusaram de mim.

Também o director criativo Nguyen Ahn tem que se deslocar à esquadra mostrar as zonas do corpo molestadas "pois o pequeno relatório do posto de enfermagem não é esclarecedor".

A grande novidade da semana é saber-se que o Sr. Chu-Lien vai pôr esta agência em tribunal ou, para não o fazer, vende o silêncio por milhões de Dongs. Que se teria passado?

Mas esta vossa amiga está hoje mais virada para continuar com a "saga da Família" neste dia cheio de chuva, enquanto o meu filho se acomoda no pequeno espaço do meu útero que lhe serve de berço, e não de albergue uterino, como já por aqui ouvi dizer.

Preparem-se. Vou ser longa.

 ...Uns quatro anos depois do nascimento de minha mãe, Barrete Salvação de Jesus, meu avô adoptivo, começa a aperceber-se do que lhe tinha acontecido em Maio de 1923; casara com uma mulher grávida que lhe negava diariamente a consumação do matrimónio, era pai duma menina bonita mas mestiça por cruzamento entre sua ingénua mulher com um mexicano e, por má sorte sua, continuava sem conseguir livrar-se do tremendo vício do vinho, normalmente tinto, com que se embebedava nas tertúlias tauromáquicas.

Jamais se impôs na difícil arte de pegador de toiros, não por lhe faltar saber e coragem mas, nas vésperas das actuações, para se esconder na camuflagem do medo, mais se encharcava na maldita bebida, tornando-se pesado, sonolento, sem garra e valentia.

Forcado da cara, no momento da sorte, a visão toldava-se-lhe e, à sua frente, dois toiros preparavam-se para a carga, quatro cornos em riste, embolados mas de respeito. Citava de largo, devagar, fixando os toiros como mandam as regras, e lá vinham os bichos com forças brutas aos derrotes do costume.

O meu avô toureava quase sempre o toiro que não era.

Tentara a sua sorte em Pamplona, nas Festas de S. Fermin, correndo à frente dos animais no dia do encierro, vestido a rigor, levando bem desfraldada a bandeira da República Portuguesa. Foi repisado por todos os toiros e cabrestos que corriam mais depressa do que ele. Levado para o hospital, inanimado, com fractura exposta no braço direito e várias escoriações por todo o corpo. Foi operado de urgência por um cirurgião carroceiro que lhe deixou o braço inutilizado para sempre. Este acidente, que recordou até ao fim da sua vida, pôs ponto final na sua carreira de forcado.

Mas nem tudo era mau. Antes pelo contrário.

O casamento com minha avó tinha salvado da ruína eminente a enorme quinta em Almeirim pois herdou o conhecimento de gente entendida nas andanças da lavoura, pecuária e afins. Nos campos férteis da Chamusca, Golegã e Alpiarça, floresciam os pomares, os sobreiros rendiam toneladas de cortiça, milhares de litros de bom vinho em caves conceituadas, envelheciam com o saber dos homens, o mel de diferentes aromas, paladares e colorações, era distribuído pelo País e estrangeiro, e os produtos hortícolas vendiam-se em todas as feiras do Ribatejo.

As duas famílias podiam agora gabar-se da escolha acertada dos novos touros de cobrição que refrescaram as vacas ansiosas. Desde então foi criado um novo ferro, junção das duas famílias, com duvidoso grafismo (SPJ – Salvação Purificação Jesus) mas que, quando em brasa, divisava os jovens animais para toda a vida.

Desses cruzamentos nasceram magníficos exemplares, bravos e nobres, com tal fortuna que desde logo passaram a ser disputados pelas grandes praças taurinas de Portugal, México e Espanha.

Toureiros afamados e aficionados exigentes gabavam os toiros ribatejanos. Uma das maiores honras da ganadaria foi o toiro "Castanho" ter-se recusado a colaborar na sorte suprema, acabando por ser indultado a pedido de milhares de lenços brancos, pombas brancas de paz, na brancura esgotadíssima da praça de La Real Maestranza, em Sevilha.

Até Manulete, um dos mais famosos do Mundo, no apogeu da sua carreira, declarara que grande parte do seu êxito se ficava a dever aos toiros de "Miura" e aos nobres animais "SPJ"....

(Fim da 1ª parte. Segunda parte na próxima semana)


Para Todos os Meus Amores

"... os talheres arrumaram-se, os convidados calaram-se e entreolharam-se" – escreve minha avó no precioso caderno, minha bíblia com sentido, a narrar o almoço de Páscoa em S. Miguel de Rio Torto, naquele dia 1 de Abril do ano de 1923.

Silêncio sepulcral em toda a sala. Um criado entra com mais uma grande travessa de cabrito assado mas, apercebendo-se que algo tinha hipnotizado os presentes, atreve-se a dizer:
"V. Senhorias não são demais servidos ?"

"Por Santa Maria de Guadalupe, claro que queremos mais, ora essa! O cabrito está como nuncadisse o Sr. padre Amaro". "Donde é essa Santa, padre ? - interrompeu o Sr. Infante de Camarina". "Do México - atalhou Amaroexactamente a Padroeira do México". "Julgava que fosse espanhola?! voltou o Infante". "Não importa – arruma Amaro - as Santas são do mundo inteiro. Minha Maria, conheço-te desde que nasceste, e posso afiançar-te que concebeste sem pecado. Não há que ter remorsos. O filho que geras tem, para ti, a mesma importância das flores que plantas na lezíria...". "Não será bem assim padre – interrompeu o patriarca. A nossa família tem um passado que nos orgulha e o ferro do nosso gado é conhecido em todo o mundo taurino. Não deve, nem pode,  ser manchado por um desaforo destes! Maria grávida ?. Esta não lembra ao diabo! ". "Cruzes, canhoto!"

Abdico de transcrever os parágrafos seguintes, agora por ela escritos em letra menos perceptível e por não terem nada a ver com a conversa do almoço mas sim com a descrição da sua ida à modista para a primeira prova do "lindo vestido de noiva". Mas retoma o assunto mais à frente e percebe-se que os convivas voltaram a comer, beber e conversar. Por omissão é-me muito difícil poder apontar os que, na grande mesa, tomavam o uso da palavra.

"...ora feitas as contas estamos então a uns seis meses do parto. E marido? Onde está o marido? Onde está esse homem que levou a nossa Maria à perdição?

Minha avó teria dito que não se podia contar com Lazaro Arteche Malaguilla, o mariachi.

"Então temos com urgência que encontrar um bom ferro. Os de Chamusca seria o ideal; boa família, bons costumes e com ambição... mais ano menos ano, ultrapassam os Miuras". "E porque não o filho do Barrete Salvação de Jesus, os de Almeirim?". "Necessário prudência. É um homem que já deve ter os seus 26 anos. E depois com aquela mania de querer enveredar por matador... nem novilheiro, nem bandarilheiro, nem forcado...não vai longe! ". "Pois  passa a vida a bebericar, como pode ele... !". "Isso, enfim...". "Enfim não!. Aqui em S. Miguel de Rio Tinto..."."Torto, Torto. S. Miguel de Rio Torto...". "Seja...pois nas tertúlias e pandegas é que ele se sente bem."

"Mas é mais fácil. A família está sem dote, precisa de dinheiro. E por aqui, graças a Deus, é coisa que não falta..."

Pois parece ter ficado decidido ser Barrete Salvação de Jesus (tinha exactamente o mesmo nome do pai) o futuro marido de minha avó.

"Mas a nossa Maria chama-se Maria de Jesus Purificação. Se toma o nome do marido, como é da praxe,  passa a chamar-se Maria de Jesus Purificação Jesus. Não vos parece Jesus a mais?". "Nem a mais, nem a menos," (aqui não tenho eu dúvidas tratar-se do padre Amaro) "o nome do Senhor não é um exercício de soma ou multiplicação".

Já vos contei que de facto minha avó casou com a promessa intima de que "ninguém me tocará". E o noivo, no próprio dia do casamento, sob os efeitos duma monumental bebedeira, assina um documento formal onde se pode ler  "... e ser-me-á  indiferente o eventual aspecto mestiço da criança, pois assumir-me-ei  como seu pai legitimo."

Atrevo-me a dizer-vos, meus queridos Truquistas, que a paixão que sinto por esta minha avó, mãe e amiga (ao ponto de vos estar a massacrar com coisas do passado que a apenas me dizem respeito), dá-me conforto espiritual e físico.

E sabem uma coisa? Fiquei tão bem com a confissão que vos fiz na semana passada.

Tão bem...

(A pequenina fotografia que vos mando mostra a graciosidade dos sapatinhos que minha avó estreou no dia do casamento da irmã, no México).

Maria, Saigão, 21 de Junho/06 


A todo o Portugal Truquista.

 É noite.
Escrevo esta crónica agora, sim, neste momento, já lúcida. Completamente lúcida.
Depois do dia de ontem, do disfarce da noite onde me escondi de mim, do jantar, da droga na discoteca, dos copos a mais, do interrogatório na esquadra, da chegada de Maria do Céu, é altura enfim de encarar a realidade e contá-la a todos:

Estou grávida.

Já sem dúvidas. Análises positivas.
E o único pai possível para esta minha criança, é José Manuel Figueiroa, com quem dormi desenfreadamente naquele fim-de-semana do mês de Março.

Porque só agora vos conto? Porque eu própria julgo viver um pesadelo.
Num dos vários desvarios do amor que vivemos naquele fim-de-semana de que vos dei conta, bem me lembro de o ouvir dizer: "vamos fazer um filho!". Não era uma pergunta, era uma convicção bem afirmativa. Respondi-lhe com palavras gritantes de prazer: "vamos sim, meu amor, meu querido, meu amante, mas que o nosso filho saiba amar como nós".
Quando vi Figueiroa na morgue, em Hanoi, frio e roxo, ser-me-ia impossível admitir que, dentro de mim, nas entranhas do meu ser, já se desenvolvia um fruto que ambos, eu e ele, tínhamos compartilhado na fertilização.  
No envolvimento amoroso não tivemos nenhum cuidado especial porque, naquela última semana de Março, estava exactamente num calendário de confiança, a dar crédito à  regularidade dos meus "dias difíceis".  Mas, na terceira semana do mês seguinte, (sempre nas terceiras semanas sentia-me um monstro pré-menstrual), não me apareceu o período.
Nada preocupante. A minha querida avozinha, a partir dos seus 17 anos, passou a ser duma grande irregularidade. Chegara agora a minha vez.
Mas os sintomas de azia, vómitos e náuseas, cada vez mais frequentes, levaram-me a consultar um médico. Daí as análises que confirmaram a minha desconfiança. Ia ser mãe.
Mas fiz disparates infelizes; entreguei-me com avidez doentia ao trabalho na agência, ao arranjo e limpeza da minha casa, a uma ou outra noitada na "Apocalypse Now" com colegas, a um "cigarrito" de vez em quando e, por fim, alguns copos para dar de beber à dor.

Mas, quando na esquadra, a noite passada, sentada em frente do já ensonado policia que me interrogava sobre "o caso da bandeira", vomitei para cima das folhas manuscritas e da farda, ele, o estúpido ignorante, não sabendo o mal que me fazia, deu um pulo da cadeira, enojado, lívido de raiva; "sua grávida da merda, desapareça".
O homem disse-o por dizer. Mas tomei enfim consciência que me tinha que assumir, definitivamente, como futura mãe. O estar grávida não é drama nenhum.
E aqui estou no silêncio da noite escrevendo-vos com imensas saudades de Portugal... ...que nacionalidade vou dar a meu filho? Adoro o meu País, mas não estou a acreditar nos portugueses. Estão parvos. Todos parvos.

A criança nascer aqui neste Vietnam? Situação a pensar.

E, no estado civil de "mãe-solteira-viúva", que vou dizer a meu filho quando me perguntar pelo pai? Que morreu, de facto, ficando a vida para mim mais escura e que ele, filho ou filha, tanto faz, me fez voltar a ver luz?
Estou serena mas cansada. O dia está já a clarear. Fico por aqui. Vou de novo para a cama.
Peço-vos, amigos meus, que me ajudem. O problema não é fácil.

