CARTAS
da
Maria da Purificação Jesus (5)
(publicitária portuguesa no Vietname)

 


Mais uma Semana, Meus Queridos:

A ressaca dos anos de Mafalda já passou.
Foi uma semana cheia; Cláudia a trabalhar connosco na apresentação de novos projectos. Vai amanhã para Macau.
Entretanto o trabalho até aqui desenvolvido tem tido resultados escapatórios. Algumas dificuldades na distribuição, e uma política de preços um pouco desajustada com as possibilidades dos consumidores de Saigão, foram entraves para os números que se esperavam mais positivos. Mas ainda é tempo de se recuperar com uma revisão aos custos e à acção distributiva.

Esta semana mando uma página do "Diário da Minha Querida e Santa Avó", com um fim trágico e cómico.
Há uns anos, em Lisboa, vi um filme dum realizador italiano de nome Fellini. Não me recordo do nome do filme mas, no decorrer de toda a trama, tinha uma cena com um maluquinho em cima duma árvore a gritar que queria uma mulher. Será que Fellini leu o "Diário" da minha avó?
Estou a brincar.!!!!
Esta nova página (magnifica como já vão ler) é ilustrada com algumas fotografias. Vamos ver se o Luís as publica na ordem com que lhe peço; por norma troca-as.
Julgo que o faz de propósito!
Vamos então:
Mafalda no dia seguinte ao seu aniversário

Diário da avó:
1ª Indicador de direcção (que hoje já não deve existir)
2ª Gado ao longe (julgo ter sido por estes lados que se deu a cheia que minha avó descreve)
3ª Juliana (vestida de escuro) com criadagem do Casarão (incluídos alguns familiares dos mesmos). São raras as fotografias de Juliana. Não sei qual a sua idade nesta foto.

Nota histórica da semana: Um período duma das cartas de amor que recebo quase diariamente. Estou intrigada. De quem serão?
"Temos tanto para dar um ao outro, meu Amor: Todas as montanhas, todas as águas das fontes, todas as flores da natureza, todas as nuvens, todo o resplendor do Sol deste nosso universo. Tu e eu respiramos o mesmo ar, a mesma esperança, o mesmo desejo dum leve toque que luz brilhante faz ressaltar da escuridão de entraves imaginários"

Maria, Saigão, 16 de Novembro/07

 

(in Diário da minha Avó)

Meu querido Diário:

Tenho andado arredia de ti, sem vontade de te entregar os segredos da minha alma e que tu tão bem sabes guardar no silêncio do cofre. Os bicos do aparo secaram. A tinta azul está quase no fim. As folhas deste caderno estão húmidas. A estação invernosa acaba por nos largar tardiamente. Tem chovido muito e a desoras. A sementeira apodrece com tanta água. O gado pasta na lama. Já morreram animais por afogamento.
E o dia-a-dia repete-se em canseiras; protestos dos trabalhadores da "Quinta Nova", antigo couto abandonado que meu pai comprou há 20 anos. A guarda já prendeu três dos protestantes.
Vejo, minha filha, o teu avô a envelhecer com a frágil lentidão do relógio de pêndulo da sala de fumo.
Meu marido mal me olha de tão atarefado pelos negócios.
As noites são quase sempre preenchidas com a preciosa companhia dos nossos amigos, das conversas de toiros e toureiros, de pegas, forcados e bandarilheiros, cavalos de cortesia e de toureio, mas também da arte pictórica de Victor Figueira, pupilo de teu avô, que passou pelos desgostos traumáticos duma Cármen de Sevilha e sofreu na carne as reminiscências da Guerra Civil. E fala-se de política enquanto se bebe Porto. E vem o padre Amaro, umas duas vezes por semana por à pileca já lhe custar andar os dois quilómetros que separam o Casarão da aldeia. Pelo caminho ajuda o animal com uma ou outra frase em latim, apeando-se para ajuda quando chega ao íngreme atalho que contorna o cemitério.
Olho para a vidraça do meu quarto branco e vejo o roseiral despido de flores; apenas pequeninos troncos com espinhos selvagens.
Juliana, sempre a amiga e fiel companheira desta tua mãe, tantas vezes glosada em sussurro pela criadagem, está cada vez mais zelosa pelo Casarão. Nada lhe escapa. É senhora do seu império.
Nunca se esqueceu do seu primeiro e único homem e sei – muito embora se esquive a dizer-mo – que continua de vez em vez a encontra-se com Amaro, que de dia para dia mais afastado anda da sua antiga vida ascética, a horas tardias, já depois do Sol-posto, no celeiro. Conheço-a como aos meus dedos e aos meus anéis; quando me aparece no quarto com a refeição matutina, de olhos brilhantes e sorriso aberto, sei que na véspera lhe bateu à porta a sorte de ser mulher que conhece homem.
Quanto a mim, minha filha, ternura da minha vida, continuo como tu sabes. Agora, aos 35 anos, concluo que gosto de meu marido... mas continuamos separados pelo corredor de 13 quartos.

