CARTAS
da
Maria da Purificação Jesus (2)
(publicitária portuguesa no Vietname)

 


Queridos Truquistas.

Esta vossa Maria teve um acidente caseiro; tropeçou no fio do aspirador e bateu na esquina da cama de ferro, com a mão direita. Na radiografia vê-se claramente três dedos fracturados (exactamente os que uso para escrever) o que me impossibilita trabalhar no computador. A minha mão pesa toneladas, moldada em gesso e ligaduras.
Escrevo-vos apenas com a mão esquerda, letra a letra, para vos desejar um bom Natal e mais um ano com alegria e saúde.
Por aqui, a pequena comunidade católica festeja esta quadra tal como em Portugal... a Mafaldinha (que, felizmente, não estava ao meu colo na altura da queda) tem a sua primeira arvorezinha cheia de estrelas e prendinhas.
Desculpem mas não estou em condições de continuar.
Muitos beijos para todos:
Chung Mung Giang Sinh
Ou seja, Feliz Natal
Maria, Saigão, 21 de Dezembro/06
(fotografia da minha filha e da minha...mão, em anexo)



Truquistas, eis-me.

Levantámo-nos da cama cedo, aprontámo-nos, cada uma com o seu melhor vestuário (que bem lhe fica o vestidinho que Maria do Céu lhe ofereceu no passado domingo – a minha Mafalda já com um mês de nascida, meu Deus!). Tentei tornar o meu sorriso catraio, fazer um trançado arrematado com ganchos lilases, carregar ligeiramente no bâton… não me posso tornar mais nova!

Sei que perdi o meu tempo de mãe, mas sobrevivi ao trauma de viúva e duma gravidez não planeada.
Sou o que sou; a idade que me separa de minha filha não é entrave para abdicar das alegrias que este ser pequenino me está a proporcionar; já conhece a minha voz; já me sorri; já me estende a mãozinha para segurar no biberão.
Decidi hoje mostrar a menina aos colegas da Agência e depois, se tiver tempo, ainda um pouco da Saigão que já conheço.
Vamos as duas para a rua. O dia está ameno.
Antes de seguir para a agência, passo pela Ngo Duc Ke para apresentar Mafalda à velha rameira. Uma jovem dá-me a notícia que a "Avó" foi internada com urgência mas, mesmo na maca, e antes de entrar para a ambulância, ainda balbuciou o seu velho lema às jovens da rua; "poupem o mais que poderem; a juventude perde-se de um dia para o outro". O maqueiro tirou-lhe o cigarro dos lábios e fechou a porta do carro.

As notícias da sua saúde são contraditórias; as prostitutas do cimo da rua dizem ter falecido, as de baixo afirmam estar a "Avó" prestes a ter "alta". Nestes dois territórios, perfeitamente demarcados pelos proxenetas, já vive a saudade; Ela foi uma das grandes glórias dos marines da guerra do Vietnam e chegou a gostar dum soldado imberbe, ensinando-lhe, nas horas vagas, os rudimentares prazeres do amor. Mas acima de tudo, é recordada como a mais bela meretriz de Saigão e, no ocaso da sua lindeza, no declínio das formas do seu corpo, do sorriso, da entrega sempre meiga, gravou na juventude que por ali todos os dias se renova, palavras de ensinamento para uma vida de prustituta regalada. Pusessem os olhos nela, pois que vivia agora na penúria, quase de esmolas, por não ter acautelado o futuro na ilusória certeza duma juventude eterna.

Os meus colegas na 154 Worldwide, sem esperarem a minha visita, ficaram surpreendidos por me verem levando ao colo a beleza de minha Muffy. Até Jill, que saiu do gabinete pelo alarido da surpresa colectiva, estranhou como a criança tinha crescido, desde a sua visita a minha casa.
Por curiosidade, abri a porta do meu gabinete de trabalho que há mais de um mês tinha deixado, e deparo-me perante dois embrulhos enfeitados com grandes laçarotes. Eram ofertas dos colegas do presente e os do passado, dos que tinham rumado para a outra agência. Fiquei emocionada por constatar que não tinha sido esquecida, mesmo por aqueles por quem não possuía opinião muito sustentada. O tempo é de facto o melhor remédio para enterrar quezílias, para deitar ao vento cinzas de histórias banais. 
O problema de Jill está ultrapassado. Hanói julgou por bem ignorar as injúrias e maledicências da equipa dissidente, ratificou a confiança na directora da delegação, e deu-lhe ainda mais poderes de afoiteza; a quem não se reconhecesse qualidades de integração numa equipa de profissionais deveria de imediato procurar outro caminho. Apenas lhe pediam o favor de elaborar relatório mensal, pormenorizado, de todo o pessoal da Agência; Horas de entrada, apego ao trabalho, reivindicações, obediência, o perfil de cada membro da equipa; "...Maria, vais-me ajudar nesta tarefa. As secretarias-gerais sabem tudo como os porteiros dos condomínios. O que vejas ou ouças, conta-me. Fá-lo por mim"
Não era dia para a desiludir. Despedi-me de todos com uma grande vénia e um grande obrigado.

Apanhei um carro para Lê Thánh Tôn, pois já eram horas de almoçar e dar o biberão a Mafalda.
Numa mesa ao meu lado, duas inglesas de meia-idade comiam; uma delas disse-me:
"Tem uma netinha encantadora! Que linda menina!"
Sorri. Apenas sorri. Tenho um grande respeito pelo defunto pai desta criança, homem que amei e jamais esquecerei e, acima de tudo, adoro esta minha querida filha.

Muitos beijos Truquistas Queridos.
Maria, Saigão, 6 de Dezembro/06

 Fotografias: a arte de Maria do Céu no banho da minha Muffy, o mapa para conhecerem onde moro, e o postal do restaurante para vos abrir o apetite (frente e verso).




(Página do diário da minha avó)

Não cheguei a reconhecer o companheiro de Juliana; exausto, tinha-se voltado para o lado contrário, de costas para mim, ofegante na sua comprida camisa branca e meias pretas.

Recuei até à porta do celeiro. O nosso São Gabriel esperava-me em silêncio; num ápice o montei e, veloz, levou-me ao "casarão" como se soubesse da minha ansiedade, da minha fraqueza, do meu desvario.

O rafeiro ladrou, estranhando a nossa chegada impetuosa.

Quando entrei no meu quarto, tinha em cima da cama mais uma gentileza de Barrete Salvação de Jesus, que todos os dias me dedicava relembranças do seu amor; era uma caixa quadrada forrada a papel cetim e grande laçarote vermelho sangue. Ao destapá-la, deparo-me com uma linda camisa de dormir, de seda rosa pérola.

Fui acometida dum choro convulso. O meu marido merecia-me e eu desejava-o.

Havia que lhe dedicar o meu corpo, receber o dele, dar-lhe prazer, senti-lo também como homem meu, materializar a tua existência, provar-me ser mulher adulta e perder para todo o sempre aquela imagem da menina de 16 anos que "concebeu sem pecado", como tantas vezes o nosso Padre Amaro (que Deus tem, como se ousa dizer) me exarou na memória.

Precisamente, quando saia do quarto, vestida para o jantar, encontro meu marido que também saía do dele. Numa ânsia de carinho, encosto-me a ele, abandono-me, deixo-o envolver-me com a força do seu braço válido e beijar-me suavemente. Ofereço-lhe a minha boca na ânsia dum beijo quente. Muito encostados, corpo com corpo, como num só, sinto-o homem pela primeira vez em tantos anos de casada, e ambos intimamente acertámos ser aquele dia, aquela noite, que lhe abriria os meus lençóis de linho.

Descemos de mão dada para a sala de jantar, quais crianças à descoberta das fantasias da adolescência que, com os anos, já as tinham perdido. Eram horas, todos nos esperavam à mesa remexendo o caldo fumegante. Conversa alegre, toalha branca, muitas velas acesas.

Juliana, mentora de todo o pessoal doméstico, não deixava os seus créditos por mãos alheias.

Ocupei o meu habitual lugar. Barrete, no lado oposto, não tirava os olhos dos meus. Corada e emocionada pelo que tinha acabado de sentir no corredor dos nossos quartos, desviei-me dos seus olhos e encontrei no caminho aquela enorme "natureza morta", quadro não assinado que, a teu pedido, deixámos no "casarão"; na tela de fundo escuro, ressaltava uma cabeça de toiro com cornos branco pérola, mesa comprida com a glória duma caçada triunfal, (coelhos, duas lebres, perdizes e um faisão) animais ainda quentes expostos ao lado duma caçadeira de dois canos, sem mira, cães e gatilhos, não decerto por distracção do artista mas para a isentar da mortandade e, mais à direita, dum grande cesto de vime, extravasavam os principais produtos das quintas; esquecido, no fim da mesa, um copo com vinho, ao lado dum pequeno toalhete amarrotado e sujo.

Em toda a arte há sempre uma dose de aventura e, talvez por isso, vi enfim, naquele copo abandonado, esquecido numa mesa farta, o triunfo de meu querido marido, a sua abstinência ao álcool, o abandono duma vida de boémia e a sua entrega, com denodo, com saber, com estudo, à causa dos negócios da família, ao apuro das castas daqueles nobres toiros que nós as duas afagávamos com à-vontade.

Mais tarde, já quase no fim do jantar, recebemos a habitual visita do Senhor Padre Amaro. Vinha beber a melhor aguardente do Ribatejo e tomar o seu café.