Maria, Saigão, 17 de Junho/06


Meus Queridos Truquistas

Era de esperar.
Foi Hanoi que ganhou a proposta que elaborou para a "Campanha Turismo".
O inquérito, pelo sistema  "street corner", deu ao conceito que tínhamos arduamente preparado, uma percentagem de interesse muito pequena. É a outra proposta que, solenemente, vai ser apresentada ao cliente Công Hòa Xã Hôi Chù Nghia Viêt Nam (leiam como já sei escrever "República Socialista do Vietnam").
Quando os meus colegas criativos regressaram da capital, já não tinham esperanças dum resultado favorável.
Mas não temos "mau perder". E, enquanto os outros já partiram para Cannes (tinha-lhes sido prometido se ganhassem o concurso), nós cotizámo-nos e fizemos um jantar de convívio, cheio de alegria, de "copos", de desesperante vingança pelo infortúnio imerecido.
Depois do jantar, com muita coisa para comer e beber, fomos para uma discoteca apropriada para a ocasião: prostitutas, lésbicas e gays à disposição do pessoal. Era só escolher.
Mantive-me encostada a um canto tentando com algum esforço compartilhar a alegria colectiva. Mas não ando bem. Há uns dias que tenho vómitos com frequência.
Valeu um cigarro que me deram e não me fiz rogada; fumei-o avidamente. Já tinha experimentado o prazer daquelas folhinhas parecidas com chá, enroladas em fina mortalha, o fósforo que se acende, e aquele fumo que se expira para os pulmões e parece ficar por lá retido. Senti então, um desprendimento do mundo que me rodeia. Ando nas alturas, sobrevoo pelo céu e nada me importa na vida. Só aquele momento pode ser vivido individualmente porque sou dona de tudo e nada nem ninguém é superior a mim. Depois, mais tarde, ainda me é mostrado um pratinho escuro, com pequenas e estreitas filinhas dum pó muito branco e muito fino. Com uma palhinha estilo "cocktail", pedem-me para inalar uma das doses. O efeito da droga é quase imediato. O sangue ferve a poucos graus. Senti uma espécie de orgasmo sexual.
Kim disse-me para eu ter cuidado; a dose era superior 7,5 mg.

Mas Nguyen Ahn que se sente realizado como director criativo quando, para se inspirar, visita discotecas e supermercados, ergue um copo, faz várias vénias como se estivesse enfrentando Buda para um combate de Judo, dá um grande hurra a John Lennon e trauteia a canção "Strawberry Fields Forever". Todos nós o acompanhamos; foi este o tema chave da nossa proposta de campanha para o reposicionamento do Vietnam.
Senti-me beijada por uma gaja lésbica que me deixou uma flor entre os meus seios.
Dei um estalo a um gajo que me pôs uma das mãos entre as pernas.
Estalo forte, sonoro e com efeitos imediatos. Os óculos do fulano caíram ao chão e ficaram esmigalhados num segundo. Quis pedir-me desculpa mas, sem os óculos, nunca mais me encontrou.
Inesperadamente a discoteca é invadida por um série de policias. Queriam saber dos autores "da nova bandeira do Vietnam" que sabiam estarem ali. Alguém (seria Hanói?) tinha-lhes endereçado uma fotocópia a cores da "nova bandeira" sem a heróica estrela de cinco pontas.
Todos para a esquadra. A policia compreendeu de imediato que estávamos com uma grande pedrada.
Registaram os nomes, moradas, telefones e o local de trabalho de cada um de nós.
Ás 5 da manhã não eram horas para acordar o Bó. Deixei-o a dormir com a rameira.

Bao-Dai levou-me a casa. Demorou quase uma hora a encontrar a minha rua...
A grande surpresa da noite foi encontrar, sentada no chão e encostada à minha porta, suja e dormindo, Maria de Céu.
Enfim! Chegou. Tinha levado quase dois meses a fazer a viagem.
Acordei-a. Abri a porta. Entrámos quase sem palavras. O sono de ambas era uma pedra pesadíssima.

Maria, Saigão, 16 de Junho/06

 (Nota: a publicação da maqueta da alteração da bandeira do Vietnam que a Agência propôs, é da inteira responsabilidade do Sr. Luís Gaspar)


Truquistas,
...várias coisas, ao mesmo tempo, para ficarem baralhados.

 Ainda não há noticias.  As duas campanhas (Cliente Turismo, como já sabem), continuam a ser avaliadas; mas corre por aqui uma espécie de boato pouco simpático: a equipa criativa de Hanói foi vista a jantar no Hotel Horrisson com o director da empresa que vai elaborar o teste das duas campanhas. Como já vos disse, a que sair do estudo com melhores resultados, será apresentada ao cliente. Tratando-se da mesma agência não entendo a necessidade deste suborno.
Entre os meus colegas, o Campeonato do Mundo de Futebol, veio enfim pôr ponto final ao anterior desconhecimento geográfico; o que é e onde fica Portugal?
Mas agora falam muito do meu País; conhecem  Figo e Deco (mais um ou outro jogador),  mas lamentam não estar a selecção do Vietnam - curiosamente treinada por um português de nome Calisto - representada nesta próxima competição mundial. Dizem-me, convictos, que os árbitros tiveram culpas no cartório, pois a selecção era superior, na defesa e no ataque, às selecções da Ásia que foram apuradas. A febre pela bola é de tal forma elevada que o próprio Primeiro Ministro, também adepto incondicional deste desporto, vai promulgar uma lei vitalícia que permite a instalação de ecrãs de plasma na Assembleia Nacional para que os seus 450 membros possam assistir e dissertar sobre os principais encontros deste campeonato do Mundo.

Comprei, para o meu cão, um pequenino cesto almofadado que aperto ao guiador da bicicleta. É a cadeirinha do Bó da minha casa até à sua "baby-sitter". A velha rameira já o espera  à janela com o seu interminável cigarro. Sigo depois para as aulas de "Tai Chi Tenssen" e, quando regresso ao fim do dia de trabalho, lá está ela na sua janela sempre aberta, com o meu cãozinho ao lado. Ele fica risonho quando me vê. Ela, triste. O cão faz-lhe companhia o dia inteiro e está a afeiçoar-se ao animal.
Julgo que "enfiei um barrete". Com quase dois meses de vida o Bó continua no mesmo tamanho. Não é seguramente o cão de guarda que me venderam.
E a garantia já expirou.

Na semana passada esqueci-me de vos contar a gargalhada geral, seguida duma grande salva de palmas, por se ter visto pousar docemente, na Praça de S. Pedro, em Roma, a Santíssima Virgem de Fátima. O piloto do helicóptero fez um trabalho perfeito. Celebrava-se a fé de João Paulo II por esta Santa o ter safo de morrer dum tiro assassino,  em 13 de Maio de 1981. A televisão explorou esta imagem o dia inteiro pondo a ridículo o Cristianismo.

Tenho um colega gráfico, o simpático Bao-Dai, que é narciso; faz um risco num papel e vem mostrar-mo, vaidoso. Da escola de "vénias medievais", imita d'Artagnan  e faz rir a agencia inteira. Quando as dezenas de  revistas que recebemos acabam o seu circulo de vida, Bao-Dai abre as janelas que dão para um largo frondoso e grita a plenos pulmões; "tomai meu povo!, notícias frescas".
Na semana passada recebo um vizinho a agradecer as revistas mas também a reclamar não serem as notícias tão frescas quanto isso "têm, pelo menos, três semanas", disse-me.

Enfim! Recebi um postal de Maria do Céu. Está em Paris.
Para minha grande surpresa, julgo ter percebido que vem de boleia até aqui.

Maria, Saigão (hoje com chuva torrencial), 30 de Maio/06


Meus amigos e ternos Truquistas.

Alguns de vós têm-me pedido para escrever acerca das religiões que se idolatram no Vietnam. Também insistem para descrever os locais de maior interesse, e a política desta Republica Socialista.

Mas prometi-me não fazer das minhas crónicas um roteiro turístico, nem preocupar-me com a actuação do governo e muito menos reflectir e escrever sobre as religiões.

O que faço – e continuarei a fazer – é contar-vos o meu dia-a-dia, desde que me levanto até ao momento em que me deito.

Mas, paradoxalmente, sem querer, acabo por ser vossa cicerone quando descrevo  o ambiente da minha rua, os meandros da agência de publicidade onde trabalho, os hotéis, os restaurantes e, quando vos contar a maravilha do mercado de Be Thanh ou o que  senti quando entrei no Museu dos Despojos da Guerra, estarei a responder a parte do que me pedem. Mas, debruçar-me sobre problemas religiosos, nem pensar!

Sou laica por convicção. Não acredito nas doutrinas das religiões, velhas ou novas, vivas ou mortas. E, quando me perguntam se o Cristianismo é perseguido neste País, só vos posso dizer que nunca presenciei qualquer perseguição. Aliás, Saigão herdou dos franceses a espectacular catedral de Notre Dame, onde se celebra missa para a minoria católica. Na última a que assisti a Igreja tinha, seguramente, umas duzentas pessoas.

Os budistas não entendem a razão do Cristianismo não ajustar o uso do preservativo à sua doutrina. E também não percebem a devoção a imagens santificadas com o coração fora do peito.

Mas, para perceberem a minha falta de fé, têm que conhecer  a história da minha família que praticamente se encontra descrita naquele bizarro diário que minha avó me legou conjuntamente com o célebre crucifixo de madrepérola que passou a ser meu no dia que antecedeu a sua morte. Trago-o sempre comigo. Esta peça, mais simbólica  que valiosa, está directamente associada ao nascimento de minha mãe que não cheguei a conhecer.

Sei de cor aquele manuscrito desordenado em datas e conteúdos mas, para entenderam a minha dificuldade em arquitectar uma sequência lógica no tempo, basta dizer-vos que o inesquecível almoço  Pascal do ano de 1923, é retomado umas vinte páginas mais à frente tendo, entrementes, receitas de culinária, pensamentos de ocasião,  desenhos de croché, e muitas pétalas de flores que mancharam a letrinha cursiva tornando-a, aqui e além, quase ilegível.

Mesmo assim, numa dessas páginas leio este delicioso texto: "... poucos dias depois em que confessei a entrega da minha virgindade ao amor tão belo e tão terno de Luís Arteche Malaguilla, pai do filho que eu gerava, entrei na igreja de S. Miguel de Rio Torto, recentemente caiada, e lá O vi, o eterno crucificado, suplicando por uma alma pura que o liberte daquele eterno sofrimento. Há milénios que exploram a sua dor, de terra em terra, de feira em feira, de sermão em sermão. Mas onde encontrar neste mundo criado por Seu Pai Divino um cristão não pecador?

Deus dá a todos o direito de lutar pela justiça, diz o senhor padre Amaro. Mas como posso eu, Maria de Jesus, grávida dum homem que vi uma única vez na vida, e tem a certeza que nesta vida nunca mais o verá,  lutar pela injustiça dum casamento de conveniência com um bêbado dum forcado rabejador?". E, mais adiante, concluía: "... agarrei com as  minhas mãos febris o crucifixo de prata e li as letras góticas pela milionésima vez; « o caminho para Deus é através da devoção e do sofrimento ».

Pois bem: podem-me levar ao altar vestida de virgem, mas ninguém me tocará".

Não esquecer Truquistas que minha querida avó tinha apenas 16 anos quando escreveu estas linhas.

 ULTIMA HORA: A agência decidiu dispensar os serviços do sr. Chu-Lien (o director comercial que me recebeu no primeiro dia em que entrei nesta casa e que derreteu no Casino os nossos ordenados de Abril) com uma elevada indemnização. Diz-se que ele "sabia muito"...

 E, por último, adivinhem a quem pertence a mais bonita varanda de Saigão, na fotografia anexa!

Maria, Saigão, 6 de Junho/06


Truquistas,
...várias coisas, ao mesmo tempo, para ficarem baralhados.