Namoramos às escondidas, como garotos de escola, mais para responder aos sentidos da natureza, do que pela necessidade de tocarmos no veludo da pele nua. Não estamos vencidos nem extenuados. Há que esperar pela promessa que a ambos já coube fazer como se se tratasse dum segundo matrimónio; Quando meu marido completar os seus cinquenta anos, nesse dia, nessa tarde, nessa noite, após a sua despedida na Praça de Salvaterra, com o redondel cheio de flores e mantilhas, com o publico de pé em reconhecido aplauso, ele erguer-me-á da bancada para uma romagem ao tálamo.
Ainda no mês passado antes das grandes chuvadas que descrevo acima, embora com céu carregado adivinhando borrasca, encontrámo-nos por acaso no olmo. Cada um seguia caminhos oposto. As nossas montadas pararam para um cordial cumprimento. Eu, sem querer, confesso, deixei cair o lenço de cachené que logo o vento o levou para mais longe. Teu pai desmontou para o apanhar e eu também larguei o Lindo Cavalo Negro e dei-lhe uma palmadita na garupa. O meu cavalo afastou-se ao encontro do alazão.
Teu pai, onde na barba negra se vê já algum cabelo branco, com a cerimónia que foi cultivando ao longo dos anos, entregou-me o lenço e beijou-me. Encostámo-nos ao olmeiro. Sentimo-nos verdadeiramente apaixonados naquele abraço que parecia não ter fim.
Foi então que principiou a chover terrivelmente. "Deixa chover, Maria. É o nosso baptismo de amor!" ouvi-o dizer-me. Disse-lhe em surdina; "Quero ser tua, meu marido"
Que me importava a chuva torrencial! A água era esperada à muito. Já nos campos se tinham feito promessas ao Senhor. A lezíria precisa da água fecunda das cheias.
Eu queria meu marido naquele solene momento que Deus abençoava com carícias de "água benta".
Estávamos encharcados e alheados do mundo. Mas quando despertámos da letargia reparámos que tinha-mos já água pelos joelhos. Era a cheia. Era a inundação há tanto esperada. Era um milagre realizado com amor.
Subi para o ramo mais alto da árvore mas Barrete Salvação de Jesus não o podia fazer pela ineficácia do seu braço direito. Aflito apontou-me outra árvore distante poucos metros mas com ramagem mais baixa onde facilmente podia subir. Já em cima do tronco, começou a gritar desalmadamente, numa angústia patética. "Socorro! Quero a minha mulher! Quero a minha mulher".
Só muito mais tarde, no barquito a remos e lampião, orientado pelos gritos constantes de meu marido, chegou o Joaquim.

- É o patrão?

- Sou, homem. Tanto tempo! Estamos enregelados. Primeiro a senhora. Vai buscar a senhora.

 


Minha Filha

A primeira coisa que fiz quando me levantei (o Sol mal espreitava pela palmeira ao lado da piscina) foi correr para o quarto de minha filha. Desejava encharca-la de beijos.
Mas dormia docemente, serenamente, amorosamente. O bonequito da sua predilecção dormitava com ela. Ambos de chucha. Ambos de fralda

Agora faltam uns quinze minutos para a meia-noite. Quero principiar a crónica desta semana neste dia 3 de Novembro; O Dia de Minha Querida Filha.
O Dia do Seu Primeiro Aniversário.
Precisamente neste dia, em 2006, nascia uma flor. Flor da minha vida.
E como a vida não é inesgotável, antes fonte que pode secar em qualquer momento, eu vivi este ano por inteiro; dia-a-dia recordava os meus tempos de criança e revi na minha Mafalda os meus primeiros passinhos, a minha primeira palavra, o mesmo espanto quando pela vez primeira reparei na Lua no céu da noite.
Tive uma avó que foi tudo para mim.
Mafalda tem esta mãe que não pode ser mais do que tem sido.
Na fotografia de hoje, vestida ricamente para receber os seus convidados, adivinha-se a mulher de amanhã. Mostra-se, não se oculta. Minha filha é um tesouro valiosíssimo, incalculável.