Antes de se sentar, abençoou a fortíssima chuvada dessa tarde, pois que necessária já era; Deus, na Sua infinita misericórdia e sabedoria, era severo com o seu governo e São Pedro respeitava e cumpria as suas ordens. "Sim, porque a Lezíria sem a sua cheia, bem benzida, não é Lezíria!", disse-o com o sorriso generoso que exibia um canino de oiro.

Quando por fim terminaram os risos generalizados por esta pequena e inofensiva heresia, olhei para o padre e, num relance, vi na sua sotaina negra, pequeninas porções de palha na dobra da bainha, nas botas molhadas e na cabeleira. Percebi tudo.

Amaro era a pessoa que nessa tarde, no feno, resfolegara com Juliana, a casta diva.

Desviei o olhar para fugir daquele homem que para mim acabava de perder a espiritualidade da pureza e da virtude; do homem que no almoço pascal de 1923, naquela mesma mesa, assumia com gravidade, com a fé dum celebrante, dum casto perante Deus e a Igreja, dum pastor que sabe o nome próprio de cada ovelha e de cada cria, que a minha gravidez tinha acontecido por intercessão do Espírito Santo.




(Uma página do diário da minha avó)

"Agora, e porque assim me dita o impulso deste dia de inverno, posso abrir-me na confidencialidade que pertenceu ao mais íntimo do meu ser, durante estes quase 40 anos. És tu própria que me dás coragem por teres um namorado, bonito rapaz, por sinal, teu colega lisboeta do curso de agronomia. "Apenas amigos", dizes tu; minha querida filha, o ar com que o dizes e esses teus olhos que conheço desde o berço, não sabem mentir. Tenho-te dito para não te deixares guiar demasiado pelo coração. Ele, por regra, é mau conselheiro. Sê resistente aos sentimentos. Avança quando tiveres certezas.

Na tua vida vais ter tempo para tudo. Mas é agora premente que retomes o prestígio da nossa casa que bem abalado ficou com a morte de teu pai.

"A educação não é a preparação para a vida. A educação é a vida" - diz um escritor da nossa biblioteca. Quanto a mim tu tens as duas coisas: vida e educação.

Neste "livro" que manuseias, ficou, a páginas para trás, a minha ida ao México, pelo matrimónio de tua tia, a noite de lua cheia, a serenata, aquela estranha criancice de me deixar possuir sem saber o que fazia, bom, o que já leste, não me repito, para quê? Sabe-lo que engravidei dessa aventura, e que nasceste nesse mesmo ano em plena lezíria, na tarde de Sol daquele glorioso 5 de Outubro de 1923.

O que não sabes, é que no dia do casamento com Barrete de Salvação Jesus, até ao dia da sua morte na praça de Salvaterra, eu nunca tive com teu pai uma noite em que ele fosse meu, uma noite em que eu fosse dele. Não fomos um do outro. Nunca. Apenas uma pessoa guardou esse segredo até à sua morte; Juliana, a casta diva.

E, finalmente, teu pai era para mim de uma generosidade ilimitada, passados os primeiros anos em que foi perdendo o vício alcoólico e as noitadas castiças de fados e toiros.

Desejava-me para sua mulher, queria-te como sua filha, rodeava-nos da postura sóbria de patriarca mas dócil e meigo como um anjo de altar.

Com a ajuda da nossa Juliana, lá me fui refugiando no meu íntimo que me alertava para os prazeres da natureza duma mulher; Não posso coibir-me de te contar os momentos em que me sentia atormentada, solitária, sem conseguir dormir em noites quentes. Flutuava descalça pelo corredor, passava pela porta do quarto de teu pai, sentindo-o tão desperto quanto eu. Desculpa-me esta franqueza, querida filha; Uma serenata em Guadalajara foi o elo que te trouxe ao Mundo; Não um beijo, não um suspiro, não uma ternura, nem um momento solene e puro que glorificasse uma gestação.

E sabes minha Maria! Cada vez mais desejava o meu marido, ser dele, sentir enfim o prazer do amor carnal, acabar definitivamente com a distância dos nossos quartos, vivermos na mesma cama todas as estações do ano, compartilharmos beijos, abraços com braços nus, êxtases sôfregos, sentir-me dele, senti-lo meu.

Um dia, a caminho de casa, a meio da tarde, no São Gabriel a passo, começou chovendo.

Troteio até ao celeiro que estava perto. Abri a grande porta e entrámos.

Enquanto lhe limpava a crina do pescoço, ouço gemidos, palavras soltas, pequeninos gritos, que vinham do fundo do granel, para lá duma montanha de fardos de palha.

Muito devagar, com a cumplicidade do animal que se aquietou, caminhei ao de leve, abaixada, até ao local dos suspiros.

Foi a primeira vez na minha vida, Maria, que vi uma mulher e um homem, ambos num só corpo, famintos de posse, suados, trocando o sabor da saliva, os braços de ambos sofregamente apertados, movimentos trementes, abundância de fluidos, palavras obscenas soletradas, estranhos odores, queixumes de gatos em cio, uma imagem de vida, de amores ilegítimos e gloriosos. Um hino à lubricidade.

Quando ambos se desprenderam daquela posse carnal que parecia não ter fim, aguardava-me outro grande abalo.

A mulher virou-se para o meu lado, afastando-se duns pingos de chuva travessos, perdidos duma telha partida, que lhe salpicavam o rosto.

E vejo tratar-se da casta diva, da Juliana, da nossa Juliana, que exibia um rosto duma felicidade eterna".

 Uma das poucas fotos que tenho de minha mãe. Repare-se no seu à-vontade ao lado dum dos toiros da ganadaria SPJ.


Truquistas; não esperava tanto.

Os adjectivos qualificativos esgotaram-se. O léxico que a língua portuguesa tanto se orgulha, é insuficiente para poder exprimir o meu interior agradecido, tantas são as palavras bonitas e sentidas que recebi de vós, tantas as prendinhas para a minha Mafalda que agora dorme, tranquila, no seu berço.

Obrigado Luís. O seu estímulo tem-me dado força hercúlea, a sua Truca, a Truca de todos nós,  envolve esta minha pequena casa de Sol desse Portugal distante. Também o seu "Estúdio Raposa", e a rádio em geral, são para mim companhias inseparáveis, nestes dias alegres mas simultaneamente negros, tão negros como o tição, pela incerteza do meu futuro. Aliás, da Agência – que à maternidade me enviou um arranjo floral – ainda não tive uma visita, um recado, um simples telefonema.

Mas, quando olho para minha filha, quando a vejo dormindo, quando lhe dou o biberão ou lhe mudo a fralda molhada, quando sinto aquela vida pequenina que faz hoje quinze dias de nascida, olho-me e vejo-me nos meus 42 anos de idade. Que enorme distancia nos separa! Que fiz eu à minha juventude? Por onde andei? Porque estou aqui? Porque me deixei arrastar por sentimentos que valem um dia, uma viagem aventurosa que, quanto aventura, por norma, não tem retorno? Porque me tirou o destino a mãe que não cheguei a conhecer? Porque não segui os sábios conselhos da Minha Querida e Santa Avó?

Oh! Minha Avó, Querida e Santa! Se ainda fosses viva, se eu ainda pudesse ouvir a tua voz doce, ponderada, reflectida, murmurante como água de ribeiro, estou certa que não tinha este afogo, esta incerteza do presente quanto ao destino do futuro.

Que diferença entre a tua vida e a minha! Sabes Avó?! Estou a espalhar pelo mundo a tua intimidade, aquilo que deixaste escrito para a tua filha, minha mãe, mas que depois para mim te voltaste com a mesma força anímica, com a mesma ternura, com o mesmo amor. Não me levas a mal Avó minha. As coisas belas devem-se dar a conhecer. E tu foste uma lição que aprendi mas desacatei. 

Agora, nesta inesperada calma da tarde, ouço Schubert, raio de luz dançando em melodia, numa rádio Portuguesa. Não sei qual a rádio, nem importa. Importa Schubert. Mas há pouco, o senhor Artur Agostinho, salta para o ar com a nostalgia dos seus tempos de relator desportivo, arranca uma jogada de dribles dentro dum supermercado, e o jogador que leva as compras mete um golo, pagando-o com um cartão "BPI Campeões" e, logo a seguir, o mesmo Artur, agora a vender castanhas assadas, proclama a maravilha de se ser velho porque a "Multiopticas" lhe oferece, a ele velho e a todos os velhos e velhas de Portugal, um desconto igual à idade acumulada; aproveitem meus senhores, quanto mais velho, maior o desconto. Merece a pena ser-se velho em Portugal.

O meu riso amargo por esta publicidade trôpega, burlesca, que atinge as raias da imbecilidade, não me desanuvia, antes mais me debilita.

Minha Mafalda nasceu no Vietnam. Aos meus olhos, aos olhos do mundo, é Vietnamita.

Naturalizo-a portuguesa? Que Portugal tenho para minha filha?