Ainda não há noticias.  As duas campanhas (Cliente Turismo, como já sabem), continuam a ser avaliadas; mas corre por aqui uma espécie de boato pouco simpático: a equipa criativa de Hanói foi vista a jantar no Hotel Horrisson com o director da empresa que vai elaborar o teste das duas campanhas. Como já vos disse, a que sair do estudo com melhores resultados, será apresentada ao cliente. Tratando-se da mesma agência não entendo a necessidade deste suborno.
Entre os meus colegas, o Campeonato do Mundo de Futebol, veio enfim pôr ponto final ao anterior desconhecimento geográfico; o que é e onde fica Portugal?

Mas agora falam muito do meu País; conhecem  Figo e Deco (mais um ou outro jogador),  mas lamentam não estar a selecção do Vietnam - curiosamente treinada por um português de nome Calisto - representada nesta próxima competição mundial. Dizem-me, convictos, que os árbitros tiveram culpas no cartório, pois a selecção era superior, na defesa e no ataque, às selecções da Ásia que foram apuradas. A febre pela bola é de tal forma elevada que o próprio Primeiro Ministro, também adepto incondicional deste desporto, vai promulgar uma lei vitalícia que permite a instalação de ecrãs de plasma na Assembleia Nacional para que os seus 450 membros possam assistir e dissertar sobre os principais encontros deste campeonato do Mundo.

Comprei, para o meu cão, um pequenino cesto almofadado que aperto ao guiador da bicicleta. É a cadeirinha do Bó da minha casa até à sua "baby-sitter". A valha rameira já o espera  à janela com o seu interminável cigarro. Sigo depois para as aulas de "Tai Chi Tenssen" e, quando regresso ao fim do dia de trabalho, lá está ela na sua janela sempre aberta, com o meu cãozinho ao lado. Ele fica risonho quando me vê. Ela, triste. O cão faz-lhe companhia o dia inteiro e está a afeiçoar-se ao animal.
Julgo que "enfiei um barrete". Com quase dois meses de vida o Bó continua no mesmo tamanho. Não é seguramente o cão de guarda que me venderam.
E a garantia já expirou.

Na semana passada esqueci-me de vos contar a gargalhada geral, seguida duma grande salva de palmas, por se ter visto pousar docemente, na Praça de S. Pedro, em Roma, a Santíssima Virgem de Fátima. O piloto do helicóptero fez um trabalho perfeito. Celebrava-se a fé de João Paulo II por esta Santa o ter safo de morrer dum tiro assassino,  em 13 de Maio de 1981. A televisão explorou esta imagem o dia inteiro pondo a ridículo o Cristianismo.
Tenho um colega gráfico, o simpático Bao-Dai, que é narciso; faz um risco num papel e vem mostrar-mo, vaidoso. Da escola de "vénias medievais", imita d'Artagnan  e faz rir a agencia inteira. Quando as dezenas de  revistas que recebemos acabam o seu circulo de vida, Bao-Dai abre as janelas que dão para um largo frondoso e grita a plenos pulmões; "tomai meu povo!, notícias frescas".
Na semana passada recebo um vizinho a agradecer as revistas mas também a reclamar não serem as notícias tão frescas quanto isso "têm, pelo menos, três semanas", disse-me.
Enfim! Recebi um postal de Maria do Céu. Está em Paris.

Para minha grande surpresa, julgo ter percebido que vem de boleia até aqui.

Maria, Saigão (hoje com chuva torrencial), 30 de Maio/06


Queridos.

A Directora e a equipa criativa, partiram esta manhã para Hanói no primeiro avião da Vietnam Airlines. Com eles a campanha do "Turismo" que vai confrontar-se, à laia de despique, com o trabalho dos colegas da sede. Duas campanhas, dois caminhos para revigorar  este País que, turisticamente, continua a arcar com o fantasma da guerra.
As duas campanhas vão ser discutidas e depois testadas. A que melhor responder ao breafing será então apresentada ao cliente.

Planeei a agenda da direcção até ao fim do mês, flores frescas em todos os gabinetes, nova  marca de chá (com total agrado dos meus colegas) e mandei trocar as  fotografias de Ho Chi Minh  para que cada um de nós não esteja sempre a ver a mesma. Um dia calmo o de hoje que me permite voltar à "história da minha família" iniciada na crónica de 14 de Março.
... Maria de Jesus Purificação - a minha querida e santa avó - manteve-se na cidade de Guadalajara até às vésperas do dia em que o vapor zarpou de Veracruz com destino a Portugal.. A sua presença na tradicional festa da Páscoa, que naquele ano de 1923 se celebrou em 1 de Abril, era uma necessidade irrefutável.

Depois da euforia do casamento de sua irmã e da noite inolvidável da serenata, Maria de Jesus visitou, em várias excursões, as lindas praias do Pacifico (que recordou até à sua morte) e opinava sobre o movimento Zapatista que, com as palavras de ordem "Ya Basta", continuava a levar a água ao seu moinho.
Para aquela mulherzinha de 16 anos foi um tormento a travessia do Atlântico e, quando na entrada do Tejo respirou bem fundo o ar de Portugal, num instinto altruísta, benzeu-se com o crucifixo de madrepérola, recordação perpétua da sua primeira experiência de amor carnal.
No casarão de S. Miguel de Rio Torto, naquela imensa sala de jantar com uma mesa de tampo de pedra que levava umas trinta pessoas, era hábito reunirem-se as abastadas famílias do Ribatejo, para o almoço pascal; os Palha Bianco, os Infante da Camarina, os Manuel Vidigal, e o imprescindível padre Amaro, santa criatura sempre pronta a apaziguar as pequenas altercações entre as famílias, quando estas, à mesa, comendo bem e bebendo melhor, abordavam  o comportamento insaciável dos seus cobridores, o "traje de luzes", o "trapio" a valentia dos toureiros, ou o cavalo Puro-Sangue Lusitano.
Servia-se o cabrito sempre bem regado com o bom vinho tinto das adegas privadas.

"E os Olé, meus senhores, os Olé da Maestranza. Este êxtase  não é profano, é uma benção do céu. É a recompensa do nosso esforço. É um orgasmo, digo eu".

"O senhor está sempre com a Maestranza na boca ! Esquece-se, ou faz-se esquecido, do êxito que El Rodriguito obteve em Salvaterra com os meus toiros. Até foi levado em ombros..." 

"Comparar Salvaterra com Sevilha, meu caro amigo, é o mesmo que fazer comparações entre Macarena e a virgem que se anuncia lá para 1916, 17,  ali  para os lados de Fátima...".

"Pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, – interrompeu agastado o sr. Padre Amaro –          nem na celebração da Santa Páscoa?. Já chega! Já Chega de toiros, não? – e virando-se para minha avó que saboreava a carne -  E a nossa Maria de Jesus, não tem nada para nos contar de Guadalajara?"

"Tenho sim, senhor. Vou ser mãe!"

Todos à mesa gargalharam. E aproveitaram aquele momento irónico para mais um brinde com os copos bem cheios e bem ao alto.

"Ao filho da nossa Maria, hurra! hurra! hurra!"

"Oh, minha querida filha! – continuou o padre Amaro rindo com prazer – Só se foi por intercessão do Espirito Santo...."

"Está enganado senhor padre. Foi por penetração de Lazaro Arteche Malaguilla".

Queridos Truquistas: Isto está escrito com a bonita letra de minha querida avozinha (podem-na apreciar no anexo) e tem muita piada. Mas hoje fico por aqui.

Maria, Saigão 24 de Maio/06


Da Maria de todos os Portugueses, de todos os Truquistas...
...mas desta vez a Maria apenas de alguns.

 Pensei desde a primeira hora ignorar os Truquistas  que têm posto algumas reticências acerca da veracidade das minhas crónicas. Mas, por respeito ao Sr. Luís Gaspar (que, com alguma regularidade, pede-me para dar resposta aos e-mails que contestam o meu dia-a-dia aqui no Vietnam) resolvi cometer o pecado de mandar esses Truquistas a um passeio a Sintra, comerem umas queijadinhas, e entreterem-se com a vida da mediática Lili Caneças que na Internet diz-se ser a tia mais famosa de Portugal.

A diferença, meus amigos incrédulos é que eu, Maria da Purificação Jesus, nunca fiz uma plástica nem vou ensinar tudo o que sei ao "marchant".

Ora, se acreditam nessa mulher que ninguém sabe o que faz na vida, para lá das plásticas e comezainas, porque descrêem desta vossa amiga que vos abre o coração, vive honestamente do seu trabalho e, se saiu desse Portugal que agora se mostra ao mundo inteiro como o País das Greves Vegetarianas (segundo julgo saber o actual governo está a alterar as leis da horta de cada cidadão), foi por procurar um refúgio com algum secretismo que lhe proporcionasse viver em paz consigo própria, longe daquele desvario de amor em que andava envolvida com o já defunto Figueiroa, seu amor eterno.

Se o que vos conto das andanças publicitárias serem ou não semelhantes ao que se passa nas Agências de Portugal, lembro-vos que o mundo inteiro, incluindo o terceiro, está a breve trecho a caminho da globalização, ou seja, passa a ser uma única civilização, um único pensamento, um único produto.

Dizem as mentes brilhantes que para isto resultar, deve-se aplicar a estratégia "Unique Selling Proposition" teoria que já deu mostras de o deixar de ser quando se aplicou, à laia de experiência piloto, numa pequena comunidade Sueca.

Claro que há simples arestas a limar; como resolver a corrupção, os sacos encarnados (aqui, no Vietnam, não são azuis), as religiões zangadas com Deus e Deus com elas, a pedofilia, o favoritismo, as indemnizações que ultrajam a pobreza, o rico que quer ser mais rico, o pobre que quer deixar de o ser ?

Como resolver a escalada contributiva  que mais tarde ou mais cedo ultrapassa em valor os ganhos auferidos por cada um? Como resolver a justiça que falha, que mente, que ignora ?

Como resolver o equilíbrio universal da natalidade ? A doença que se espalha na pobreza  por a esta faltar o ácido acetilsalicílico? Como resolver a premente necessidade de aperfeiçoar o poder bélico dos Povos?

A tal "U.S.P.", dizem, vai dar resposta pronta. Basta fazer uma revisão ao fundamental e, em anexo, à laia de reforço,  "think global, act local".

Ou seja: a partir da "Unique Selling Proposition" cada país globalizado deve aplicar a teoria ajustando-a ao seu perfil e à sua cultura enraizada.  

Ou seja, Truquistas, fica tudo na mesma.

Senhoras Amand Booth, Cristina Oliveira, Silvia, Odete e  Senhores Carlos António, João Manuel, Octavio Moor, e um anónimo que bem gostava de saber quem é; eu  sou a Maria que em Fevereiro passado deixou a praia do Meco e a Truca, e veio para esta Saigão, Ho Chi Minh se preferirem, trabalhar como secretária da Directora duma grande agencia de publicidade que existe nas Américas, Europa, África, Ásia e Oceânia.

Venham ter comigo. Façam como a minha amiga Maria do Céu de quem já estou a estranhar falta de notícias.

 Maria, Saigão 15 de Maio/06 


Mais uma crónica para os meus queridos Truquistas.

Uma velha veterana da guerra, prostituta de profissão, passa agora os dias à janela da sua casa, num primeiro andar, dois quarteirões abaixo do meu apartamento. Com os seus perpétuos cigarros, ainda vai fazendo um ou outro convidativo sinal para os turistas, sem qualquer esperança dum engate. O Mundo já deixou de ser seu. Conserva ainda uma leve brisa da linda mulher que deveria ter sido mas, com o fim da guerra e a saída dos militares de Saigão, deixou-se engordar e envelhecer.

Vejo-a todos os dias, fala-me com simpatia e,  num rudimentar inglês,  conta-me as coisas da sua vida que gosta de recordar ; era a mais bonita de todas as putas daquela rua. Os marines davam-lhe o que ela pedia sem pestanejarem. Mesmo já em fuga, naquele celebre mês de Março de 1973, não teve mãos a medir. Procuravam-na para um ultimo adeus e deixavam-lhe os últimos dólares.                    