Há um mês que andávamos a preparar a festa do seu primeiro aniversário.
Mafalda teve 20 prendinhas dos nossos amigos. Mas, antes de mais, um obrigado muito carinhoso para a Truquista Maria Guilhermina, de Alferrarede - que em Agosto do ano passado enviou a primeira prenda (uma bonita chucha publicada na Truca 460) – e que este ano não se esqueceu do aniversário de minha filha. O vestidinho que mandou é um amor!
Brincámos muito nestes dias passados; Cláudia veio de Macau (aproveita a semana para ficar por cá a trabalhar connosco), Mário encheu os balões de confetes, lantejoulas e ar dos seus pulmões, Maria do Céu e Jill embrulharam vinte prendinhas, numeradas de 1 a 20. Dentro de cada balão estava também um pequenino papel com o número da prenda.
Era um festival de balões e de ofertas.
A dúvida que tinha-mos era no rebentar dos balões; assustariam Mafaldinha?

Quando minha filha acordou, com ar muito feliz, como se soubesse que era o seu dia, depois dos beijos de nós todos (Meus, Maria do Céu, Cláudia, Mário) foi tempo de a levar à sala para ver tudo o que a esperava. Foi Jill, que entretanto chegou, a fazer a experiencia de rebentar o primeiro balão com um alfinete. Muffy estranhou mas não chorou. E, depois, já com a sua mãozinha, ao meu colo e por mim ajudada, foi um festival de risos e gestos de alegria de cada vez que dum balão caiam as lantejoulas, os confetes e os papelinhos numerados. A sala ficou um mundo de fantasia animada. O pior foi depois; Quando se rebentou o último balão, e apercebendo-se de que não havia mais nenhum para fazer estrondo, desatou num grande choro que dificilmente conseguimos parar. 

Depois foi o trabalho de procurar todos os papelinhos espalhados pela sala, reuni-los na sequência crescente, e principiar a desembrulhar as prendas. Mafalda adorou os laços e os papéis coloridos.
Depois do nosso almoço foram então chegando os convidados: Bao-Dai, Che Lien, Chu Lien, Gia Long (lindíssima), o nosso vizinho das sombras com um lindo ramo de orquídeas, Nguyen Ahn, antigos colegas da 141.

Foi um dia lindo. Milha filha bem o mereceu. A reportagem fotográfica (que vai dar para várias crónicas) é demonstrativa da alegria da festa. Para verem a verdade do tempo, mando-vos a primeira foto de Mafalda, publicada da Truca no dia 5 de Novembro do ano passado.
Nota Histórica: Neste dia 3 de Novembro (por acaso são já quase duas horas do dia 4) mas no ano de 2006, nascia Mafalda Purificação Jesus de Meneses, pelas 10 horas e 47 minutos, com 3,175 quilos e 46 cms., nesta cidade a que chamo de Saigão.
Maria, Saigão, 3 de Novembro/07

Paixão de Maria do Céu (IV)

- As espingardas têm dois canos com estrias entalhadas em espiral, "mad in China" claro está; são de ar comprimido e têm capacidade para apenas duas "balas".

- Acho-te uma piada quando dizes "balas", meu querido Mário! – disse Maria do Céu.

- Este "Bun Thang", está muito bom Céu – interrompi depois da primeira garfada – onde compraste o frango? Muito bom!

- No shoping do Cholón. É do melhor. Tenho muita confiança no que vendem. O teu vizinho Rung Tram é onde gosta de gastar o farto dinheiro que tem. Ele e uma das suas criadas!... Deve ser a criada de fora...

- Recebi mais uma carta apaixonada – tirei a carta do bolso e li uma das passagens – ora oiçam; "Se um dia lhe tocar com os meus lábios que todos os dias lhos ofereço - tem que me pedir, ou melhor, temos que compartilhar um sentimento real, sentido e desejado e implorado, como quem sacia a sede no calor sufocante dum deserto de paixão". Estas cartas que estou a receber serão dele?

- Posso falar ou a espingarda já não interessa? – Disse Mário visivelmente bem-disposto. Ele também estava a apreciar o "Bun Thang" e fazia olhinhos marotos para os "Ban Cuori" que Céu já tinha posto sobre a mesa.

Bebia-mos cerveja de Singapura.

- Cada espingarda tem apenas um gatilho que acciona duas "balas", uma de cada vez. Enfim, e para abreviar, as "balas" são cápsulas moles com uns dois centímetros de comprimento e 5 mm de secção. Têm uma forma semelhante ao supositório que todos nós, pelo menos uma vez na vida, já introduzimos (todos rimos). São colocadas na câmara à frente dos participantes nos safaris.

- Céu que carne puseste nos ovos? Estão uma delícia! O que queres dizer com isso das "cápsulas moles", menino?! – Perguntei a Mário.