Das notícias que vou ouvindo, ávida de portuguesismo, dou conta dos professores que rejeitam a avaliação; os juristas; os médicos; as moles repartições bolorentas do estado; do sacerdote de profissão que manda para o inferno quem votar sim; do caduco funcionário público que passa horas ao telefone em conversa fiada e privada, fazendo engrossar a fila de contribuintes entrevados, e depois da picante peroração, retorcido, enfadado, olhando para a lâmpada do tecto que tremelica, pergunta "quem está a seguir?", como se não fosse evidente ser o primeiro da fila que o espera já pálido de tanta demora, e outros, e outros, e outros, todos em greve daquelas marcadas para fins-de-semana prolongados, greves sim, greves sim senhor, a forma de luta democrática, e contra isso meus senhores não há argumentos, apenas fé em Deus! Porque Deus é quem mais ordena.

"Fazei tudo o que ele vos disser", disse a Mãe ao Filho Divino.

Bem! Meus queridos Truquistas, minha filha acordou. Ela é o meu refúgio em dias nostálgicos. Viva a alegria!

 Maria, Saigão, 17 de Novembro/06


(Mais uma página do diário da minha querida avó)

"Quando vieste a este mundo, escriturava para mim. Depois do teu nascimento, e já são passados quase vinte e cinco anos desde o dia em que te dei à luz, o meu horizonte passou a pertencer-te. A herdeira deste manuscrito, rascunhado por vezes, outras vezes mais arrumado em caligrafia legível, és tu. Delego-te o meu património sentimental. O outro, - as herdades, o gado, as coudelarias, os sobreiros, os vinhedos, e todas as flores que te tenho ensinado a cultivar, lençol florido das charnecas nunca incultas, são teus inteiramente, pois que a ti tos deixo em testamento.

Se te deste à paciência de me leres desde as primeiras páginas, já conheces como foste concebida. Não posso saber, minha filha, qual a tua idade na altura em que me lês. Uma coisa tenho como certa. Se este "diário" está entre as tuas mãos, eu, tua mãe que sempre te amou, está morta, provavelmente arrumada numa das prateleiras do jazigo da família, ao lado de seu marido.

Decerto que já te perguntaste porque não te confidenciei que Barrete Salvação de Jesus, que sempre se assumiu como teu pai, não foi o teu progenitor. Ainda me interrogo porque não aproveitei os momentos dos nossos silêncios, para te contar o que já leste lá para trás; do teu verdadeiro pai, de cujo rosto já nem me lembro, tens a prova física da tua própria existência e o crucifixo de prata que penduro em cordão doiro e que também já te pertence.

Sabes Maria, o tempo foi passando, acomodei-me ao silêncio, gozando a vossa felicidade, de "pai" para filha, de filha para " pai".

Quando, com os teus sete anos, te levámos a Santarém para iniciares a tua carreira de estudante, não me bastaram o saber-te bem entregue, nem os austeros raspanetes do senhor Padre Amaro para eu reter as minhas lágrimas, nem as ternuras da casta diva Juliana, minha guardiã eterna. Chorei muito, minha filha; eras parte de mim que de mim saía, quase que um abandono voluntário, cruel, dilacerante. Teu pai dizia-me não ser grande a distância, nem difícil o caminho para a visita dominga; para quê tanta lágrima, santo Deus?!

Mas que queres tu! As nossas correrias à capital do Ribatejo não eram suficientes para me alegrar nas quintas, onde passava os meus dias, vagueando.

Oh, minha filha! Como tudo era diferente quando chegavam as férias e retomava-mos as nossas caminhadas pelas herdades...

Como eu era feliz, enfim, nesses dias sem escola que tão depressa passavam, quando, ao fim das tardes, vos via chegar a trote largo, tu montada no São Gabriel, (aquele lindo cavalo negro, lembras-te?), e teu pai no alazão, ambos vocês rindo em folguedo, tu com as botas enlameadas e meu marido com a barba empoeirada, contraste entre lama e pó, era de rir por tal façanha, porque não chovia nem a terra estava de poeira.

Quando fizeste a tua 4ª classe com distinção, prémio tão merecido por seres a melhor da escola inteira, ofereci-te a minha fotografia para a usares na carteirinha. As palavras secas que escrevi no reverso não exprimem a minha nobre vaidade; que queres? Tua mãe nunca foi muito de bajulices.

Mas mais difícil para mim foi depois a tua partida para Lisboa, para o liceu, para a faculdade, onde continuaste a ser uma aluna exemplar. Não descrevo o desgosto dessa partida. Sabe-lo tão bem quanto eu. Pena foi o teu envolvimento no conflito académico de 1941 "contra o aumento das propinas", que nos encheu um pouco de vergonha dada a relação amistosa que mantinha-mos com o Presidente do Conselho. Porquê aquela aventura minha filha? Alguma vez te faltou dinheiro para tudo o que desejavas?

No dia do funeral de meu marido – porque o era de todo o coração - de cuja morte por sorte não assististe, estive tentada a contar-te a confidencia, na esperança de acalmar as tuas sentidas lágrimas de sangue. Mas, se a família inteira, conhecedora da verdade, te ocultou o meu "segredo", que direito me assistia em dar-te duplo desgosto? Tu retribuías-lhe o amor que meu marido te tinha; eu enlevava-me a vê-los, ricos e felizes. 

Compreende-me minha querida filha; não tinha o direito de te fazer sofrer ainda mais.


A minha filha Mafalda.

 Se, ao acordares do primeiro sono do teu nascer,
Identificares a voz que escutas desde a tua concepção; Minhas lágrimas misturadas, alegria e tristeza, por em ti ver,
A filha querida, prova bela, dum grandioso amor recordação;
Fores capaz de, com alegria na alma límpida, entender
O que daqui a tempos te contar, serenamente, sem emoção;
Ficarás a conhecer rosa e espinho, ambos, e compreender
Que jamais existirá, em terra alguma, vida bela sem senão;

 Se estudares as letras, as contas, a filosofia de bem entrares
Na tua vida, construíres sozinha os teus impérios, amigos abnegados;
Confiares no teu valor, no teu saber, na tua coragem de lutares,
Estarás sempre liberta das amarras de patrões brutais e desgraçados,
Lobos famintos em alcateia esfomeada nas neves dos lugares
Por querer de ti o êxtase da cópula e os beijos de preços leiloados;
Gritares a tua voz cimeira, segura, omnipotente, ouvindo-se nos ares
O teu ser, a tua glória independente, senhora sempre em todos os lados.

 Se olhares sem pena O triste crucificado em eterno sofrimento,
Nu, ferido, magro e morto, condenado a destino atormentado,
Sem nunca ter lutado, com força, com coragem, com alento,
E não lhe seguires o aviso; Se te baterem na face, de punho cerrado,
Não ofereceres a contrária, antes ripostares, como cortante vento;
E aniquilares a cobardia ciumenta e torpe pelo teu estudo premiado,
Triunfarás sem bater a portas de favor, pois todas, com pressentimento,
Sabem que conheces o mundo infame, por ti inteiramente desprezado.

 Se o amor te chegar que não lhe baste fazer-te um sinal. Amor florido,
Se o escolheres para os eternos prazeres da vida compartilhada;
Espera-o num jardim de Sol e sombra, corpo adornado de despido,
Se do eterno feminino, mito cadente, és tu na vida inteira desenhada
Num poema vivo, semente que germina no azul celeste abençoada,
Se da deusa da bondade, da permuta do amor bordado em linha,
Dominares as montanhas, os mares, o Mundo inteiro, luz encantada
Oh! Minha filha, se tudo isto fores, serás uma Mulher, Mafalda minha!

Da mãe
Saigão, 2 de Novembro de 06


Viva, Meninos, Amores Meus.

Sobre esta Agência nada de novo.
Quanto a mim tive ontem consulta médica e devo esperar o meu bebé entre a primeira ou segunda semana de Novembro. Enfim, tudo como estava previsto.
Aproveito o dia de hoje para responder a alguns emails, porque todos me mereçem respeito. Todos? Não, não todos!

Dois dedos de escrita dirigida ao Luís Gaspar, meu bom amigo:

Agradeço-lhe a publicação dos emails a mim dirigidos e aqueles que me envia directamente para o meu confidencial endereço.
Reconheço ser a sua querida Truca um espaço aberto mas, a maior parte dos "anonymous said" que lhe escrevem sobre a minha pessoa, conspurcam as fofocas, dão-lhe um ar torpe e nojento, com palavrões indecorosos, impróprios de figurarem no seu site. São tanto mais nojentos que se escondem na capa do anonimato para evitarem dissabores, que bens os teriam se eu soubesse quem eram. Aos que se metem com a minha Querida e Santa Avó, dava-lhes um tiro.
O Luís bem me pode dizer que a Truca tem as "Pilas", disfarçadas com o simpático e ingénuo logótipo, também quase anónimo. Mas as "Pilas" são arte, são amor, são esculturas, são imaginação e prazer.
Portanto, meu amigo, publique os que entender, mas evite reencaminhar-me os "anonymous" mesmo os que dizem estarem perdidos de amor por mim. Obrigada.

Sr. Raul Marcos de Mata-Reis (Truca 459 – 30 de Julho)
Não me lembre de coisas tristes. Salvaterra de Magos é uma poça de sangue.

Maria do Rosário de Deus (idem)
Ispero que teja milhor do curassção. Nau qero que me mande nenhum presentinho.
Fiqe bem com Deus e naõ abra conta num banco pois lhe ficaõ com a reforminha.

Ulisses de Cunha e Sá (Truca 460 – 06 de Agosto)
Não sei se o Luís lhe chegou a dizer, mas o alho a que
me referia era o do bacalhau. O "alho-porro" serve para outras coisas. Espero que o seu companheiro já saiba para que serve o rato.