Quando a semana passada comprei um cãozinho, prontificou-se de imediato a tomar conta do cachorro e agora, todos os dias, quando de manhã venho para a Agência, já me espera à janela para o receber e dar-lhe a primeira papinha do dia.
Desde logo baptizou o meu cão de Bó, em homenagem a um jovem imberbe e loiro marine com quem ia "por amor". Este rapaz era assim apelidado de Bó porque sonhava todos os dias com a sua metralhadora e, em voz alta, não se lhe ouvia "pum-pum-pum", como seria natural, mas sim "bó-bó-bó". Acabou estilhaçado numa emboscada, uns meses antes da saída dos americanos do Vietname.

Uma prostituta também tem coração e ela chorou a morte do desventurado militar.
"Que não fique a minha cara, que não fique a minha cara"- disse-me quando me preparava para lhe tirar a fotografia que mando aos meus Truquistas (vejam bem se o meu cão não é um amor !).
Há muito que rejeita ser fotografada. Não quer que se vejam as rugas que são a sombra do seu passado.
Sobre a juventude é peremptória; as miúdas de agora que aproveitem enquanto é tempo. A pele delas tão lisa, tão fresca, tão bonita, não dura sempre. Tem uma vida efémera.

Todos os dias (quer de bicicleta quer a pé) dou os "bons dias" àquele mundo de jovens prostitutas que vêm para a rua ao encontro dos turistas que as procuram com bom dinheiro na carteira.
Todas elas já aprenderam a lição graciosa que a "baby-sitter" do meu cão lhes dá, como uma avó terna e meiga que adormece o seu netinho ; nunca deixarem de comer arroz e nada de Mac Donalds; os clientes europeus e americanos, procuram  mulheres magras de olhos em bico, angélicos e ingénuos e, acima de tudo, farejam as celebres virgens de Saigão. Eu conheço uma muito jovem e muito crente em Buda (deverá ter, talvez, os seus catorze anos) que "já passou por virgem umas 40 vezes" – disse-me ela a sorrir.
Falam muito mal o Inglês. Algumas palavras do tempo da ocupação americana ("fuck, fuck ?", "only touch", "short time"," five  dollars only"), enquanto os proxenetas, que andam pela minha rua de motorizada, têm uma única frase para os clientes; "Good Vietnamese girl, very good" que a repetem milhares de vezes durante o dia.
"A vida de puta é desgastante" confessam, "e a juventude perde-se de um dia para o outro".
Quando hoje abri o conmputador (que prazer tamanho quando escrevo "mytruca...") reparei que, por lapso, datei a ultima crónica como sendo de 26 de Maio.

É óbvio que queria dizer 26 de Abril.
Vão perdoar, não vão?
Se não me perdoarem não vos mando milhares de beijinhos.

Maria, Saigão 3 de Maio/06

P.S. Segue, junto, a fotografia do meu Bó.



Queridos Truquistas

Ontem, dia 25 de Abril, quando entrei no meu gabinete de trabalho, emocionei-me com o perfume e a cor de quarenta e duas rosas. A Agência inteira (inclusive alguns clientes) subscreviam um cartão escrito com linda caligrafia. A mensagem, com texto em Vietnamita, foi traduzida pela minha directora, depois do beijo que me ofereceu; "As adversidades da vida fazem parte da própria vida. Supera-as e sê sempre muito feliz".
Limpei as minhas lágrimas, tão sinceras quanto eu própria, percorri todos os gabinetes e agradeci aos meus colegas a significativa homenagem. 
Fez ontem um ano que, naquela linda tarde de areia doirada, eu e Figueiroa corríamos pela praia do Meco, mesmo à beira das ondas que batiam com força nas nossas pernas... Mas regressar neste momento ao passado, não.

Vamos ao presente:

Julgo que a Agência queria perdoar a atitude irreflectida do senhor Chu-Lien ao gastar os nossos ordenados no casino, mas estão a vir ao de cima outras situações que, a confirmarem-se,  põem em causa a continuada colaboração do director comercial.
Uma dessas questões é bastante grave, muito especialmente por também trazer a tona da água um cliente, grande anunciante em afixação exterior.

Ao que parece, todos os meses, o Sr. Chu-Lien telefonava para o chefe de publicidade do tal cliente (compreenderão eu ocultar) perguntando-lhe quantos painéis poderia mandar facturar. Uma das ultimas facturas descriminava 150 paineis por todo o País, quando apenas existiam 15 em Hanoi, outros 15 aqui em Ho Chi Minh, 8 em Vung Tau e apenas 2 na principal avenida de  Can Tho. Ou seja um total de 40 paineis. Onde estão os outros 110?
Ao que se julga, em boca fechada, é que os 150 paineis foram de facto pagos pelo cliente mas o valor referente a 110 afixações, era devolvido, a nível de "desconto especial" e, depois, não sei como, Chu-Lien e o cliente, distribuíam o dinheiro pelas slots-machines do Casino.

Um outro caso prende-se com a admissão recente duma executiva de contas,  cujo perfil de funções anterior era o de secretária do Director Geral dum cliente prospecto que, no concurso, seleccionou esta agencia por ter tido a garantia de que admitiríamos a sua secretária. Este "negócio" foi tratado directamente com Chu-Lien na fase das  negociações dos "incentivos comerciais e fiscais" que passaria a usufruir na nossa casa. O ordenado da nova e arrogante executiva é o mais elevado de todos os outros accounts com a agravante de não ter horário de trabalho definido, ou seja; é a ultima a entrar e a primeira a sair.
Enfim, tenho pena de Chu-Lien. Vamos ver o que lhe reserva o futuro. Por enquanto está suspenso de exercer as suas funções.
E agora vou levar este portátil para casa. Concluirei a crónica de hoje no meu apartamento.

oooooooooo

Entrei num templo para me consolar com a imagem feliz de Buda. Ofereci-lhe duas rosas perante o olhar incrédulo dum vietnamita em oração. Com a minha pequenina máquina digital tirei a fotografia que vos mando... e quando cheguei a casa tinha carta duma amiga portuguesa, Maria do Céu, de Lisboa, da Rua do Patrocínio, à Estrela. Pede-me asilo durante uns dias. Diz-me estar farta da vida e principalmente farta de Portugal.
Pelo que vejo, Maria do Céu, lês o que escrevo para a Truca.
Vem. Arranjo-te guarida.

Maria, Saigão 26 de Maio/06


Truquistas, amo-vos !

Cheguei hoje um pouco mais tarde à agência. Chove. Está triste o dia.
Regressei de Hanoi ontem, algumas horas depois de me ter despedido do meu querido Figueiroa que partiu para Portugal num caixão de chumbo. O meu amante, o homem da minha vida, morreu.

E quando na morgue, fria e húmida,  no dia 15, à noite, eu e duas jovens inglesas vimos abrir uma gaveta frigorifica, confirmei de imediato que aquele homem nu e morto, tal como um belo deus grego, era João Manuel Figueiroa de Meneses, 36 anos, português, que por amor me tinha vindo visitar ao Vietnam e por amor tinha morrido.
Assinávamos vários papeis que um homem de bata verde nos apresentou quando, esbaforida, mal podendo andar por causa do quimono, chega a soprano, a Cio-Cio-San, a Butterfly, que soubera desta morte na altura em que terminava a ária "Tu? Tu?. Piccolo Iddio! Amore mio, fior di giglio e di rosa" e se trespassava no 23º hara-kiri da sua vida de gueixa pucciniana. Viera logo, desprezando os frenéticos aplausos do esgotado teatro. Mas fazia questão de  saber o que se passara porque, de certo modo, Figueiroa viera com ela de Portugal, a seu pedido, e sentia-se moralmente responsável pela tragédia. Ele dissera-lhe que iria a Ho-Chi-Minh prestar homenagem ao grande Herói mas, que diabo, embora lhe desse carta branca, já estranhava tão longa cerimónia.
Convidou-nos para a suite do Hilton Hanoi Opera Hotel onde estava hospedada.
E então? Qual a causa da morte daquele homem lúcido que respirava saúde?
Transcrevo do que bem me lembro; as palavras das duas jovens inglesas, que com ele viajaram num voo de  Saigão para Hanoi, naquela noite fatídica de 26 de Março e que só agora, depois da morosa burocracia e do minucioso inquérito, se revelava publicamente o acontecimento, eram palavras sinceras e comoventes.
Mantive-me sempre calma a ouvir a experiência vivida pelas duas raparigas: o avião da Vietnam Airlines levantou às horas previstas e o lugar de Elisabeth era ao lado do de Figueiroa. Não lhe passou despercebida a beleza do meu amante e, quando ele lhe disse, desinteressado, que "a vida são dois dias", insinuou-o a acompanhá-la aos lavabos. Ele não se fez rogado. Mas foi tão obvia a movimentação do casal que uma tripulante, experiente espectadora destes amoricos nas alturas, reparou que entravam duas pessoas no exíguo sanitário da aeronave. Por brincadeira segredou a uma colega, esta a outra, e mais outra ainda até chegar aos ouvidos do comandante. Este, bonacheirão, levanta-se, deixa o co-piloto com a responsabilidade total, e pede à tripulação para aguardar a saida do casal. E quando Elisabeth com o meu Figueiroa saem, a disfarçar, uns 5 minutos depois, toda a tripulação os saúda com vénias e uma grande salva de palmas.
Mas Kate, a outra jovem, já no seu terceiro Whisky, chorou. Afinal tinha sido com ela que a tragédia acontecera. Sentada duas filas atrás, apercebeu-se do que se tinha passado e, ávida de experiências amorosas que os seus dezoito anos imploravam, ciumenta, resoluta,  fez um sinal significativo ao Figueiroa. Este, que ainda mal se tinha sentado, levantou-se desde logo a caminho do sanitário. Mas não tivera tempo de lhe dar um beijo pois, mal trancara a porta, uma violenta despressurização abalou a cabina. Dentro do pequeno lavabo, desde sempre estudado apenas para uma pessoa, existe uma única máscara que instantaneamente se desprendeu e ela, Kate, aflita, agarrou-a e respirou profundamente o oxigénio. Figueiroa não soube do que morreu. Uns cinco minutos depois ouviu-se o comandante informar os passageiros que tudo estava normal. Podiam largar as máscaras. Com esforço hercúleo  conseguiu livrar-se do corpo morto, sair do sanitário, e fazer um sinal para uma das hospedeiras. Figueiroa jazia, de boca aberta, no chão, como um trapo. Um quarto de hora mais tarde o avião aterrava em Hanoi.

Já uma ambulância esperava o defunto.

Conversámos as quatro até o dia nascer. Quatro mulheres vivas para a vida.
E um homem. Um homem morto que amou e foi amado.

Maria, Saigão 20 de Abril/06


Truquistas,

Felizmente estou muito melhor.

Sinto ainda uma sonolência pesada por efeito da medicação – que estou a reduzir para metade – mas tenho vindo à agência quase todos os dias da parte da tarde e hoje já vos escrevo de manhã, tendo sido até uma das primeiras a chegar.
Estou feliz pelo "fim-de-semana da minha vida"  que vos contei sem omitir uma única sensação. A distância a que me encontro de vós dá-me a liberdade de vos confidenciar os meus segredos. Ninguém me vai encontrar em Aiana de Cima e obrigar-me a corar ou olhar para o chão...
E aqui na agência a "minha doença" fez subir a estima que sinto terem por mim. Recebo mil vénias por dia e oferecem-me velinhas com mensagens das iluminadas reflexões de Buda. O predador ofereceu-me uma edição especial dos "segredos inconfessáveis de Kama Sutra" com ilustrações a condizer.
As chuvas da monção de verão estão a chegar mais cedo. Ainda ontem choveu torrencialmente durante o dia inteiro. Mas hoje o Sol brilha e sinto um prazer muito grande de viver.  Um dia destes tenho que vos concluir a história da minha família, pois que a interrompi quando vos contava a noite em que minha avó se enamorou de um "mariachi" que deu origem ao nascimento de minha mãe.