- A composição da "bala" não a conheço totalmente. Julgo que são também fabricadas na China por especialistas em efeitos especiais. Mas o projéctil, ao sair da arma, esborracha-se com facilidade no alvo. Li algures que as cápsulas têm concentrado de tomate, xarope de glucose, açúcar, mel, farinha de trigo e algumas especiarias.

- Que molhanga, santo Deus! Como é que os cães gostam dessa mistela? – Perguntou Maria do Céu.

- Bem, o molho tem açúcar, mel, enfim, não deve ser amargo, julgo eu! Quando "Nevsky", ou outro tigre que esteja de serviço, recebe a primeira "bala" da mira do atirador profissional que lha aponta mesmo ao meio da testa, o animal deixa-se cair, tombando como morto. É um dos seus momentos de maior prazer; Fica com um aspecto de autêntico defunto; Parece ter sido alvejado mortalmente porque o "Ketchup" enfeita-o com uma "ferida bastante ensanguentada". Os turistas fazem o resto; esvaziam as espingardas deixando o bicho encharcado de "sangue" (risos).

De vez em quando acontece que uma cápsula acerta nalgum batedor, nalgum ajudante de campo que, desajeitadamente, simula um ferimento grave começando a gritar pela mãe; "minha mãe, ai que me mataram; sou um desgraçado, ai que vocês me mataram! Quem foi o imbecil? Quem foi?" (muitos risos na mesa, especialmente de Maria do Céu. Mafaldinha está entretidíssima com o telecomando da TV).

- Mas já aconteceu pior! Foi um acidente que por pouco não teve consequências desastrosas; Um dos turistas, depois da sessão fotográfica, pega num canivete estilo "MacGyver" e ensaia cortar a orelha ao tigre, como troféu. O bicho não achou piada ao gesto carnívoro do herói e dá um salto de tal modo gigantesco que todos os turistas fugiram apavorados julgando tratar-se duma reincarnação da fera chamada por um Diabo admirador de caça grossa. A fuga desordenada da malta foi contagiosa; os cavalos, elefantes, cães e até, vejam bem, os próprios organizadores e caçadores, "por simpatia", desataram a correr, atropelaram-se todos, joelhos em ferida, braços escoriados, cabeças partidas...

- E o bicho?

- Depois acalmou-se – ele que esperava as deliciosas lambidelas dos cães - e começou a cheirar o abandonado canivete "MacGyver". De pronto apareceu o seu tratador, o tal homenzinho magro que nunca deixa os seus animaizinhos ao abandono (risos), fez-lhe uma festa como quem acaricia um gatito e levou-o para o recinto de estágio, junto dos outros, na cabana cheia de conforto. De certo que foi lavado daqueles vestígios de morte (risos) e alimentado a preceito.

- Vale a pena ser tigre na Índia! – disse Céu – Mas, para mim, o que recordarei toda a minha vida, foi a noite selvagem com este Mário, com este "Tigre da Malásia", e milhões de estrelas no espaço a aplaudirem um amor frenético ao ar livre.

Todos nos rimos.
Mais um copo de cerveja.
Mafaldinha adormeceu.


Amigos

A minha próxima crónica vai ser escrita no dia 3, pela noite dentro. Dia especial. Dia de Luz. Dia de recordações. Dia de beijos e abraços. Dia em que me perguntarei o porquê ter passado infortúnios, o porquê ter-me deixado arrastar por momentos de tristeza e desânimo.
Sou uma mulher duplamente feliz.
Vou para o campo colher flores que ainda existem neste fim de monção de verão. Flores dum campo devastado, bravias, perto do rio.
São as mais verdadeiras. Estas sim! Nascem ao Deus-dará!
Mas que digo eu? Tirar a vida a uma vida? Arrancar uma raiz que tanto tempo levou a germinar?
Oh! Maria, tu não estás bem da cabeça!
Preocupa-te antes com a origem dumas cartas anónimas que andas a receber, cartas de amor, cartas de paixão, escritas num inglês tacanho que Jill me tem ajudado a "traduzir":
Leiam este pequeno detalhe:

 "...Não importa saber agora, neste mesmo instante que em liberdade me deixo levar pelo sabor da escrita, até onde pode ir esta magnânima forma de viver os segundos do dia.
Ontem, ao lado do rio, quando a vi passar, namorei-a ao sabor das quase invisíveis ondas..."

 Será um poeta? Terei um apaixonado que não se mostra e antes se esconde na fantasia da sua imaginação.
Enfim! Homens!

Em anexo a continuação da "Paixão de Maria do Céu". Desculpem a pobreza da minha escrita. Que falta faz a estas linhas a pena de minha Querida Avó; as palavras bem escolhidas, a narrativa construtiva e clarividente.