Américo Luís (autor de diversos dicionários de calão) – (Truca 461 – 13 de Agosto)
Obrigado pelos seus esclarecimentos. A língua portuguesa é muito traiçoeira.
Veja com a editora o que se passa com a distribuição da sua obra. Aqui, no Vietnam, não encontro nenhum dicionário seu.

D. Eduardo Pio (idem)
Havia algum BI onde coubesse tamanho nome para o meu filho?
Viva a Republica, meu amigo.

Forcados de Arneiro Preto (Truca 463 – 27 de Agosto)
Não se arranja por aí uma garrafinha do vinho "Adega do Abade"? O Luís Gaspar disse ser uma pomada Divina.
Fiquem bem.

João B (idem)
Fico feliz por me ler. De facto este mundo é pequeno, e as intrigas publicitárias são iguais em todo o mundo. Também muitas felicidades para si.

Sandra Fernandes (Truca 464 – 3 de Setembro)
Percebo a sua revolta, querida amiga. O Bó era um amor. Mas a velhota matrona ainda sofre hoje com o desgosto. O que seria se ela engolisse uma tíbia inteira? Perdoemos-lhe.

António Gomes Silva (Truca 471- 22 de Outubro)
Não sei como se diz "esturro" em vietnamita. Quanto a falcatrua no sorteio, o meu amigo lá sabe o que se pode fazer a avaliar pela sua aparente experiencia.

O.M. (idem)
Muito obrigado por me ler. Claro que o "Hino à Alegria", ou melhor "Ode à Alegria", está escrito em sentido figurado.
Para mim toda a música (da antiguidade, da barroca, da romântica, etc., etc.) é um Hino à Alegria. Não lhe parece?
Só não gosto de a ouvir como pano de fundo nos filmes de publicidade. Lembra-se, aqui há uns anos, a pequena peça "Para Elisa" (do seu amigo Ludwig van Beethoven) a "vender" a Sapataria Charles? Retribuo as Bjocas.

 (seguem mais umas fotografias do meu ainda pequeno álbum)

Maria, Saigão, 27 de Outubro/06


Truquistas; estou quase a ser mãe.

Vou confidenciar-vos uma coisa; "a crónica semanal" tornou-se-me num hábito de tal modo enraizado que, com dificuldade, me despego desta preocupação de estar atenta ao "assunto" para que não me repita e, com isso, perder o prazer da vossa leitura. Tenho noites de insónias ou de pesadelos a preto e branco, com Maria do Céu a acordar-me, julgando-me com febre, a delirar. Diz-me que me ouve falar alto, palavras que não decifra, soltas, rubras, e preocupa-se porque o meu bebé necessita de noites tranquilas.
Quando o meu filho nascer (já falta pouco), não vou ter tanto tempo para estar convosco. Esta mãe de 42 anos já feitos, vai dedicar-se inteiramente a seu filho.
Maria do Céu faz-me o favor de vos escrever a dar a boa nova e, se possível, remeter-vos a segunda fotografia do meu bebé.
Que maravilha, o meu filho a "andar" por esse mundo fora...
... Vão ser uns meses sem notícias da Agência e, quando regressar ao trabalho, não sei se a Directora ainda por cá estará. Se isto, de facto, acontecer, deve pôr em causa a minha continuidade nesta casa.

O pior que nos aconteceu, foi ter sido admitida aquela pega (desculpem, mas não merece outro nome), amante do cliente que entrou com ela; minou a agência com pólvora seca, delineando um rastilho perfeito por todos os cantos e recantos, ao ponto de arranjar um grupo de pessoas com desfavorável parecer quanto ao credenciado valor da minha amiga Directora.

Estão a vir ao de cima os alicerces dum bem montado conluio. Todos sabemos que ela foi até Hanói, acompanhada pelo Nguyen, o "account predador", com quem compartilhou a cama do hotel, e Chu-Lien, o director comercial se bem se lembram, que, com autoridade, apresentou à direcção da sede, uma lista de pessoas descontentes com a actuação de Jill; pois que raramente estava na agência, não comparecia às reuniões previamente marcadas com clientes que, enfim, podia até dizer-se, andava a dar cabo do prestígio da empresa. Não obstante, usufruía de regalias imerecidas, como uma sumptuosa casa em condomínio fechado, grande carro e um vencimento que era um ultraje à pobreza do Vietnam. Eles, os da lista, profissionais reconhecidos, não estavam dispostos a serem moralmente ultrajados e, com firmeza, com honra, punham os lugares à disposição da sede se a actual direcção de Ho Chi Minh, não fosse demitida com a celeridade conveniente. Contaram ainda - e ele, Chu-Lien, bem o sabia, - haver clientes a receberem umas "massas por fora" para perdoarem a displicência da direcção. Tam, aquela imbecil que decerto não sabe fritar um ovo, para reforçar ainda mais o exposto, para que este tivesse uma consistência de betão, disse ter quase todos os clientes nas suas mãos (ela deveria querer dizer que os tinha na sua cama) e facilmente, Hanói não tivesse dúvidas, os podia encaminhar para um novo projecto, onde se sentissem tratados com ciência, com respeito, com ênfase, com os requintes das últimas técnicas de comunicação. Aliás a bandalhice da direcção tinha-se disseminado por todos, especialmente pelos mais valiosos, pelos criativos claro está, e o trabalho saía dos computadores com a velocidade duma máquina de encher chouriços. Com arrojo, Nguyen, à laia de anedota, no fim da reunião, ainda reforça a bandalheira, revelando ter detido, no último momento, por um acaso feliz, dois trabalhos dirigidos a dois produtos diferentes, com o mesmo headline; "Não Espere Pelo Último Dia da Sua Vida" anunciava bolachas torradas e, a mesmíssima frase, embora com outro arranjo gráfico, dirigia-se a uma pomada anti-reumatismal.

Como sabem, Truquistas, houve alguns colegas e clientes que saíram com esta gente, mas a saída deixou marcas provavelmente indeléveis. Jill, já por duas vezes, foi a Hanói sem motivo aparente.

Mas há um episódio que alegrou os fiéis desta casa e que nunca vos contei; uns quatro dias depois daquela conspiração na capital, apareceu-nos uma senhora magra, de óculos escuros, elegante, bem vestida, com bons modos e vénia requintada. Diz, a quem a recebeu, ser esposa dum dos clientes da Agência e pede para falar com Tam. Enquanto esperava pela "Directora de Projectos", tirou o casaco, os óculos e sentou-se. Quando Tam chegou e lhe pergunta o que lhe desejava, levantou-se e, em breves segundos, ofereceu-nos uma demonstração de artes marciais que deixou a pega sem se poder mexer e com a cara feita num autêntico bolo. Sem dizer palavra, vestiu o casaco, nova vénia de despedida, e deu as boas tardes.

Nunca mais a vimos, até hoje. Tam recebeu tratamento no hospital, esteve sem se poder mexer durante oito dias, mas não apresentou queixa à polícia.

(Tirei ontem a foto que anexo. É a "nova" recepção, depois de recomposta do meu dia aziago. Buda, "Tio Ho" e bandeira. Ah! e a vela, vela sempre acesa).

 Maria, Saigão, 20 de Outubro/06


Truquistas Queridos.

Notícias breves, em capítulos.

1º Capítulo: Necrologia, para bem abrir a crónica da semana.

No mês passado faleceu o polémico senhor Pham Xuan An. A notícia foi contraditória quanto à idade deste cavalheiro. Ouvi dizer 79 anos mas também há versões que apontam para 99. Possivelmente, os meus meninos, leram ou ouviram por aí alguma coisa sobre este homem; reconhecido repórter da revista "Time" e jornalista credenciado da agência noticiosa "Reusters", dois nomes de respeito que não brincam em serviço. Mas este "nosso amigo" brincava e, segundo parece, divertia-se imenso com a sua profissão de repórter da chamada "guerra do Vietnam". Era respeitado pela imprensa ocidental, a tal ponto que chegou a tratar por tu as altas patentes dos exércitos americano e vietnamita do sul. Tudo o que ouvia, desde a simples anedota de salão à inconfessável brejeirice, até aos segredos estratégicos, eram de seguida relatados, tintim por tintim, ao exército do norte, contribuindo, de alma e coração,  para a vitória total do comunismo sobre o imperialismo. Neste País referem-no como "um herói das forças armadas do povo". Não se trata de uma reincarnação de Mata Hari, a mulher fatal e presumível espia.Este Pham, pelo retrato, não era um homem atractivo. Juro.

2º Capítulo: Para me despedir do meu estado de "grávida interessante" fui ver um grandioso espectáculo que vos aconselho vivamente. Maria do Céu tirou a fotografia da praxe, utilizando a sua já conhecida técnica de omitir o que na verdade interessa para se fixar no plano geral. É uma peça de teatro representada debaixo de água. De vez em vez um actor vem a tona da água, julgo que para respirar porque, seguramente, não tem guelras. Anseio pelo dia em que possa trazer o meu filho a este ambiente de luz, música e sonho.