Mas, para hoje, não resisto à tentação de vos escrever um episódio de que ninguém estava à espera.
Toda a agência tem um certo respeito pelo  senhor Chu-Lien, director comercial. Homem um pouco mais alto que a média, cabelo muito curto, magro como todos, admirador incondicional de arroz como quase todos, vestindo-se sem quaisquer sinais de ostentação directorial. Nunca lhe vi outra gravata, gaba-se da honradez da sua família, estima imenso a mulher e os dois filhos gémeos com lindíssimos olhos em bico.
Tem (não há ninguém perfeito) uma pequenina fraqueza. Gosta de vez em quando de ir até ao Casino e passar algum tempo entretido com as slots-machines do magnata Stanley Ho.
Mas no mês passado o senhor Chu-Lien, fez distribuir uma comunicação informando todos os colaboradores da Agência que, por mais vantajosos benefícios para a empresa, passaríamos a receber o nosso vencimento através de um outro banco. Entretanto, enquanto decorriam as negociações com a nova entidade bancária, acrescentava que o vencimento de cada um de nós seria entregue em envelope fechado no dia habitual (recebemos a 10 de cada mês).

Mas, no triste 9 de Abril, o director comercial, num impulso compulsivo, aguardou que todos saíssem da Agência e, já noite, dirige-se ao cofre, digita o código de abertura, abre a forte porta e retira todos os nossos queridos envelopes.
No dia seguinte a policia falou com a direcção desta casa, explicando que o senhor Chu-Lien se encontrava detido de livre vontade, por ter derretido todo o dinheiro dos salários  do mês de Abril nas slots-machines de Stanley Ho, até ao ultimo Dong.

 P.S. Recebi agora mesmo um telefonema de Hanoi.
Apercebo-me que aconteceu uma desgraça.
Vou apanhar o próximo avião.
Adeus.
Maria, Saigão 14 de Abril/06


....... senti-me a ser levada para fora da "Apocalypse Now" ao colo de Figueiroa. O ar fresco da rua despertou-me um pouco, libertou-me daquela nuvem de aromas que  asfixiavam as artérias do meu sangue.

Vou com este homem que me amparou no momento em que me sentia perdida. Vou com o vento, vou comigo... e vejo-me num extenso quarto de vermelho flamejante e, de mansinho, como pena de ave que se liberta e cai  inerte na berma do caminho, sinto-me deitada numa cama de marfim. Ouvia distantes palavras de carinho apaixonado "meu amor, meu amor, meu sonho, meu suspiro, minha ternura", e sinto, com alegria fantástica, que estou a ser despida, a ser liberta do manto diáfano da minha fantasia, e a sentir, Deus meu, a sentir aqueles lábios sedentos a beberem a transpiração do meu corpo inteiro, como artista a pintar paixões em cor carmim. O meu primeiro orgasmo aconteceu logo a seguir ao entreabrir as pernas para o receber inteiro. Todo ele era meu naquele momento. Por ti morro, por ti quero morrer, e dei-me, vezes sem conta, em ininterruptos desfalecimentos, prendendo-o com os braços e com as pernas, e pedindo-lhe que ali comigo ficasse eternamente, que não parasse de me possuir porque o queria para sempre dentro de mim. Gritei como louca quando senti que recebia dele o prazer quente, fluido, que encharcou o meu sexo, há tanto tempo a desejar aquele momento tão belo e tão supremo em que a natureza pode criar um outro coração. Nem eu nem ele tínhamos coragem de admitir o fim. O fim estava na eternidade...

.... Quando acordei o sol entrava a jorros pela janela do quarto. Estávamos nus. Ele dormia docemente com um ar feliz de criança.  Cheguei-me até à janela aberta e vi o rio com uma pequena praia de areia fina. Voltei para o leito e  acariciei-lhe os cabelos até o  acordar. Parecia que tínhamos vivido um sonho porque nos olhámos quase com ar de espanto. Com a boca fresca da água que tinha acabado de beber beijei-lhe a boca, os ombros, os braços, saboreei o sexo já eréctil, as pernas musculosas, e de novo introduzi-o em mim, sem palavras agora, apenas com a luz  daquele Sol frenético a projectar a minha sombra no flamejante vermelho da seda do dossel. 
Depois, ainda em silencio, fomos à pequenina praia selvagem do rio. Um palmo de areia.
Um turista americano de T-shirt estampada com a cabeça de Elvis Presley e calções brancos de riscas azuis e vermelhas, tira-nos de surpresa uma fotografia que em segundos nos oferece.
Escurece. Salinha intima, de mesa para o nosso jantar. Duas velas acesas.
E ouço-o dizer que tem que partir para Hanói, por uma récita, por uma butterfly, por um soprano, palavras longínquas mas ditas com aquele sorriso encantador que no passado sempre me fazia desfalecer. Pela minha face correram lágrimas frias.
O meu querido amante fez-me um último brinde com vinho doce, apagou as velas, levantou-se e, junto à porta da salinha, mandou-me um beijo. O último.
O fumo dos pavios, esvaiu-se. 
Vejo-me no exterior, sem saber muito bem onde estava. Arranjo um rápido riquexó que me deixa ao principio da minha rua.
Fui a pé até ao apartamento sorrindo para as rapariguinhas prostitutas. Já nos conhecemos, tantas as vezes que eu por ali passo a caminho da Agência.
Deitei-me. Sonhei que estava a arder em febre.

Na manhã seguinte chamei o médico.

Maria, Saigão 5 Abril/2006


Meus amigos

Estive quase uma semana sem vir à agência, doente. Febres altas, vertigens e constantes dores de cabeça. Médico à cabeceira. Prescreveu repouso absoluto, com apoio de ansiolitico, antivertiginoso, e antipirético se a febre ultrapassasse os 38º. Chá, muito chá. Recomendou-me seguir à risca a posologia mas confiava no descanso como terapêutica mais aconselhável. O meu quadro clinico não era grave pois as "doenças de coração" passam com o tempo...
... doenças do coração, que dizer delas?
Fujo à tentação de ser recatada nestas minhas crónicas semanais. Escrevo para mim e, num impulso que faz parte da minha própria natureza, deixo a página da minha escrita à frente dos vossos olhos. Depois arrependo-me de contar a intimidade desta mulher, tão longe de Portugal, tão só, sem pai, sem mãe, sem um filho, sem amigos a quem possa confidenciar-se.

À noite, ao despir-me em frente do espelho que reflecte a nudez de mim, pergunto-me onde está a verdade? Se na Maria emoldurada com vestidos mentirosos para os 42 anos que vai fazer no próximo dia 25 de Abril, se na Maria nua, sem disfarces, sem mentiras, nesta Maria que, quando se deita na cama de lençóis cor de rosa, tanto deseja um afecto, um carinho prolongado e ouvir uma voz meiga a desejar-lhe sonhos felizes. Por vezes, com as minhas mãos, percorro o corpo ao encontro do meu sentir, e ouço-me em suspiros leves, desfalecidos, numa imaginária imagem de me deixar possuir.

Foi por este meu estado de espirito que naquele passado dia 21 saí mais cedo da agência. E, numa das principais artérias da cidade, na Avenida Le Loi, em duas lojas para jovens, renovei o meu vestuário e, já em casa, guardei numa mala as roupas compradas nos centros comerciais de Lisboa. Lisboa, que saudades de Lisboa!...

E chegou sábado. Banho de espuma. Perto da noite vesti uma "t.shirt" branca com a legenda vermelha "Good Nignt Vietnam", blue jeans, e sapatilhas. Estava simples e bonita. Estava com 20 anos -  e apanhei um riquexó para a mais diabólica discoteca de Saigão; "Apocalypse Now".

Barulho infernal. Vejo passar um tabuleiro com copos de Whisky. Tiro um e bebo o liquido de um trago. A música cubana envolve-me e inebria-me. Na pista deixo-me arrastar pelos pares que rodopiam e gesticulam ao ritmo das melodias. A discoteca está cheia de turistas europeus, homens e mulheres, na procura da libertação bipolar; o temperamento e o preconceito. Mas também muitas vietnamitas com os seus atentos proxenetas, no engate de ocasião.

Com outro copo de Whisky e um cigarro que senti nos lábios e que não me fez tossir, fiquei com a cabeça perfeitamente despida de qualquer sentido racional. Deixei-me levar pelos homens e mulheres que me cingiam pela cintura, mudava de par sem dar quase por isso, o importante era recriar no meu corpo a alegria de estar viva. Com a luz negra da sala  só via o reflexo do branco, camisas, calças ou saias muito claras, dentes que se mostram em sorrisos que cantam o gosto do dj,  alquimistas que transformam o Whisky na bebida mais afrodisíaca do mundo. Rodopiava feliz, ébria talvez, e abria os meus braços para receber e apertar quem me quisesse, pois podiam-me sentir, rendida, implorando que não me fugissem, que ficassem comigo, que me despissem e possuíssem à frente de todos; corpos nus não se vêem na luz negra. Fui beijada nas faces várias vezes, vezes sem conta, os meus seios eram magicamente acariciados como promessas de ternura infinita.

Jurei para mim que me entregaria ao primeiro  que me convidasse a abrir a minha  boca sedenta dum beijo húmido, e esse beijo chegou enfim, cálido, com hálito de alecrim acabado de apanhar no monte. E aqueles lábios fizeram-me abrir os olhos na altura em que uma luz clara iluminava a sala inteira.

Desmaiei. Julgo que desmaiei por segundos. Não querendo acreditar na verdade sentida, olhei bem para aquele homem..... e aquela cara, aquele corpo que me segurava para não cair redonda no chão, era o meu amante, era o meu querido Figueiroa, era o homem da minha vida...

Maria da Purificação Jesus
(Abril de 2006


João Manuel Figueiroa de Meneses

Exmo. Senhor Luís Gaspar

Quando a minha vida profissional me deixa algum tempo livre, vou ao site "Truca" e leio uma ou outra crónica  da "sua Maria" .
Estou feliz por  saber que ela se encontra bem.
A conhecida soprano que recentemente cantou no nosso teatro lírico, o difícil papel de Cio-Cio-San, da ópera Madama Butterfly, requisitou os meus serviços durante os seis dias que se manteve em Portugal.
As 3 récitas, como foi aliás noticiado, foram muito aplaudidas, o que veio confirmar a fama da jovem cantora.
Durante os dias passeei-a por Lisboa (gostou muito de provar os pasteis de Belém) e à noite recolhíamo-nos ao "Afonso Hotel".
...Pois a artista convidou-me a acompanhá-la ao seu próximo compromisso: também três récitas da mesma ópera, que se realizam no teatro lírico de Hanói.
Muito embora esta ausência de mais de uma semana  me obrigue a anular uma série de marcações, aceitei o convite com muito agrado por três motivos:
Primeiro: necessito de férias e não conheço o Vietnam.
Segundo: porque de Hanói a Saigão são apenas uma hora e picos de avião.
Terceiro: sou muito capaz de aparecer de surpresa à "sua Maria".
Aceite os meus cumprimentos,

João de Meneses
Lisboa, 23 de Março de 2006 

P.S. Quem visita a sua Truca facilmente percebe que o senhor é um apreciador das coisas antigas. Envolvido que ando em assuntos ligados à ópera Madama Butterfly envio-lhe um cartaz antiquíssimo, de Fevereiro de 1904.


Truquistas, meus amores.