Olhem! Tive agora mesmo uma ideia sublime; Peço ao Luís o favor de publicar uma foto por mim tirada (mal tirada, claro está!) e que representa, nem mais nem menos, todos (?) os cadernos do Diário antes de os ter mandado encadernar. Tentei simular o ambiente da escrivaninha onde minha avó escrevia: à direita a fotografia de meu avô (talvez com 45 anos) em rica moldura e, mais ao lado, um candelabro. Espalhados no tampo os diversos cadernos onde ia escrevendo. Num deles, aberto ao acaso (prosa dedicada ao pintor Victor Figueira), coloquei a caneta que lhe era hábito usar, não obstante meu avô lhe ter oferecido muitas canetas de tinta permanente. Mais à esquerda, encostado a uma gavetinha semiaberta, o celebre crucifixo de Lazaro Arteche Malaguilla, o Mariachi.
Se se derem ao cuidado de ampliarem o manuscrito podem ver que "A Minha Querida e Santa Avó", ia fazendo bonequinhos ao lado de palavras de que gostava. Exemplo: na terceira linha, encostado à palavra "amante" desenhou um coração, e a seguir a "soutien-gorge" um desenhinho que mais parece um par de óculos. Enfim; divertia-se com coisas sérias.

E no fim da "Paixão" mais duas fotos da Índia. Já é índia a mais. Vou acabar com isto.

Nota Histórica: Neste dia, em 1972 Nixon, presidente americano, ordena a suspensão dos bombardeamentos no norte. Assinalava com esta acção a aprovação dumas concessões norte-vietnamitas, nas conversações secretas de paz em Paris.
Ai, meus meninos. Eu sei muito!

Maria, Saigão, 25 de Outubro/07

Paixão de Maria do Céu (III)

Mário respondeu à chamada de Maria do Céu; voltou da salita.

- Mas que queres tu? Já te contei tudo! Que queres mais?

E fui eu que lhe pedi; queria ouvir as suas palavras a narrarem, minuciosamente, a façanha e misteriosa caçada do tigre.

- O tigre chama-se "Nesvky", é castrado e trabalhara numa companhia circense de Moscovo, desde os 6 anos de idade. Depois de alguns meses de intenso treino orientado pelo famoso domador Ivan Potemkin, passou para o estrelato do circo. Percorria o mundo exibindo a sua linda pelagem – podes mesmo escrever, lindíssima pelagem, não obstante tratar-se dum animal siberiano – os quase 340 quilos de peso, os saltos de cinco metros de grande leveza e elegância que atravessavam um círculo em chamas, o modo artístico com que se fingia feroz para o domador, a docilidade com que permitia que este o abraçasse para ambos receberem os aplausos do público rendido.

Maria do Céu bateu palmas. Mafaldinha pôs de lado um peluche que se parece com um alce.

- Podes acrescentar que os organizadores de Safaris estão proibidos de promoverem caçadas a tigres; a população destes indivíduos, especialmente os de Bengala, está a decrescer assustadoramente. Mas os Safaris são fonte de rendimento de muita gente e ocorreu-lhes simular caçadas, ou seja – vê lá Maria como escreves isto, hem! – o tigre é verdadeiro, a morte não.
Agora vê bem: O circo de Moscovo, de passagem por Calcutá, na véspera do espectáculo há muito esgotado, sofre um grande revés; Ivan, quando se preparava para observar de perto os animais pisa, sem querer, o rabo de "Nesvky" que dormitava. O felino ergue-se sobressaltado e, sem reparar no que fazia, dá uma sapatada no braço do domador de tal modo grave que este ia ficando maneta para o resto da sua vida.
No mesmo dia, no mesmo instante – olha-me bem o azar – o circo vê-se privado de duas estrelas: Do seu melhor tigre e do afamado domador.
Na rápida reunião do Comité Central, houve logo uma voz que se levantou: o tigre causador do estrago havia que ser rifado. Ademais o animal tinha com certeza os seus 15 anos, mostrava-se farto da profissão, dormia demais, e ainda por cima a ração diária era-lhe insuficiente; laxismo puro. Aquele ataque despropositado a Ivan mostrava ainda ser necessário, depois da devida ponderação, retirar ao bicho a confiança política...

Rimo-nos os três com vontade. Mafalda pega de novo no alce, por sinal dos melhores pitéus dos tigres.

- Foi a sorte grande que saiu a "Nevsky". Do previsto fuzilamento ou injecção letal, é trocado por duas crias recentemente desmamadas duma fêmea de cruzamento suspeito – Não escrevas isto; sei lá dos cruzamentos de tigres nas reservas, longe de caçadores...