3º Capítulo: O estrago que causei na recepção está reparado. A grande cabeça de Buda, que tinha sofrido algumas escoriações, foi restaurada a preceito com purpurina. O alto candeeiro de ferro, que tinha ficado manco, já se endireita. A moldura pintada a vermelho e preto, que levou duas valentes cabeçadas do Buda,  não mereceu arranjo porque, vendo bem, estava a mais. O próprio candeeiro, desajustava-se no ambiente que se pretende agora moderno, menos pesado, menos convencional, se são estas as palavras mais adequadas para se aplicarem à recepção duma Agência de Publicidade.
Mandar estas duas peças para um dos populares mercados foi posta de lado. Alguém lembrou que, um Cliente, depois do seu Thai Chi matinal, ao deambular por um desses locais onde de tudo se vende, reconhecer aqueles adereços da agência, ao lado de hortaliças, detergentes, desodorizantes, frutas e parafusos. Que pensaria ele? A sua agência ali, ao desbarato?
Lembrei-me das rifas, papelinhos que escondem um número que confere ao sortudo o direito de levar para casa um gatinho de loiça vidrada, ou um crucifixo, ou uma garrafa de ginjinha com elas, enfim, o que a sorte ditar.
Neste caso, sugeri, escrever-se-ia o nosso nome ou o de qualquer amigo.
Mas, não cabendo em minha casa aqueles mostrengos, não fazia qualquer sentido escrever "Maria".

Ó Luís! Não vai acreditar! O nosso colega Ngo retira do saquinho uma das 28 rifas, desembrulha-a com o "suspense" apropriado ao momento solene e lê, ou tenta ler desastradamente, o nome que desde logo adivinhei: TRUCA.
Parabéns Luís Gaspar. Há homens com sorte. As duas peças são suas.
Bom, Maria da Purificação, calma! O envio, como é?
Como nesta terra tudo se transporta por motociclos, desde uma sacola a uma mobília de quarto, indaguei por um orçamento; contas feitas, incluindo o combustível de Saigão a Aiana de Cima, Portugal, (Portugal? – onde fica?), alguns gastos em alimentação, dormidas, bom, uns 18 milhões de Dongs, mais coisa menos coisa. A mais coisa é que me assustou.
Julgo que me será mais barato e mais seguro, mandar-lhe os adereços por via-férrea.
Meu querido Luís; prepare-se para ir até Santa Apolónia.

 Maria, Saigão, 10 de Outubro/06

(Há 192 anos que nasceu, neste dia, o compositor que me faz chorar: Giuseppe Verdi. A sua música será sempre um constante "Hino à Alegria")


(segunda parte da última carta da Maria - Diário da minha avó)

As noites calmas de Juliana, e a cumplicidade que mantinha com o papagaio, foram Sol de pouca dura.

Numa manhã, ao sair do seu quarto, dá de caras com o bicho, hirto, cinzento e mirrado, dependurado da corrente que o prendia ao poleiro. O Dr. Cardoso, depois de o dissecar, foi categórico: a dose de veneno ingerida pelo animal era suficiente para matar um toiro.

Ninguém se atreveu a comentar, mas nunca tive dúvidas quanto ao autor daquela morte.

Barrete, meu marido, mudou então de estratégia. Passou a ignorar-me. Nunca mais se ouviram os seus passos pelo corredor, almoçava e ceava a desoras e, quando me pressentia, cuidava em se esconder.

Ao aperceber-se que o seu desdém era o melhor que me podia acontecer, experimentou um outro comportamento: criar-me ciúmes.

Todos os dias recebia cartas que propositadamente ocultava à minha frente, e chegou ao desplante de deixar "esquecidas", no aparador, duas fotografias duma artista das folies parisienses, em poses atractivas. Pecam estas pela ausência do Moulin Ruge mas, para uma passagem por Lisboa na mira de espectáculos privados, bastam uma máquina de escrever e um carro avariado. O que importa são as perninhas bem à vista e uma dedicatória a condizer. Sempre igual, para todos.

Como não liguei às fotos, Barrete perguntou-me se as tinha visto.

Respondi-lhe, peremptória.

"Claro que vi. Não as deixou ali para isso? Tome cuidado e acautele-se, meu marido. Essas mulheres sofrem de sífilis".

Sentindo nos ombros uma nova derrota com o meu desprezo, escreveu-me uma extensa carta, onde me seduzia com palavras de amor. Pela primeira vez na minha vida, senti-me cortejada. Dizia nela, que sentia por mim e pela sua filha um profundo respeito, que nos amava inteiramente, sem reservas, nem quaisquer malevolências do passado e, por amor de nós, ia tentar a sua sorte por terras de Espanha para enriquecer a sua imagem. 

Um mês e meio depois, em finais de Agosto daquele ano de 1925, regressa a S. Miguel de Rio Torto, com o seu braço direito inutilizado. A profissão de pegador de toiros, estava definitivamente arrumada, depois da má sorte em Pamplona.

Vi-lhe lágrimas nos olhos castanhos – nunca tinha reparado que meu marido tinha olhos castanhos – e, enquanto me beijava numa das faces, segredava-me saudades que de mim tinha sentido!

Quis desde logo saber da nossa filha, inteirar-se pelo seu crescimento, envaidecer-se pelos seus primeiros passos e pelas palavras incompreensíveis que apenas eu entendia e traduzia. A maior parte do tempo, disse-lhe, andava com ela pelas lezírias porque não se pode viver sem flores.

Pediu-me a mão. Dei-lha. Encaminhou-me então para a porta principal.

Fiquei estupefacta; à minha frente, garboso, negro, lindo, esperava-me um jovem cavalo, aparelhado a preceito, à rédea solta, ao lado dum campino. Fiquei sem poder respirar.

"É seu, querida esposa. Baptize-o, e galope!".

Dei um beijo nos lábios de meu marido, obedeci com alegria de criança e, mesmo como estava vestida, montei o animal. Primeiro a passo, depois a trote até ao portão da quinta, e depois a galope pelos campos doirados. Sem nos conhecermos, ambos entendíamo-nos por instinto.

Cavalguei pelas várias herdades da família e desmontei perto dum riacho para não rebentar o cavalo. E, enquanto eu própria bebia também da água fresca, vi o reflexo de mim perguntar-me se não podia esquecer Lazaro Arteche Malaguilla.

Vendo bem, minha filha não tinha sido concebida com amor. Era, isso sim, a prova duma facílima conquista dum homem em noite de lua cheia, com uma jovem que se sentira atraída por uma canção melodiosa. Quantas crianças não estariam dispersas pelo Mundo graças a uma serenata?

Senti-me fraquejar. Era tempo de reflectir e pensar no dia de amanhã.

Eu tinha agora 18 anos. Meu marido 28.

Ambos estávamos a perder a nossa juventude.

(As fotos que anexo devem ser as que minha Santa e Querida Avó se refere)

Maria, Saigão, 28 de Setembro/06


(Diário da minha avó)

Amados Truquistas! Perguntar-me-ão! Quanto acaba esta História de Minha Avó?

"Não me foi necessária coragem para rasgar uma série de folhas deste 3º caderno de almaço, reescrevendo, em síntese, o que me parece de mais relevante, nestas páginas do meu "diário oficial". Há distância de dois anos, tantos que marcam aquela forte cornada que pôs fim à vida de meu marido, na trágica tarde de 28 de Agosto de 1947, os acontecimentos que reescrevo com este velho aparo a riscar o papel, parecem-me ficção, mas, sabendo-a não contrária à realidade, não me permito omitir algumas ocorrências, que influenciaram e moldaram a minha personalidade. As páginas que rasguei, cortei-as em bocadinhos, e deitei-as pela janela.

Pareciam flocos de neve e desapareceram para sempre.

No dia 5 de Outubro de 1923, nascia minha filha quando, no "casarão" de São Miguel de Rio Torto, a criadagem preparava o seu nascimento apenas para dali a um mês. Mas Maria dos Remédios Purificação Jesus, seu nome de baptismo, quis fazer-me companhia naquela tarde solarenga de Outono e, em pleno almargeal, quase sem eu sentir, a Natureza fez-me mãe, oferecendo-me aquele ser pequenino que criava nas minhas entranhas desde Guadalajara.

Erguia-a ao céu azul, pois me senti na obrigação de a mostrar a Lazaro Arteche Malaguilla, seu pai, onde quer que ele estivesse. Dois campinos, esbugalhados, desmontaram dos seus cavalos suados. Um deles, parteiro experiente das vacas da manada, lá me arranjou como pode e levou-me a casa. Quando entrei no "casarão" com a minha filha nos braços, minha tia desmaiou e Juliana ficou alarmada. Chamou aos gritos as raparigas da casa, mandou alguém pelo médico, correu a ferver água... mas a minha Maria só queria comer e ser feliz. Não sei descrever a espantosa exultação quando, pela primeira vez, dei o meu peito de leite saudável à minha pequerrucha.

Barrete Salvação de Jesus, meu marido, chegou a casa na altura em que os galos profetizavam mais um dia. Perdido de bêbado, emborcou um copo cheio de café forte, e recebeu a notícia que era pai da menina mais bonita do Mundo. Preferia um varão, como já todos sabíamos, mas o meu santo e querido Padre Amaro, uns dias depois, com paciência e precaução, disse-lhe que tinha muitos anos à frente para voltar a ser pai quantas vezes o entendesse. Maria, sua mulher, vendia saúde, e não deixaria de lhe dar fortes rapazes. Tudo se arranjaria com a Divina Graça do Senhor.

Pela primeira vez na sua vida, meu marido, ao dar um beijo a minha filha, tomou consciência que era um homem casado e, mais do que isso, pai.