O dia 9 de Março, o dia em que aceitei o convite de Nguyen para um jantar romântico, o dia em que, com a ajuda de duas cervejas de Singapura, disse ao Sr. Minh Lap que a sua pilinha era diminuta, era de amendoim, era de nada, eu sei lá o que lhe disse, o dia 9 de Março, repito, vai ficar para todo o sempre gravado na minha memória.
Não sei como aquela cena passou para fora do restaurante. Pelo predador duvido; ficar-lhe-ia muito mal contar, fosse a quem fosse, que não tinha chegado a levar-me para a cama por causa da pila do Cliente.
O mais certo  foi algum dos outros dois  que acompanhavam Minh, ou até ambos, terem segredado em Hanoi o meu desabrido comportamento para, indubitavelmente, porem em causa a virilidade de um dos grandes responsáveis da Empresa.
O "boato", de Hanoi a Saigão, foi célere. E  comecei a notar nalguns colegas um sorriso que considerei ser malévolo. A minha amiga directora, nada me disse. Ela é superior a todas as coisas do mundo. A equipa criativa anda entretida com as alterações à bandeira, trabalhando de noite e dormindo de dia.
Mas Kim (uma encantadora Vietnamita que serve os chás e que aprendeu com os marines, quando tinha seis anos, a falar um pouco de inglês) tranquilizou-me: todos tinham orgulho na portuguesa Maria da Purificação Jesus, por ter feito frente ao todo poderoso Cliente, pessoa a quem a agência entregava, todos os meses, em envelope fechado, o agradecimento desta casa pela colaboração desinteressada que prestava "à malta criativa". E eu, Maria, podia estar tranquila porque, no tal jantar, tinha-lhe dito a verdade; de facto a natureza não dotara aquele homem com alguma coisa que se visse e muito menos que se sentisse. Disto tinha ela, Kim, inteira certeza quando certo dia, de manhã  muito cedo, num desaforo de poderio, o Sr. Minh a tinha seduzido num dos cantos isolados da agência. Ela não resistiu, submissa. Tentou até ajudar... mas não encontrou nada. O tempo da guerra, nas ruas de Saigão, ensinara-a a medir as diferenças.
Mas em Hanoi a administração do Cliente reuniu-se; havia que tirar a limpo a imagem de um dos seus directores, a sua personalidade, o porquê da tão estreita relação com a Agência, o porquê dum filme erótico para "vender" um automóvel que mal se via no ecrã,  meditar na sua estratégia de marketing - que todos tinham aprovado, é certo – mas agora, face ao que estava em cima da mesa (olharam-se e meditaram sobre o que estava em cima da mesa para chegarem à conclusão tratar-se de "órgãos reprodutores pequenos e frágeis") havia que reflectir nas eventuais medidas a tomar para uma  reconversão do importante departamento dirigido por Minh Lap. Aliás a empresa tinha mais directores que subalternos.

...Mas para que vos conto isto, queridos Truquistas? Que me importa o Minh, ou a administração a quem ele deve prestar contas?
Tenho que olhar para mim. Entrei nesta agência em 6 de Fevereiro, com grande esperança de vingar na vida e agarrar com força esta oportunidade. Não volto a ter outra.
Aproveita Maria. O teu aspecto de "gaiata" desmente os próximos 42 anos que vais fazer. Não olhes para o calendário.
Sai hoje mais cedo, compra conjuntos de cores quentes, uns cremes para prevenir rugas, reforça os contornos dos teus lábios sensuais e faz um brunching curto.
Por vezes  tenho umas saudades brutais das praias do Meco onde me desnudava para me deixar banhar pelo Sol.
Apetece-me uma farra. Já é tempo.
Vamos a isso sem olhar para trás.
Maria, Saigão 21 de Março de 2006.


MEUS AMIGOS (os verdadeiros amigos escrevem-se sempre com letra grande).

A grande notícia do dia de ontem é a seguinte: logo pela manhã, o director criativo recebeu uma chamada da secretária do Snr. Minh Lap (o cliente da pilinha amendoim) dizendo-lhe que o dito senhor Minh tinha "considerado não ser necessário repetir o plano da mesa quadrada. O filme estava aprovado".

Fiquei espantada! terá alguma coisa a ver com o que se passou no jantar? 

Mas vou ao que importa para a minha crónica de hoje, enquanto se discute nos gabinetes desta agência a proposta para a alteração à bandeira. Já não falta muito para se celebrar o dia da reunificação do Vietname.

... o Senhor Luís Gaspar costumava meter-se comigo pelo meu "ar de mestiça". Pois está na altura de vos contar do que sei da história da minha família. Aos poucos, sem pressas, para entreter.

Maria de Jesus Purificação, minha avó, quando ingressou no Colégio das Doroteias em Abrantes, tinha 10 anos de idade. Estava tão habituada à vida selvagem nas duas principais  propriedades de seu pai, em pleno coração do Ribatejo - onde convivia com os campinos, passeava-se por entre os toiros, assistia à cobrição das vacas, e colhia montanhas de flores selvagens - que, oito dias depois do ingresso no colégio, aparece em S. Miguel de Rio Torto, abre o grande portão da casa de sua tia que nunca vira com bons olhos a ida da menina para as freiras, e atira-se aos braços dela, a chorar. Minha avó tinha fugido da escola das Doroteias, dos terços infinitos que a obrigavam a rezar várias vezes ao dia "para aprender",  e da rígida  Mestra Geral que a mandava para a cama ainda as galinhas cacarejavam.

Passados os primeiros dias de espanto, o meu bisavô resolveu pedir explicações às Doroteias, pois fazia questão de saber como tinha sido possível terem as freiras deixado fugir uma criança daquela escola com tão grande fama de clausura gradeada.

Mas o que sei é que minha avó não foi recambiada para Abrantes acabando por ter professores particulares para latim, música, leis da física, matemáticas e História, enquanto continuava a cultivar uma irreverência consentida. Entendia a  retórica como uma digna postura perante a natureza, exercitando a voz carinhosa aos ouvidos dos recém-nascidos  vitelos.

Nunca se lhe conheceu namorado até que um dia, tinha já os seus 16 anos, vê-se num paquete que a levou  ao México para estar presente no casamento duma sua irmã, minha tia-avó, mais velha do que ela uns cinco anos.

Para abrilhantar a boda foi convidado um grupo de Mariachi cujas músicas, alegres e românticas, a encantaram.

Um dos elementos do grupo, que tocava vihuela e se chamava Lazaro Arteche Malaguilla (dizendo-se filho ilegítimo do grande revolucionário Pancho Villa) originário remoto do povo Asteca, viu na minha avó a portuguesa dos seus sonhos e, na noite do dia seguinte, noite de luar alto, Maria de Jesus Purificação acorda ao som duma serenata que lhe cantavam debaixo da janela. E aquele som de sonho, de contraste brutal com os mugidos das vacas da lezíria, fê-la descer ao jardim, tal como estava, em camisa de dormir com punhos de renda e, entre os arbustos, viveu a sua primeira experiência de amor, entregando-se com um sorriso campestre ao filho do revolucionário. Lazaro Arteche Malaguilla, ao despedir-se dela, deu-lhe um crucifixo de prata encastrado de madrepérola onde no reverso, em letra gótica, se lia "o caminho para Deus é através de devoção e do sofrimento".

Não sei se alguma vez encontrou tal caminho mas, oito meses depois, prematuramente, no casarão de S. Miguel de Rio Torto, nascia minha mãe...

Maria, Saigão 14 de Março de 2006


Meus Amigos Truquistas

Ontem dia 9, quinta-feira, e pela primeira vez desde que cheguei a Saigão, aceitei um convite para jantar. E sabem de quem? Do predador, do account, do Nguyen, do que usa gravata, enfim, ele é tudo numa só pessoa. Só lhe falta saber uma coisa: distingir a diferença entre uma presa fácil duma difícil, e a distancia que separa as miúdas que conquista, duma mulher mais velha uns vinte anos.

Depois de fazer a habitual vénia à fotografia de Ho Chi Min – hábito que já adquiri – e de ter inserido o passward "mytruca...", Nguyen entra no meu gabinete e, a sorrir, disse-me que a quinta-feira era o seu dia e convidava-me para jantar. Eu sentia-me fulgurante, cristalina e com um  brilho nos olhos. As aulas de "Tai Chi Tessen" têm tido o condão de me darem uma grande alegria de viver.

Disse-lhe de imediato que aceitava, com um sorriso carinhoso. Nguyen ficou surpreendido. Não esperava tamanha facilidade.

Por volta das oito da noite já estava à porta do meu apartamento. Entrámos para o riquexó que nos esperava. Caía uma chuva miudinha mas o condutor pedalava com tal força que rapidamente  chegámos ao restaurante "Quan Com Ngon", um dos mais afamados de Saigão. Nguyen abriu a porta e, olhando para a sala, pediu-me para adivinhar qual a mesa que estava reservada para nós. Indiquei a que tinha um bonito ramo de flores. Num pequenino bilhete estava escrito: "Espero que me entregue o seu coração". Sorri-lhe, a dar-me inteira, e agradeci. Em som ambiente ouvia-se Charles Aznavour e depois, imaginem, Amália Rodrigues que tantas vezes oiço num dos programas do "Estúdio Raposa".

Toda a sala está dividida com cortinas amovíveis, uma espécie de biombos, que isola  as mesas, uma ou várias, tornando-as mais intimas e amenas. Uma das paredes, parcialmente pintada em tom de ouro, tem uma grande janela que dá para um jardim ricamente iluminado. Fiquei virada exactamente para aquele ambiente de sonho e um empregado de mesa, com a habitual vénia, fez deslizar duas cortinas. Ficámos praticamente isolados do resto da sala. Disse para o meu interior que há muitos perigos na vida. O amor é um deles. Mas não posso estar o tempo inteiro a lidar com os meus fantasmas. Primeiro porque não quero ser outra Penélope, segundo porque ainda sou uma mulher nova. Se Nguyen tivesse habilidade eu estava capaz de colaborar no seu dia de sorte. Fizemos um brinde com cerveja "Tiger" produzida em Singapura. Olhámo-nos bem nos olhos. Julgo que desde logo me ofereci pelo olhar que troquei com ele porque senti as suas pernas encostarem-se às minhas... mas entretanto, numa mesa ao lado, parcialmente encoberta pela cortina, um grupo de três pessoas falava sobriamente, em inglês. Reconheci uma das vozes; era a  do senhor Minh Lap, o cliente de prestigio mau pagador, o tal que rejeitou o primeiro plano do filme por querer uma mesa redonda, e não uma quadrada. Argumentava com dois outros não asiáticos (via muito bem um deles) os eventuais benefícios da OPA sobre o offshore das empreses BP e Mistsubishi Corporation.

E enquanto o predador me contava que seu pai, também de nome Nguyen, tinha sido um dos grandes resistentes do heróico povo Vietnamita, eu ouvia perfeitamente o Minh Lap orgulhar-se de ter posto a Agência na ordem; "... eu é que mando, porque sou eu que pago". Pobre do meu predador. Ainda não tinha percebido que eu já não estava ao lado dele, afastada do seu argumento de abordagem e do jantar tão romântico para o qual me tinha convidado. Estava, isso sim, com todos os meus sentidos, atenta à conversa do lado, a ouvir o gabarola do Minh Lap a dizer que "tinha comido" a secretária da direcção (portanto eu, Maria)  ficando com muito boa impressão das portuguesas. Os outros riam e faziam questão de me conhecer. Fiz-lhes a vontade. Levantei-me de rompante - perante o espanto de Nguyen que continuava entregue  ao argumento que me faria subir ao sétimo céu - afastei a cortina e, com um sorriso dirigido ao Senhor Minh Lap, dei as boas-noites. Se lhe tivesse caído em cima uma bomba de napalm o  devastador efeito não teria sido tão grande. Disse-lhe, depois da cordial vénia: "Senhor Minh consta-se em Hanoi e também aqui em Saigão, que a sua pilinha tem o tamanho de um amendoim. Fique sabendo que as portuguesas são bastante mais exigentes."

E, quando estavam a chegar à nossa mesa pedaços de peixe com molho picante, tiras de carne ensopadas em soja e mais duas cervejas de Singapura, dei um beijo de despedida ao predador e uma hora depois dormia, só, na minha cama.

Maria, Saigão 10 de Março de 2006.

P.S. Anexo uma fotografia de Ho Chi Min, o estratega da independência e da reunificação do País, colocado em todos os gabinetes da Agência, em diferentes fases da sua vida.


Amados Truquistas
(ver fotografia no final desta carta)

Deu água pela barba esta semana de filmagens. Quis assistir à produção e  compartilhar convosco a minha primeira experiência na feitura de  filmes. Fiquem a saber desde já que o Cliente (ou melhor, o seu representante) é uma pessoa louca mas é para a Agência o principal em prestigio e facturação, embora mau pagador.