Novas risadas, especialmente minhas. No Vietnam, nos tempos dos franceses e americanos, os cruzamentos resultaram em espécies belíssimas.
Mais um cigarro para Mário e mais um golo de whisky.

- E agora escreve a parte mais importante e não me interrompas. O tigre que Maria do Céu viu cair depois de ter tombado com tantos tiros, numa poça de sangue, foi ensinado a morrer por um mal pago tratador, homem magro, pele e osso, que ao fim de quinze dias disse modestamente que o bicho estava pronto para os safaris. Trabalhara tendo por base o estilo Chen.
Bem alimentado, escovado diariamente, passou por um ingénuo treino, sem chibatadas nem dias de fome. Bastava-lhe cair devagar, simulando morte nobre, quando sentisse entre os olhos um pequeno embate de "bala". Era o sítio vulnerável. Bem entre os olhos! Espécie de "calcanhar de Aquiles".
Todos os outros "tiros" que viessem pelos ares serviam apenas para divertimento. Ficaria então deitado, saboreando o gozo da sessão fotográfica, os berros de vitória dos caçadores, as lambidelas dos cães, até um apito lhe suar por perto. Com aquele som ficava a saber que o momento de relaxe chagava ao fim. Lavantava-se serenamente, lavava a cara com a pata com que tinha maltratado Ivan Potemkin, espreguiçava-se e seguia até ao recinto gradeado onde o esperava um bom banho, uma refeição principesca e a companhia dos elefantes, camelos, cavalos e cães; um exército de paz e amor. Que pena tinha de ser capado!

Desta vez desatei às gargalhadas. Céu, na cozinha, também se ria com gosto. Mafaldinha, que tinha adormecido, levantou-se e veio a correr para o meu colo, assustada.

- Mário; tens uma certa predilecção por tigres - Disse-lhe ainda a rir por "Nevsky" ser capado. O animal não podia ser completamente feliz. Aqui está um exemplo; a felicidade completa não existe. – Donde te vem essa mania dos tigres?

- Pelos anos setenta; era miúdo mas lembro-me perfeitamente do actor indiano Kabir Bedi na série televisiva "Sandokan, o tigre da Malásia" Entravam tigres fabulosos...

- Meninos! Horas de jantar! Mesa posta! Não deixem arrefecer! – Chamou Maria do Céu com voz risonha.

- Agora vais-me contar as balas, as espingardas, enfim o resto, não vais?! – Pediu-lhe esta vossa Maria.

(Continua na próxima edição. Estou mesmo a gozar convosco, não estou?)


Truquistas Queridos

Maria do Céu cumpriu a sua promessa. Antes de ontem apareceu-me vestida de negro e dispunha-se ao jejum o dia inteiro; "...por Guevara, faz hoje 40 anos que o mataram. Morreu pela liberdade".
Lembrei-me então da sua entrega absorvente por tudo o que se relaciona com o Ernesto, cuja captura, nos anos 60, valia 50 mil pesos bolivianos de recompensa. Foi apanhado por veteranos da guerra deste Vietnam e morto em 9 de Outubro em La Higuera. O carrasco passou para a posteridade com a M2, metralhadora norte-americana de trinta tiros e, durante alguns anos, gabou-se do feito.
As paredes da minha anterior casa e onde ela agora vive com o seu Mário, estavam forradas de posters do carismático guerrilheiro. Em letra cursiva, desenhada a negro sobre tarja branca, escrevera: "Yo soy Che Guevara".

O Cristianismo não pára de surpreender o Budismo e, quando os nossos amigos vizinhos (como é o caso do sr. Rung Tram, o das sombras chinesas) encontram razões para se meterem comigo, não as perdem:
A primeira relaciona-se com o astronómico valor de um novo templo, em Fátima, que pode albergar mais de nove mil pessoas, quando na XXIV Semana Nacional da Pastoral Social, realizada exactamente em Fátima se apontou "..o nível de rendimento já alcançado no nosso país permitiria eliminar a pobreza que afecta cerca de um quinto da população residente em Portugal”.
A segunda: um padre argentino (católico) foi condenado a uma pena de prisão perpétua, acusado de cumplicidade nos crimes cometidos pela ditadura militar.
Ainda Fátima: monsenhor Ângelo Amato foi perentório "... Estou farto (subentende-se) de dizer que não há mais nenhum segredo. Fiz investigações."
E por fim, mais Fátima (esta semana esteve na berlinda): Posta em causa a canonização do Pastorinhos. O Papa quer mais milagres porque não chegam os que têm acontecido. "A canonização virá quando Deus achar que é oportuno" disse monsenhor Luciano Guerra, reitor do Santuário.