Afligia-o e desgostava-o nunca ter tido comigo uma noite de amor. Eu repudiava-o, fiel à minha promessa e a Lazaro Malaguilla. Não me interessava nada ter na minha cama um corpo de homem nu, cheio de cicatrizes de cornadas, cheirando a vinho e a noitadas com prostitutas amantes de toureiros.

Juliana, a quem confidenciei o meu propósito celibatário, arranjou dois quartos principescos. No corredor longo e lúgubre, assentou o meu marido logo no primeiro dos treze aposentos. O meu era o último, o único que desfrutava duma larga janela virada para o roseiral. O quarto de Juliana antecedia o meu, escolha acertada como se verificou nos primeiros dias.

Quando meu marido, com passos mansos por mor dos ruídos do soalho, cambaleando, se aproximava do meu quarto, aparecia-lhe Juliana, sentinela sempre alerta, e lembrava-lhe ser o quarto dele o primeiro a contar da porta da entrada.

Mas extenuada de tanta vigília, seguiu os conselhos de uma das mulheres do mercado. Foi assim que um dia deparo com um papagaio em poleiro apropriado, fixo à parede com escapula forte, mesmo ao lado da porta do quarto de Juliana. Era um bicho belíssimo, imponente, metendo respeito. De plumagem verde e bico fortemente aquilino, especialmente eficaz em espantar intrusos inconvenientes, ensinado a preceito pela cartomante que o vendeu, mostrou, logo nessa primeira noite, ter sido de grande utilidade o investimento.

Meu marido, numa nova investida ao meu quarto, é surpreendido por uma voz rouca e gutural que o aterrorizou; "Barrete à vista...Barrete à vista"

Barrete fugiu a sete pés, julgando tratar-se do regresso dum espírito maligno que, dizia-se, existira naquele casarão, anos antes de o meu bisavô o adquirir.

Com o alarido, Juliana também acordou, mas podia agora, descansadamente, espreguiçar-se, voltar-se para o outro lado, e adormecer de novo".


Outro "25 de Abril"... com rosas?!

Saltando por cima do Camboja, nosso vizinho, estamos no reino da Tailândia.
O primeiro-ministro Thaksin Shinawatra, de visita a uma instância balnear no quarteirão da ONU, em Nova Iorque, foi informado, telefonicamente, no dia 19, que o seu governo tinha sido demitido por uma junta militar que decretara, desde logo, a lei marcial. O Rei e a Rainha, para evitarem alaridos de maior, reconheceram de imediato a junta e o golpe.
Jill, amiga de dois portugueses e dum inglês que há trinta anos trabalham em Banguecoque, telefonou-lhes, para se inteirar da situação. "Golpe?. Que golpe?"- perguntaram-lhe.
Foi ela própria a dar-lhes a notícia. Mais tarde, num outro telefonema, com a maior das naturalidades, confirmaram-lhe que, de facto, tinha havido um golpe: "Estamos habituados às golpadas. Há anos que isto é assim. Julgamos, aliás, que não sabemos viver de outra maneira". Todos os dias, estes portugueses saem para os respectivos empregos, os filhos para as escolas, as mulheres para as suas lides e, de tempos a tempos, há um golpe.
O Inglês, antigo "skinhead" e hoje um bem sucedido industrial, ainda chegou a dizer a Jill que estava bastante admirado por não haver golpe há uns tempos e que, presumivelmente, este estaria relacionado com a corrupção de todos os governantes tailandeses juntos. Também lhe disse que o próximo primeiro-ministro, deveria fazer algumas reformas ao sistema, privilegiando a classe produtiva incorrupta – como era o seu caso - favorecendo assim algumas iniciativas lucrativas que não arrancavam por falta de vontade política.
Vi na televisão algumas mulheres distribuírem rosas amarelas aos soldados num desesperante contraste com os cravos vermelhos do 25 de Abril Português. Sempre ouvi dizer que quem gosta da cor amarela, tem muito mau gosto.

Já foi apurado o prejuízo do desaire por mim provocado na recepção. São milhões de Dongs, ou seja 535 €. Faço questão de pagar... em prestações suaves.

O director de produção (responsável por todo o material impresso) também se demitiu desta 145 Worldwide . Foi convidado por uma Central de Produção vocacionada na área gráfica, possuindo ainda um departamento criativo. Esta Central trabalha com fotógrafos de fama mundial, e representa os principais catálogos das empresas "Corbis" e "Getty Images". Confidenciou-me que já tinha feito dois ou três cartazes, "para mostrar os seus conhecimentos", conseguindo um orçamento inferior a 25% do estimado pela Agência. Comprova-o com obra feita. Veja-se o cartaz de rua, e as tarjas a toda a largura das avenidas, produzidas no ano passado, à revelia da Agência. A qualidade não é para quantificar. Trata-se duma linguagem para o povo e não de um perfume para a camuflada burguesia.
As tão repentinas saídas de alguns profissionais, estão a deixar esta casa desfalcada de pessoas e de dinheiro. Mais de metade dos que já abalaram eram simultaneamente sócios (quota simbólica, inferior a 5%) mas, as indemnizações e a compra das respectivas quotas, atingiram valores significativos. Ainda por cima, não ouve um único que se lembrasse de pagar contas antigas, já no rol das esquecidas. Um novo televisor para um, duas caras reproduções de quadros de Monet ("A Estação de Saint-Lazare" - que o cinema tanto tem homenageado – e "Mulher olhando para a esquerda") pra outro, uns pagamentos antecipados de horas extraordinárias que nunca chegaram a ser feitas... enfim, por aí fora, até fartar.

Vamos a coisas mais sérias. O meu querido filho, parte de mim e dum homem de quem tanto me lembro e que jamais esquecerei, deve nascer na segunda semana de Novembro.
A rameira, que continua com o desgosto da morte do Bó, já se ofereceu para cuidar do bebé quando eu retomar o trabalho, depois de terminada a minha "baixa de parto". Tenho que pensar no assunto.

Até para a semana... com a minha querida e Santa Avó.
Maria, Saigão, 22 de Setembro/06


Truquistas; tenham cuidado com o Diabo.

Já vos tenho confessado ser laica, uma das heranças que recebi de minha querida e Santa Avó, que me confessou que o seu laicismo lhe advinha da semana que passou no colégio das Doroteias, em Abrantes, quando tinha dez anos de idade.
Mas, mesmo assim, há horas em que acredito na existência do Demónio. Sendo este um concorrente da autoridade Divina, estando sempre à espreita duma oportunidade que lhe dê um estatuto de maior relevo nos escritos da "Boa-Nova", não perde uma oportunidade de fazer valer os seus direitos quando apanha distraído o seu próprio Criador. Muitas vezes, ou mesmo quase sempre, leva-lhe vantagem.

Quando ontem, já ao fim da tarde, me preparava para tirar uma fotografia à recepção desta 145 Worldwild, com o pessoal da limpeza a entrar com baldes, aspirador e outros acessórios, aconteceu-me um acidente de tal modo inverosímil que todos irão pensar que a gíria "há horas do Diabo" não passa de balelas. Enganam-se; de facto existem.  
Em uma qualquer crónica, já vos contei que em toda a Agência há uma fotografia de Ho Chi Minh. Todas a preto e branco, mas todas diferentes. Poses em perfil, de frente, a três quartos, instantâneos em diversas cerimónias, vestido aqui de camponês e ali de estudante, em uniforme militar também, novo ainda ou de mais idade, enfim... só as moldura e as dimensões das fotos se mantêm iguais em todos os gabinetes.

A recepção desta casa, para lá duma secretária onde se encontra a central telefónica, tem quatro cadeiras forradas de pele vermelha que antecedem a porta de vidro fosco que dá acesso à sala de reuniões. Na parede onde as cadeiras se encostam, umas grandes fotografias de cenas quotidianas da chamada "Guerra do Vietnam". Quando se entra, à direita, na mesa sóbria e comprida, está exposta uma cabeça dourada de Buda de grandes dimensões sobre uma base quadrada de madeira negra, a foto do "tio Ho" e, no centro da mesa, uma vela vermelha sempre acesa, ilumina-os como um ponto de luz.

As bandeiras nacional e de fantasia, que se desfraldam ligeiramente quando as duas portas estão abertas, encontram-se mais à esquerda, já fora da mesa, imponentes nos seus mastros de metal. Era este, portanto, o conjunto de Iluminados - Ho, Buda, vela e bandeiras que eu gostava de fotografar – quando, ao tentar enquadrar este conjunto, apuro não caber tudo isto dentro da minha pequena máquina.
É aqui que entra o importante papel do Diabo: segredou-me ser indispensável encurtar a distância entre o Buda e Ho, botando a vela acesa ainda um pouco mais para a esquerda.
A cabeça dourada do Buda, que pesa uma tonelada (soube-o naquele momento) não está fixa à base de madeira.

O resultado foi catastrófico. Ao tentar pegar na base que a exibe, a cabeça desequilibra-se e cai com estrondo em cima do tubo do aspirador, espalmando-o. Por sua vez, como se se tratasse dum plano inclinado, a outra extremidade do tubo parte o vidro da secretária. Entretanto a moldura de Ho Chi Minh, cai também, como se tivesse sido atingida por uma bomba americana. O vidro desta estilhaça-se e desenha, na mesa, em baixo relevo, um bom apontamento de arte cubista. Um dos bocados deste vidro voa como uma seta nativa, passando resvés pelo pescoço de uma das mulheres, indo bater num dos cartazes, pulverizando o vidro que o protegia. Este, ao cair em mil bocados, ainda tem tempo para danificar profundamente uma das cadeiras de pele.