Trata-se duma fábrica que produz automóveis, com linha de montagem em Hanoi e todos os departamentos comerciais instalados aqui em Saigão. É o senhor Minh Lap, responsável pelo Marketing de alguns modelos e pela publicidade deste novo carro de estilo muito desportivo, claramente dirigido ao homem entre os 25 e os 45 anos. Minh, que fuma continuamente pequenos cigarros por ele próprio enrolados em fina mortalha  (já me convidou várias vezes para jantar mas, até agora, declinei os convites) é de uma exigência inacreditável e indescritível. Dias há em que Nguyen (habituem-se Truquistas a decorar os nomes; este é o tal account predador que usa gravata) chega à agência amarelo, com todo o trabalho para refazer, alterar, inutilizar.

Uma das peças da campanha consta dum filme para televisão. Foram feitos uns dez Storyboards, sendo um deles aprovado pelo Sr. Minh Lap que desde logo foi avisando que estaria presente nas filmagens, excepto no primeiro dia pois  já o tinha agendado para uma reunião em Hanoi. A história do filme é simples: revela um casal que termina uma refeição ligeira  iluminados à luz de velas. A mesa tem uma toalha branca. Levantam-se e ela, lindíssima, pega-lhe na mão e encaminha-o para um sofá que fica perto duma lareira acesa. Ele senta-se e delicia-se com as caricias da mulher que o beija suavemente. Numa série de encadeados percebe-se que a protagonista vai tirando toda a roupa até ficar com os perfeitíssimos seios a encher grande parte do enquadramento. Os namorados entregam-se aos prazeres do amor. Abre-se uma janela, até aqui oculta, e uma brisa faz mexer um cortinado branco. As velas apagam-se. Um gato siamês, languido, olha para o fumo dos pavios. Uma pomba também branca entra pela janela, circula pela sala,  mas volta a sair por onde entrou (não sei porquê mas esta pomba aparece em todas as restantes peças da campanha). Os amantes abraçados, são agora iluminados pela cor quente da lareira. Estão exaustos mas felizes.  Ele olhou para a pomba no exacto momento em que ela saía. Levanta-se, aproxima-se da janela, e olha para o pássaro que pousou na antena do espectacular carro iluminado por uma luz muito suave. O ecrã escurece para desde logo aparecer o logotipo da marca do automóvel com a legenda "..... dá-lhe mais prazer que uma mulher".

São 45" bem elaborados pelo realizador japonês Hideo Dauman, experiente neste tipo de filmes de grande intensidade erótica que lhe advém do filme "O Império dos Sentidos" onde colaborou como assistente de Nagisa Oshima.

A facilidade com que os actores faziam amor num cenário rodeado de tanta gente, fizeram-me corar, especialmente quando, no fim dos trabalhos, o predador me disse: "sabes, faz hoje 203 anos que Beethoven publicou Serenata ao Luar". Tive vontade de lhe oferecer um sorriso prometedor mas há coisas em mim que ainda não se libertaram...

... e estava por acontecer uma coisa espantosa. Exactamente hoje, o filme foi exibido ao Cliente que também não pode estar presente na gravação da banda sonora (suspiros em surdina e um tema musical com harpa). A um sinal do director criativo o filme é de novo exibido, enquanto se olhava para o cliente que, distraído, enrolava mais um cigarro.

Minh Lap pega no storyboard e ordena nova projecção pedindo para se parar a imagem logo no primeiro plano. Ninguém entendeu  o que se estava a passar naquela cabeça de génio. O Cliente olha para a imagem fixa do casal na mesa à luz das velas e, no seu ar de ditador mau pagador, diz com ar grave:

"Não aprovo este plano. No storyboard a mesa é redonda e eu estou a ver uma quadrada. Façam favor de repetir". Levantou-se e saiu de mau humor.

(a fotografia que vos mando foi tirada durante os ensaios que antecederam as filmagens)

Maria, Saigão 3 de Março de 2006

 

Nota; Obrigado Sr. Luís Gaspar pela publicação da carta do meu ex-amante. Se percebi, fui bem enganada. Agora, muito embora me sinta sem jeito, resta-me dizer ao senhor Figueiroa que  "o desprezo... é a mais nobre das vinganças".


Queridos Truquistas

Não me conhecem em momentos nostálgicos, mas acreditem que sou uma sentimental. Ao abrir as "fofocas" para ver a espécie de diário que vos tenho mandado, uma furtiva lágrima corre pela minha face. Lá estou eu a ser lida por tanta gente, pelo mundo inteiro. E por mim também. Encontro erros, virgulas a mais e palavras a menos, porque escrevo sem pensar, é o que me vem à ideia nos momentos em que quero estar convosco, expontânea, tal como sempre me conheci. E escrever, meus amigos, escrever bem, deve ser a arte mais difícil do mundo.

Já estou em Saigão há perto de um mês, na maior.

Jill, a minha directora, tem sido incansável na ajuda de que tanto necessito para a completa integração nesta cultura tão diferente. Vou levar algum tempo a compreender este povo, 6 milhões que, de madrugada, vem para a rua praticar Tai Chi, come arroz ao almoço e ao jantar (mas também coisas magníficas que vos hei-de descrever)... a propósito; já me inscrevi num ginásio de "Tai Chi Tenssen", coisa linda, sempre ao som de música que me embala o coração, com um leque vermelho que me refresca. Mando fotografia duma das aulas onde estou parcialmente encoberta pela monitora, mas perfeitamente reconhecível.

O gabinete de Jill é um pouco maior do que o meu e está decorado sobriamente, como aliás, toda a Agência. Numa das paredes a famosa fotografia dum "vietcong" assassinado à pistola numa rua de Saigão, já quase no fim da guerra. Na parede fronteira à  secretária, uma fotografia de Ho Chi Minh ( há uma foto deste herói em todos os gabinetes) e ao lado, em inglês, a sua célebre afirmação gloriosa: "Não há nada mais precioso do que a liberdade e a independência". Não entendo esta frase num contexto publicitário. Eles saberão, decerto.

Fui apresentada a todo o "staff". Para lá do director comercial (que, duas horas mais tarde, ainda não se tinha refeito dos seus íntimos sentimentos quando cruzei as minhas pernas, lembram-se ?) agradeci todas as vénias que me dispensaram; desde a direcção criativa até ao responsável pelos serviços externos. O Nguyen, account de gravata, olhou-me com  ar de predador. Fingi não perceber.

Mas não há grandes diferenças nesta multinacional. Os métodos de trabalho em Portugal são muito semelhantes aos daqui e, segundo Jill, com pequenos ajustes locais, esta 145 Worldwide (eles dizem "one, four, five") é igual em Paris, Singapura, Londres, Lisboa ou Banguecoque.

Passámos aquele dia 6 de Fevereiro, juntas e amigas, recordando a sua estada em Portugal, enquanto secretária do presidente desta mesma multinacional com banca aberta em Lisboa, fazendo um trabalho de reconhecido mérito ao ponto de a convidarem formalmente a assumir a direcção desta delegação, aqui, no Vietname.

Dois anos antes, numa noite quente de Santo António, com o meu querido amante a cheirar a manjerico, entrava no Pavilhão Tailandês, ao Bairro Alto. Logo, numa das primeiras mesas, estava um grupo muito animado, de homens e mulheres e uma delas,  chamou o meu Quiná. Percebi serem amigos e desde logo fomos apresentados a todo o grupo. Jill, muito alegre, estava entre eles e, como me sentei a seu lado, rapidamente começámos a falar de nós e dos homens. É fatal como o destino, entre mulheres. Eu contei a Jill que concluía um curso de Estatística (já em defesa de tese) e que era muito feliz com o meu homem. Ela inebriada com o seu adorado Mateus Rosé bem fresco, no seu português perceptível, contou-me que "tentava fazer da vida qualquer coisa de belo". Um dos presentes disse-me que era amicíssimo de um amigo que talvez necessitasse da minha colaboração. Dias depois recebia uma chamada do Senhor Luís Gaspar. A "Truca" apareceu-me assim, do céu aos trambolhões. Foram dois anos de dedicação e de um amor desvairado por aquelas matas de pinheiros mansos onde, ao fim da tarde, passeava de vez em quando com o homem que mais amei na minha vida.

Muitos beijos para todos da Maria e até para a semana.
Saigão, 1 de Março de 2006


Dr. John Thomas Belch
18 Notting Hill St WC3
London

Senhor Luiz Gaspard
Eu não estar a gostar  de ser metido na Maria story.
She is a beauty girl, but me no fazer nada de bed, sorry, bad. Um kiss de vez em quando, my Good, where is the wrong?
Não understand nada.
The day before  saída da Truca Maria give me uma bic de tinta blue e disse  na meu ouvido que gostar de mim. Well, me também gostar dela, but, ok! I make love whit her, and what? Is god, very godissimo. In the end Maria said: Are you satisfaction? Do you like me? Do you like my breasts, my arms, my sex and my breech? may legs to? thank you but is this mine treason.
Eu gostar de Maria toda, but nunca compreender nada. Beauty is but skin-deep. But I think que Maria is a straight girl.
O senhor Quina? Well, he is quite a stranger to me but he's left her strandeded?
Meu boa amigo.
Estou a trabalhar na departamento da Scotland Yard near do grande house  Marks and Spencer. Is a department que investiga o criminal Jack, the strangler.
Vou dando news.
In the morning (do you remember?) eu bebo  uma copa de vinho verde fresquinho. At nigh  I go to the bed whit port wine.
Early to bed early to rise makes a man healthy wealthy and wise.
Granda abraço
John Belch
(tenho noticias que vou passar a Sir)
23.02.06

P.S. Sorry about my English but the stay in Algarve and the maravilhoso vino verde, fazer esquecer-me um pouco my own language!


Meus queridos Truquistas

 "Alea jacta est".... Estou uma mulher feliz.

Julgo ter desde já conseguido ter deixado Portugal para trás, muito embora apenas vá a caminho de 3 semanas que por aqui estou, coisa pouca para me habituar a esta nova cultura, ao clima tão diferente, aos hábitos deste povo.

Mas vamos ao diário sem demoras.

Como vos contei apresentei-me  na agência no dia 6. Já não me lembro se entrei com o pé direito, mas eu estava radiante. Levantei-me cedo, confiante, e deixei-me acariciar pala água quente do duche. Vesti uma saia curta (as mulheres daqui tem muito o hábito de usar calças) e uma blusa confortável que se ajusta generosamente ao meu peito. Botas altas. Perguntei ao espelho se conhecia alguém tão bela quanto eu. Aconselhou-me realçar os lábios com uma cor quente. O aspecto duma mulher ainda conta muito em qualquer lado do mundo. Temperatura amena (22º) mas levei vestido o bonito casaco curto de pele de marta (a ultima oferta do meu amante). Enfim, sentia-me apetitosa.
Do meu apartamento (mando uma foto da rua) à Agencia são uns 5 minutos. Mas mesmo assim vai ser  necessário comprar uma bicicleta. Contarei porquê.
Eram nove horas estava na Agência, sita na Nguyen Hue Boulevard, Fui recebida por uma simpática e jovem recepcionista que, em Inglês, me mandou esperar um pouco. Apareceu desde logo um cavalheiro, mais ou menos da minha altura, muito magro, de óculos, todo sorrisos e grandes vénias, que me pede para o acompanhar.
Era o senhor Chu Lien, director comercial.
Encaminhou-me para o seu gabinete ao mesmo tempo que me ia dizendo que a Directora vinha um pouco mais tarde.
Sentei-me numa confortável cadeira e, muito lentamente, cruzei as pernas. Os olhos do senhor Chu Lien ficaram ainda mais em bico.
Perguntou-me se já tinha feito o meu Tai Chi da manhã, se já conhecia os restaurantes da zona, os bares, enfim, a vida de Saigão. Disse-lhe que não tinha ainda tido tempo para tanta coisa. Prontificou-se a ser meu cicerone, se eu assim o entendesse mas, como não deixava de olhar para a  minhas pernas, senti-me corar e descruzei-as.