Mas voltando a Céu e a Mário. O texto da "Paixão de Maria do Céu" que lhes li em voz alta fora aplaudido por ambos. Agora ela veio-me com rodeios, arrependida, "que era muito forte", se podia alterar uma coisa ou outra, especialmente aquela "em que ela via as estrelas..."
Disse-lhe que qualquer virgula a menos num período tirava à trama todo o significado. Não tinha projectos sérios com o seu namorado? Qual o mal em contar a verdade? Não contei eu tudo de mim desde que saí de Portugal? Não tenho aberto as páginas do "Diário" da minha avó? Então, onde estava o mal?
Mário continuava a gostar do que escrevi. Por outro lado era-lhe completamente indiferente uma vírgula a mais ou a menos.
Já informara os seus amigos da disposição de refazer a sua vida com uma mulher encantadora que tinha conhecido na Índia, que vivia agora em Saigão e que por aqui continuaria nos estudos megalíticos.
Na semana seguinte a este aviso solene, recebe de Portugal um pequeno embrulho vergonhosamente anónimo. Era um azulejo com uma graçola saloia ao qual Mário não ligou qualquer importância. A pessoa que mandou tal graçola ignora por completo a importâncias do seu estudo e dos grandes proventos futuros do seu livro científico.

Nota Histórica: Neste dia (no ano de 1954) o Viet Minh pede aos colonos franceses o favor de saírem do território. A guerrilha de nova anos chegava ao fim.

E quanto a fotos (para lá do maldoso azulejo) mais umas da Índia, sem tigres.
Maria, Saigão, 11 de Outubro/07.

 

Paixão de Maria do Céu (II)

"Fiquei sem saber o que dizer.
Desafiei-o a ser mais preciso. Mas dos "Jipes" veio a chamada. Era o guia barafustando por não poder esperar mais. E o simpático disse-lhe em voz alta, num qualquer dialecto regional, que me levaria ao hotel um pouco mais tarde. Os "jipes", com os turistas, caçadores e fotógrafo, partiram numa nuvem de poeira e em alta algazarra de vitória.

- Acredita então no dia que acabou de viver? O tigre, os tiros, a morte sangrenta? - Insistiu o simpático.

Pois se eu tinha visto, Maria! Tinha visto a fera erguer-se, pronta para o ataque, com a astúcia felina de como quem não liga à presa e, não fora aquele tiro certeiro na cabeça, entre os dois olhos, pela certa teria havido sarilhos.

- Pois é aí exactamente que reside a encenação! – disse-me Mário, o simpático.

- Encenação? – Juro-te Maria, avaliei estar a passar por momentos de perturbação mental.

- O primeiro tiro tem que ser exactamente entre os olhos – disse-me - E o atirador é raríssimo falhar. De qualquer modo tem sempre uma segunda chance.

Pedi-lhe o favor de me explicar com prontidão. Não estava ali para ser lograda. Além do mais, já que ele me levava de volta ao hotel, era tempo. A noite estava húmida.

- Minha amiga Maria do Céu...noite húmida? Diga antes que está uma magnífica noite. Repare nas estrelas! –Olhei para o céu negro. Tinha milhões de estrelas com brilho de diamantes.

Caramba! Mas aquele português sabia o meu nome? Ali, de um momento para o outro, a dois quilómetros de Calcutá. Era de mais, não te parece, Maria?"
(Mário, entretanto, põe de lado o jornal "Times of India", cuja assinatura ainda mantém desde que veio para Saigão, levanta-se, termina o Whisky, sorri e afasta-se para a outra salinha).

E agora concentra-te Maria da Purificação Jesus; vais escrever as catadupas de palavras da tua melhor amiga. Tem atenção à narrativa. De nada te esqueças. Tudo é importante. Alheia-te de ti.

"Mário, apaixonado por megalíticos, percorria o Mundo a estudar as "pedras de antiquíssimas civilizações".
Estava em Calcutá, depois de dois meses em Harappa donde tinha vindo fascinado. A pesquisa era o seu modo de vida. Idolatrava as culturas milenárias e preparava-se constantemente, incansavelmente, para o seu livro
"A Ciência Megalítica na Construção Civil Contemporânea"... mas vamos ao que interessa.
Há cerca de um mês o simpático hospedara-se no mesmo hotel onde eu fiquei e conhecia os programas de caça ao tigre. Dias antes, ao ler a lista dos turistas inscritos para a próxima aventura, reparou num nome que só podia ser de uma portuguesa; e que saudades ele tinha de falar o português...