A vela acesa tombou, e apanhou pelo caminho a Bandeira Nacional que desde logo começa a arder como pólvora muito seca. Um extintor, trazido por alguém, consegue apagar o fogo quando as chamas já chegavam à estrela de cinco pontas.
Num segundo a recepção ficou um caos. Olhámo-nos embasbacadas. Ninguém conseguia explicar o que na realidade se tinha passado.

Tenho de reivindicar os meus direitos porque, segundo dizem os doutores da Igreja, também sou uma criação divina.
Vou ter, em breve, uma pequena conversa com o Demónio.

 Maria, Saigão, 14 de Setembro/06 (É verdade, ontem foi dia 13... mas não era 6ª feira!)


Truquista, Toi yeu em *

 

Na última visita a Hanói levava um objectivo muito preciso: ver o mausoléu onde repousa, numa urna de cristal, o corpo do herói deste povo que ama a paz: Ho Chi Minh.

O mausoléu vi. O cadáver não.

Uma vez por ano, o que resta do herói, é levado até à Rússia para "restauro". Há que tentar preservar, o mais tempo possível, a quase múmia do "tio Ho", como tão carinhosamente lhe chamam.

Falecido em 1969, seis anos antes de reunificação desta C?ng Hòa Xã H?i Ch? Nghi˜a Vi?t Nam, ou, melhor escrevendo, República Socialista do Vietnam, Ho entrou para a História Universal como um dos maiores estrategas militares e um dos mais apaixonados patriotas. Honra-se e perpetua-se a sua memória nesta cidade onde vivo, que se chama exactamente Ho Chi Minh mas que eu, não sei bem porquê, continuo a assinalar-me como habitando Saigão. Talvez pelo nome do rio. Talvez por imaginar que o herói está presente no dia-a-dia desta gente buliçosa e que compartilha, com o seu povo, o infernal barulho dos motores e das buzinas. Este fundador da "Liga para a Independência" quando tinha 51 anos de idade, embora doente, querelas duma tuberculose que levou anos a tentar curar, continua a fazer as suas compras no mercado flutuante, a dar passeios até à capital imperial de Hué, e, simultaneamente, a recordar-se da batalha de Dien Bien Phu, em Maio de 1954, onde o Corpo Expedicionário Francês foi reduzido a uma ínfima expressão.

Está um pouco confuso, talvez, em datas e acontecimentos heróicos, mas vejo-lhe lágrimas pelos camaradas presos, torturados e mortos. Não esconde uma grande tristeza na alma por lhe ter escapado a desordenada fuga dos americanos, derrotados por uma estratégia superior e muito menos bélica. Exército que perdeu 60 mil soldados e deixou neste País dois milhões de mortos e mais de um milhão de crianças órfãs. Grandes extensões de terreno fértil pulverizados de produtos tóxicos. Mas a Natureza está a recuperar a terra que foi considerada morta para sempre, e Ho sorri agora, a meu lado, ao recordar os quilómetros de túneis invisíveis, cavados e camuflados no subsolo daquelas selvas férteis, onde se organizava a guerrilha, se vivia o dia-a-dia de guerrilheiro astuto; estes célebres túneis ofertaram para a narrativa histórica, cenas quase anedóticas; ao entreabrir-se a entrada dum esconderijo, camuflado com muitos ramos de vegetação, podia ver-se soldados americanos, mesmo ali a vinte metros, em momentos de lazer, fumando ou contando anedotas, não lhes passando pela cabeça que estavam a ser observados pelo inimigo, ali tão perto.

Também nunca deram conta, ou melhor, viam com indiferença, os fumos brancos que saíam da terra, a pouca distância das suas tendas aquarteladas, outros mais longe, ainda outros muito mais além, sem lhes passar pela cabeça tratar-se de chaminés, lume brando para o chá, o almoço e o jantar dos guerrilheiros. O subsolo era a casa de cada combatente vietnamita.

Visitei uma pequena parte dos túneis. É impressionante como se podia viver naquele espaço claustrofóbico. 65.000 dongs, preço do bilhete. Baratíssimo.

Mas, mais do que tudo, Ho espanta-se ao ver que o Vietnam tem agora uma nova alma de empresários que assumem a liderança de grandes empresas lucrativas, de estudantes ansiosos por uma cultura global, de artistas, de homens de saber. Este seu País, é pobre ainda, mas calma amigos, porque "Roma e Pavia não se fizeram num dia". Um embargo de mais de vinte anos não é fácil de superar e Nguyen – seu verdadeiro nome – sabe disso. Mas sabe também que, nesta terra, quase não existe criminalidade sendo assim um paraíso para os turistas que aos milhares a procuram.

Ho Chi Minh parece viver um sonho. Filho dum pai doutor em literatura, desde tenra idade habituou-se a beber-lhe as palavras nacionalistas e, com 21 anos, está na América, depois em Inglaterra, depois na Alemanha e por fim França, a Paris que adorou e onde foi socialista e comunista de corpo inteiro. A seguir a China, Moscovo, prisões, poemas escritos nas celas, hinos à liberdade e à esperança duma eterna Paz.

Desconhece, todavia, que o Banco Mundial, num relatório de há dois anos, escreveu:

"...as realizações do Vietnam, no respeitante ao combate à pobreza, são um dos maiores sucessos da história do desenvolvimento económico"

Maria, Saigão, 7 de Setembro/06

* Truquita, amo-te.


Não vos vou escrever sobre a minha querida Avó...

... mas apetecia-me pegar no seu "diário", exemplar único no Mundo, relê-lo infinitamente, deliciar-me com as recordações do seu universo, resumir ou transcrever na integra tudo o que ainda há para contar até ao dia da sua morte física. Ela está sempre a meu lado, em pessoa poderei dize-lo, aconselhando-me, sorrindo-me, passando as suas mãos pelos meus cabelos e dando-me um beijo antes de me deixar adormecer: "Dorme bem minha querida filha, vemo-nos amanhã ao raiar do Sol".

Mas hoje, tal como ontem, ninguém pode ir à agência. Ventos fortíssimos, árvores caídas, avenidas rasgadas pelas chuvas intensas. Os climas tropicais, para quem não está habituado, são difíceis de suportar.

Volto a repetir-vos, se não se importam. Que saudades de Aiana-de-Cima! O Luís vive no paraíso.

Estou então em casa, no conforto do meu apartamento, ouvindo, de Tchaikovsky, um concerto para violino, enquanto procuro motivos que entretenham a vossa paciência.

Maria de Céu, no canapé, deixou-se adormecer. O livro que anda a ler, "A Vida de Lenine" está aberto, abandonado acima das pernas. Depois de ter terminado "A Vida de Che" – julgo que ficou apaixonada por aquele médico argentino, anticonformista, jovem, frágil e belo, que dedicou a sua vida de homem, estudante e guerrilheiro, a uma causa justa – a minha companheira e amiga, sofreu uma metamorfose intelectual motivada, talvez, pelo arrepiante lema peronista:

"Matar um estudante é uma obra patriótica".

A propósito de estudante, queridos Truquistas, fico fulminada (é uma palavra forte, como já vão ver) pelas leituras que faço no galáctico mundo dos blogues portugueses. Procuro, na maior parte das vezes, os que se relacionam com publicidade.

Não me posso queixar de todos. Mas, como exemplo, vão até o "onossoportfolio".

Trata-se duma mostra dos anúncios que se vão fazendo em Portugal e onde os publicitários (sê-lo-ão, de facto?) têm oportunidade de exercer o direito de votar, ou seja, dar o seu entendido parecer. Entendido? Publicitários?

Um homem, ou mulher, que comunica com um determinado público implicado num produto ou num serviço, deve ser uma pessoa bem informada, culta, criativa, inovadora, conhecedora, entusiasta, humilde e, principalmente, insatisfeito. O profissional com este perfil não tem a certeza (por mais avaliações que se façam) se o seu trabalho acertou no alvo, mesmo que, paradoxalmente, os resultados se venham a revelar satisfatórios.

Este blogue que vos indico, como eventualmente outros, podia ser um meio de meditação e reflexão sobre estética, beleza, criatividade e... pouco mais, porque, desconhecendo-se os objectivos de uma campanha (chama-se briefing, não é?) torna-se impossível saber se o trabalho está ou não aceitável.

Mas "onossoportfolio" tem outros objectivos; dirige-se à maledicência, à inveja, ao palavrão porco, sujo e nojento. A coberto do "anónymous said" leio comentários inconcebíveis referentes a diversas peças publicitárias:

"Não percam tempo com esta merda". "A porra dos filmes (TMN) passam 4 vezes no mesmo intervalo". "Então os gajos (UNICER) têm tomates para fazer um anuncio destes...", "...tomates não é coisa que abunde lá pela Unicer...", "...Acho que a Super Bock sabe a rabo". Do Kit Sócio Benfica "O Pior Golo" lê-se: "As minhas opções sexuais são várias, caro anónimo, a natureza me deu beleza, inteligência e potência além do normal, não me faltam opções realmente". Da Agência RSCG (será?): "pago muito mais do que merecem. Se não gostam vão-se embora para a Publicis com aquele inválido que despedi no mês passado!". E o inválido responde: "pois sou inválido mas andei a encher-te de grana estes anos todos à custa de muito trabalho extra que nunca me pagaste, espertalhão".