Eu ia reparando numa fotografia de Ho Chi Min com a bandeira do Vietname mesmo ao lado e, numa pequena mesa, bonita estatueta dourada de Buda. Chu Lien contava-me estar a Agência bem posicionada, com importante  lista de clientes. Actualmente tinham entre mãos uma importante proposta para o Estado unipartidário. Proposta arrojada mas indispensável: tratava-se de criar um novo posicionamento da marca Vietname, criando-lhe uma outra imagem universal inclusive com a reforma à actual bandeira.

Mantendo constantemente aquele sorriso de plástico, levou-me depois ao meu gabinete, onde me deixou. Gabinete não muito grande mas com larga janela e moderna secretária. Em cima dela  um bonito ramo de flores e um computador portátil. Abri-o e introduzi o meu password; "mytruca...". o resto da palavra que ainda falta não vos digo.
O que mais desejava era a chegada de Jill, a Directora desta agência que conheci em Lisboa,  numa noite de farra no Bairro Alto.
Não esperei muito. Jill entrou pouco depois. Abraçamo-nos e chorámos.
As saudades eram mútuas. A minha nova vida ia começar.
Até para a semana e acreditem na sinceridade dos beijos que vos mando.
Maria, Saigão 22 de Fevereiro de 2006


João Manuel Figueiroa de Meneses
Cais do Sodré
Lisboa

 Exmo. Senhor Luís Gaspar

Quero chamar a atenção de V. Exa. para o facto de não me sentir em nada culpado pela  fuga da sua colaboradora Maria da Purificação Jesus. Li, por curiosidade, o que ela escreveu aos seus "Truquistas" mas, ao receber a carta que me enviou de Paris, fiquei perplexo pelo seu conteúdo e, mais ainda, por V. Exa  ter coragem de a publicar na Truca  nº. 436 do passado dia 19. Uma vez que o fez, peço-lhe a divulgação desta.

Estranho que Maria, com a experiência dos seus 42 anos, nunca tivesse percebido a minha vida, ou melhor, a minha profissão. E dizer que viveu comigo 4 anos, é mentira. Conhecemo-nos há quatro anos, o que é diferente.

É certo que a aventura de viver com Maria de vez em quando era para mim um grande conforto.  Tinha, com ela, "férias de espirito", coisa de que necessito amiúde. É uma mulher irreverente, meiga, muito apaixonada, onde todos os dias se transforma numa nova pessoa, num novo sorriso, numa nova cor de lábios, numa nova maneira de amar,  enfim, renovava-se diariamente. Mas, creia-me, duvido que seja uma mulher inteligente.

Sabendo-me livre e sem emprego formal, nunca percebeu de como era possível  eu sustentar um Porsche Carrera Cabriolet – de que ela, aliás, tanto gostava – e como podia somar, nos guarda-fatos das minhas casas, uns trinta de bom corte, não sei quantos pares de sapatos, umas cinquenta gravatas e camisas de seda, para lá dum elevado número de roupas mais ligeiras e desportivas.

De facto tenho um estatuto social que me obriga a recriar o requinte do luxo porque assim o exige o mercado. No Algarve (muito procurado por inglesas e nórdicas) sou obrigado a ter duas casas; uma em Albufeira e outra, mais recatada, entre Boliqueime e Almancil. A "cabana" (como ela escreve) é quase um palacete adquirido a um sueco, antigo treinador de futebol de um clube português que a possuía na serra entre Cascais e Sintra. Baptizei-o, de facto, com o nome de "Cabana" titulo em azulejo com letras azuis e Santo António, como tão bem fica numa casa portuguesa.

A minha estratégia de mercado consiste em tratar do meu físico (faço ginásio três vezes por semana),  ter uma alimentação cuidada embora com algum recurso a anabolisantes,   e a figurar em páginas especificas de revistas femininas da especialidade. Não quero nada com Internet. Esse meio é para gentinha sem classe.

Para lhe dar um simples exemplo, este próximo verão já não tenho um único dia de descanso. As senhoras chegam a Portugal (eu sou avisado meses antes pelos meus intermediários – especialmente Agências de Voyerismo) e faço-lhes a companhia que desejam. Por vezes, senhor Luís Gaspar, calha-me um exemplar já com algumas camadas de verniz mas, em contrapartida, nos grupos etários restaurados, a minha tabela de preços duplica. E se me pedem companhia para um casino, um jantar, uma discoteca, etc. o valor dos meus serviços são contabilizados à hora.

Não me posso queixar, pelo menos por agora. Pergunto-me porque não desconto para o Estado?. Que reforma vou ter quando chegar à disfunção eréctil?. Não sei. Nunca houve até hoje uma mulher que me pedisse um recibo pelos meus serviços. Aliás, na declaração de rendimentos (vulgo IRS) não me consta haver espaço para declarar os ganhos que aufiro.

Para terminar devo dizer-lhe que me estou-me perfeitamente nas tintas pelo facto da Maria ter ido p'ra  cama com o seu colaborador inglês. Foi um problema deles.  Poderá ser uma situação desagradável, não para mim seguramente, mas para si.

João de Meneses,
aos 22 de Fevereiro de 2006


Senhor Luís Gaspar, meu bom amigo.

O grande respeito que nutro por todos os "Truquistas" que, semana a semana, visitam o seu site sempre com renovado interesse, leva-me a escrever-lhe desta terra distante onde agora me encontro, pedindo-lhe o favor, se assim o entender, de dar a conhecer este meu diário, que de diário apenas terá o nome posto que me será difícil mandar-lhe notícias com alguma regularidade.

Não fugi de Portugal, dessa paz do seu estúdio de som onde me encontrava consigo duas vezes por semana. Não fugi dessas lindas praias do Meco onde me deixava acariciar pelo Sol que aquecia o meu corpo desnudo. Assumo, isso sim, que a minha decisão foi repentina, sem dúvida, mas tinha que a tomar para evitar males maiores. Foi com desgosto profundo que me despedi de si e, já no avião, chorei ao olhar  Lisboa das alturas, com essa luz tão bela que, possivelmente, não a voltarei a ver.

Mas para que a minha "história" seja o mais possível transparente, não me posso deixar envolver pela nostalgia dos anos que passei por aí.

Contar-lhe-ei tudo, o passado e o presente, de coração aberto, como a um confessor se faz em momentos da confissão. Eu não sou religiosa, não professo quaisquer crenças, mas guardo sempre na minha malinha de mão um pequeno crucifixo encrostado de madrepérola – uma vez mostrei-lho, lembra-se ? – herdado das mãos engelhadas de minha avó que vi morrer.   

Por agora deixo-me respirar fundo, encher bem os meus pulmões com outros ares, arrumar as minhas poucas coisas no pequeno apartamento que aluguei. Já comprei umas cortinas de renda, para as duas janelas da salinha. Uma flor numa jarra. Não posso viver sem flores (não lhe levava sempre uma, a si Luís, nos dias da
fotografia ?).

Depois duma viagem um pouco cansativa (sempre foram quase 16 horas de voo)  escrevi, logo no primeiro avião para o Quiná, explicando-lhe que não podia continuar ao lado dele, por não ser eu merecedora do seu amor arrebatador. Eu não o merecia, sei-o bem. No aeroporto de Paris, pus a carta no correio com a definitiva determinação do ponto final. Como estou por tudo, e sabendo que ele decerto não se importará por reconhecer que entre nós tudo acabou, mandar-lhe-ei cópia da missiva que enderecei ao homem com quem vivi quatro anos. Pode publicá-la, se assim o entender. Nunca tive segredos na minha vida.

Nesta minha primeira carta peço aos "Truquistas", para não fazerem maus juízos de valor. Embora mulher, sou suficientemente adulta para assumir os meus erros e não me envaidecer com as minhas virtudes.

Fechei uma porta e, na próxima segunda feira, dia 6 de Fevereiro, abro uma nova janela na minha vida. Vou entrar com o "pé direito". Dizem dar sorte.

Vou assumir-me como secretária da Directora duma agência de publicidade, aqui no Vietename.

 A todos um beijinho da vossa amiga

Maria da Purificação Jesus.
04.02.06


Meu querido.

Embora com nuvens, distingo perfeitamente que voo sobre a Baía de Biscaia. Destas alturas parece-me estar um mar muito tranquilo, tanto quanto agora está o meu espirito nesta hora da despedida. Tão tranquilo, tão calmo, que me dá ainda mais força para te pedir, meu querido, que aceites o divórcio das nossas loucuras de amor. Secaram já as minhas lágrimas; dei-tas. Aliás tudo te dei. Tudo foi teu. Não podes querer mais nada de mim porque mais nada tenho para te dar.

Podes dizer, se assim o entenderes, que fujo de ti. Não é verdade, meu amor. Apenas me liberto. Já não aguentava o teu desprezo, a tua mentira, a tua falsidade, a tua traição.

Desde o nosso primeiro encontro – naquele fim de tarde de um dia de verão -  com a areia da praia deserta a servir-nos de leito nupcial, onde jurámos eterno amor e nos reconhecemos como dois seres sinceros, imutáveis e inabaláveis, sempre pensei ter em ti a segurança que me faltava. Não podiamos viver em separado. O que desejavas, eu apelava, o que exigias eu oferecia. E na cegueira ávida, na permuta de entregas (dávamos e recebíamos em recíproco), não havia lugar para qualquer outro comportamento nas nossas tolas fantasias. Lembras-te das pequeninas coisas que compartilhávamos? Lembras-te daquela noite, numa pequena e acolhedora taberna de pescadores, onde a comer jaquinzinhos com açorda, abriste a garrafa  de espumante que tinhas comprado para um brinde à luz quente da lareira da nossa cabana? E a rolha – o que nos rimos – a rolha dispara que nem foguete, vai bater nuns chouriços pendurados numa trave, faz ricochete, a salta para a panela do caldo verde? Lembras-te daquela entrada triunfal no S.Carlos, em noite de Simon Boccanegra? Tu impecável no teu smoking preto mas com chinelos de quarto e turbante na cabeça, e eu de jeans esfarrapados, de blusa transparente tipo loja dos chineses (5 €, recordas-te que regateaste o preço?) mas com uma estola de pele de vison?

Sabes uma coisa meu amor? O meu corpo nunca se deu tanto. Quando te conheci, com esses teus cabelos compridos que fustigavam o meu rosto senti, pela primeira vez, o que é o desfalecimento, o desmaio, a palavra obscena dita com amor, mas um amor raivoso capaz de matar e deixar-se morrer.

Porque me traíste então? Porque me fizeste ficar louca de ciúme? Porque me obrigaste a seguir as pistas que ias deixando no caminho que me levaram à casa da tua nova amiga, que, na cama desfeita, gritava e ria como as hiena em cio?

No dia 1 de Janeiro, na Truca, foi dito que eu estava de férias. Mentira. Andava louca à tua procura. Até a este meu pequeno emprego por duas vezes te levei à socapa. E, na pressa com que apurava as estatísticas da semana (porque tu me beijavas as orelhas e o pescoço e me moldavas o corpo com mão d'artista), por essas duas vezes me enganei. A ultima (tão bem me lembro) foi já neste passado Janeiro; não eram 9.433 visitas, mas sim 9.343.

Meu querido, não merece a pena chover ainda mais no molhado embora a chuva faça muita falta em Portugal. Sou mulher d'armas. Tenho, julgo, uma vida à minha espera.

Pelo andar da carruagem parece estar o avião a chegar a Paris. Deitarei esta carta no aeroporto. 

E antes deste beijo que te deixo, agora de amiga que de ti se despede para sempre, confidencio-te que, por raiva, por rancor, por vingança, também eu te traí.

Sabes com quem? Tu conhece-lo. Apresentei-to, casualmente, numa tarde antiga em Aiana-de-Cima. Despi-me à frente de John Thomas Belch que me disse: "I am sorry, Eu não compreender muita bem" . Nem eu própria compreendia. O que agora compreendo é que sou livre.

Maria da Purificação Jesus
Algures no ar em 2 de Fevereiro de 2006