Sobre a campanha "Adágios Versus" (Publicis) "cagalhão ambulante", "É fraco pra caralho"

Sobre o tabalho da BBDO (o polémico filme da campanha de sensibilização das crianças mortas nas estradas) lê-se: "o cargo está nas mãos da pessoa errada".

Outros: "...dos criativos da JWT, feios e cagões,...". "não é só a Maccan que faz trabalho de merda para a Worten.

Nem quero fazer ideia dos que são censurados: "Comment deleted; this post has been removed by the blog administrator".

Não volto ao blogue. Perca de tempo. Inútil. Triste. Desgosto-me ao pensar haver um Truquista por aquelas paragens.

Maria, Saigão, 30 de Agosto/06

Nota final: Querida Maria Guilhermina. O "aviso de recepção" que tanto a preocupada (da chucha que me enviou) não andará perdido nos correios portugueses? Esqueça-o e veja a foto que lhe ofereço. Que tal lhe parece o tempo por aqui?


Então Truquistas, estão a gostar das férias?

 Neste clima de monções nunca se sabe quando rebenta uma carga de água. Mas todo o vietnamita está habituado a estas mudanças repentinas e arranja sempre forma de se abrigar da borrasca.
Mas aí em Portugal – no Meco, por exemplo – gostava de vos ver nos banhos de Sol (desse Sol único), com bonitos "bronzeados" (que inveja!) e, de repente, uma carga de água que não dá tempo a sacudir a toalha. Dez minutos depois, de novo o Sol, e eis-vos na areia molhada, sem saberem bem o que se passou. Nuvem passageira, claro está.
O pior é que, 15 minutos depois, nova carga, mais forte ainda, sendo que esta vem para ficar. Pragueja-se, maldiz-se do buraco do ozono que está a adulterar o clima, pragas aos Americanos que não assinam o "Protocolo de Quioto" porque, se o fizerem, deixam de poder vender uma galáxia de sprays bronzeadores, com que vocês, Truquistas da minha vida, tanto se untam.

 Mas nesta Agência o tempo é outro. Depois de várias reuniões e contra-reuniões, já são conhecidas as pessoas que vão sair para a nova empresa. Este trama já devia estar a ser preparado há muito tempo, porque não se arranjam instalações daquelas, de um dia para o outro. Vejam no mapa que vos mando, e avaliem a linda vista para o rio.
Já as visitei, a convite de Nguyen, o "account predador" (da equipa de contactos é ele o único a sair), que me sondou para acompanhar os dissidentes. Esqueci o convite, ainda que agradecida. Sou amiga da Directora que de braços abertos me abriu as portas da 145 Worldwide. Dar-lhe-ia grande desgosto se pedisse a minha demissão. Por outro lado, uma nova agência, é sempre uma aventura imprevisível, como o são todas as aventuras.
À cabeça da lista, Chu-Lien (agora se percebe para onde foi a elevada indemnização que a agência deu a este homem, ao dispensar os seus serviços), Bao-Dai (gráfico), Che Lien (TV Producer), Nguyen Aha (director criativo), Ton Duc Thang (copy), Tam (a do cliente "paliteiro") que não sei qual o cargo que vai desempenhar e, para minha grande surpresa, a querida Kim que sabe fazer o melhor chá do mundo.
Mas esta gente não sai com as mãos a abanar. Alguns clientes, tão arduamente conquistados, seguem o grupo. O do Chá, por exemplo, representa cerca de 14% do orçamento total da Agência. Também sai Minh Lap, o da pilinha. Já é "muita fruta".

Em Hanói tudo tranquilo. Dizem haver muitos clientes em fila de espera.
Nguyen fez questão de me convidar para jantar. O restaurante localiza-se mesmo ao lado das instalações da nova Agência, na rua Nguyen Tat Thanh. Foi requintadíssimo: 
Uma taça de champanhe para o brinde, peruvian ceviche, lobster salad, atum e espargos brancos de prato principal, e sushi/sashimi para finalizar... regado a hot sake. Comida deliciosa, apresentação artística e impecável (reparem no prato da sopa), o ambiente luxuoso, e uma linda saudação do pessoal feminino aos clientes que se despedem. Tirei as fotografias que vos mando.
Durante o jantar a conversa com Nguyen foi variada: a heroicidade de seu pai durante a guerra (que merece uma crónica especial), o porquê da sua saída da 145 e, quando terminámos a refeição, com todo o respeito, ofereceu-me o perfume "Flor de Riacho", dizendo-me que era uma homenagem à amizade que me dedicava. Eu que não lhe levasse a mal uma ou outra atitude menos cavalheira.
Levou-me a casa.
Maria do Céu, pedrada e cheia de ciúmes, disse-me que eu não podia "fazer noitadas". Já na cama, acariciou muito ao de leve a minha barriguinha com óleo de amêndoa "para evitar estrias", e deu-me a notícia da morte do Bó, pouco tempo após ter engolido um pequeno osso de frango.
A velha prostituta, a quem eu o tinha oferecido, está desfeita. Sente-se culpada da morte do bicho e chora o dia inteiro. O Bó era a sua única companhia.

 Maria, Saigão, 25 de Agosto/06
(vejam os anexos)


Amados Truquistas (a duas cores, para variar)

 Levei o meu pequenino ao médico. Tudo óptimo. Sete meses duma gestação perfeita. Nada me impede de andar de bicicleta e de praticar o meu "Tai Chi Tenssen". Antes pelo contrário. Devo faze-lo.

Ontem, na agenda de trabalho, cumpria-me elaborar a "confirmação de contacto" da reunião mensal, com um dos principais clientes desta agência. É um hábito adquirido e um trabalho que gosto de fazer.

Sala preparada. O écran para o "slide show" habitual. Oito chávenas para chá, oito blocos de apontamentos. Oito cadeiras. Mas o cliente aparece com mais uma pessoa, uma mulher dos seus 30, 35 anos. Forte, morena, francesa de nome Amélie Olin. Recente contratação do cliente, credenciada com perfil necessário para se responsabilizar pela "Cadeia de Vendas" e conquistar credibilidade na complexa rede de vendedores, distribuidores e comerciantes.

Quando Kim entra na sala com dois bules cheios, assinalo-lhe que falta uma cadeira.

Durante a demorada cerimónia do chá, as conversas dispersaram-se por assuntos relacionados com as "novas estratégias de Marketing", estudos que se impunham prementes, dada a fortíssima concorrência da vizinha do lado, a China enorme "que ofusca a nossa espectacular recuperação económica."

A conversa acalorou e fiquei por momentos sem perceber se esta se relacionava com a agenda programada ou se era circunstancial dum improviso colectivo.

Antes de continuar tenho que vos dizer, meus queridos, que qualquer pessoa saudável tem necessidade de expulsar gazes. Fá-lo cerimoniosamente, sem "dar nas vistas". Afasta-se dum local concorrido, como quem procura haveres, para, por momentos, se aliviar. Já o Doutor Cardoso, estilo João Semana ribatejano, tinha o hábito de dizer "Alimentos muito fibrosos causam gazes e estes são para se deitarem fora. Ou por cima ou por baixo. O que importa é serem expulsos".

Mas a nossa amiga francesa Amélie não faz a mínima cerimónia na sua Flatulência quase permanente. O Cliente deveria estar desde logo habituado àquela sem-cerimónia. Mas nós não. Olhámo-nos envergonhados e, depois da reunião, interrogámo-nos: como é que uma mulher mal cheirosa, pode assegurar um bom relacionamento com os comerciantes, distribuidores e vendedores?

Vejam o rascunho da minha "confirmação de reunião antes da ordem do dia" e componham o juízo que entenderem fazer, das dispersas conversa dos presentes e dos ruídos que identifiquei:

"Da quantidade de arroz não temos (pum) que nos preocupar. Somos o terceiro maior exportador do mundo (pum, pum)". "Mas eles têm (pum, bem audível) trigo, milho, soja, (pum) açúcar". "Por outro, os incentivos para verem muita televisão (pum), e fazerem apenas um filho por casal (pum, pum, este ultimo bem amplificado), não está a dar (pum, com eco) o resultado esperado (pum). Cada vez há mais crianças". "Mas a teoria de Marketing (pum) só podia ser inventada na terra do Tio Sam". "Quem é (pum, muito suave, seguido de tosse) esse gajo? esse tio?" perguntou-me alguém. Encolhi os ombros.

Kim levantou as chávenas e saiu da sala (pum, pum, pum, à laia de foguetes).

"Você tem razão. O Marketing (puuum) não foi inventado para servir o consumidor. Algum consumidor se lembraria ser-lhe necessária (pum) uma faca eléctrica para cortar fatias de pão? (pum, repenicado) O Marketing foi inventado (pum, muito suave) para servir o grande capital...."

No final da reunião, Amélie (que se manteve sempre calada), simpática, convidou-me a almoçar num restaurante brasileiro que tinha de aberto apenas oito dias. "Magnificas a feijoada (pum) e a carne de porco. É pena eu só gostar de bebidas gaseificadas (pum) porque com um bom Château...Mas se não pode, Marrie, paciência (pum). Fica para a próxima".

 Maria, Saigão, 18 de Agosto/06