- V. Exa. ajude-me a estender a toalha; temos "samosas" e "subji" fresquíssimas, ambas com um pouquinho de curry. Gosta de curry? Ah! Temos vinho! Alegre-se; vamos beber vinho! 

Samosas, subji, curry, vinho, toalha, jantar. O simpático não devia estar no seu perfeito juízo. Mas, quando já se aproximava com uma garrafa e dois copos de cartão, ouvi uns bramidos não muito longe, uns relinchos e muitos latidos.

- Minha senhora; vamos brindar aos artistas que está a ouvir. Ficam aquartelados a uns quinhentos metros mas, antes do brinde, permita-me que lhe diga um segredo. Posso?

Agarrou-se a mim e beijou-me. Um beijo nos lábios. Não te sei explicar o que me estava a acontecer mas todo aquele mistério era digno de um romance épico. Não pensei nas consequências da aventura. Adivinhava uma violação mas o simpático não se atirou a mim como uma fera; agarrou-me e eu deixei. Ainda lhe disse; "E não há o perigo dum tigre, dum ataque?"
E senti, vivi, que uma carícia daquele homem era um bálsamo de amorosa esperança. Sentia-o distintamente, e era ele, o corpo dele, as suas mãos, a sua boca, o seu aroma selvagem, os seus suspiros de êxtase, o seu peito, o seu ventre, as suas pernas, os seus braços a envolverem-me numa sofreguidão bravia; a toalha para o jantar foi o lençol de núpcias. Eu olhava para o céu e lá estavam a brilhar triliões de diamantes.
"E o tigre? Não há perigo, amor, não há perigo?"perguntei-lhe ainda mais uma vez, completamente rendida.
Estava louca por aquele momento sublime da minha vida; Na Índia, feras, caçadas, um amante desconhecido.
Maria, estou aqui contigo há perto de ano e meio. Pois sabes tu! Tu sabes tanto quanto eu sei! Andava alheada de amores. Pobre de mim! Nem disso se me lembrava. Queria lá saber de homens...tinha as mãos vazias, o coração desprendido, distraído, alheado. A tua filha é tudo!
Mas aquele mistério! Aquela noite! Os milhões de estrelas!
E um homem que me aparece assim, depois dum perigo de vida, com dois copos de vinho, a sorrir, a beijar-me como se eu fosse dele há anos.
Enfim, bebemos o vinho adocicado.
E comemos as "subji" e as "samosas".
E fizemos mais amor pela noite dentro, ao ar livre, agora já com a minha súplica e entrega total. Os bichos, ao longe, tinham sossegado. Na selva reinava o silêncio.
"Mário! vem tu contar o tigre. A história do tigre, o da caçada! Deixa a televisão! Ouviste?!"


Paixão de Maria do Céu (I)

Programa da viagem a Calcutá (actual Kolkata): Omito companhia de aviação, formalidades de embarque, horários, hospedagem e custos desembolsados.
Hoje limito-me a referir o essencial da viagem puramente turística, narrada por Maria do Céu:

1º dia/manhã– Pequeno almoço no hotel. Breve lição de "calcutaense". Segue-se visita ao Mercado das Flores.
1º dia/tarde – Visita aos templos desta cidade e de localidades em redor ("Igreja de S. Paulo", "Templo Dakhsineshwa", "Missão Ram Krishna", “Math Belur”, "Tantrik Satchekrabhead", “Ananta Basudeba”, “Swanbhada Kali", "Palácio de Mármore", "Museu da Índia" (fechado à 2ª feira mas não era 2ª feira), "Memorial da Vitoria" (também fechado à 2ª), "Catedral de S. Paulo". O turista já visivelmente cansado regressava ao hotel. Foi o meu caso. Regressei ao hotel.
2º dia – A principal atracção da viagem; caça ao tigre. Ir à Índia e não caçar o tigre é o mesmo que ir a Roma e não ver o Papa na janela ou saboreando as delicias do Vaticano.

E é aqui que começa a verdadeira História:

- Levantámo-nos muito cedo. Talvez pelas cinco. Ainda não era dia. Concentração dos turistas – uns oito inscritos – no lobby, pelas 6 da manhã. Tudo preparado. Refeição frugal, saco de merenda para o dia inteiro e garrafões de água. Muita atenção às palavras do guia; ser-nos-ia distribuída uma espingarda de calibre já experimentado em tigres indianos (na véspera a pontaria dos turistas tinha sido avaliada), normalmente grandes animais com alguns 300 quilos bem pesados. Avisava, com o calejamento dos anos dedicados às caçadas, ser necessária muita coragem pois constava-se haver um tigre a uns 5 quilómetros de Calcutá que já se aventurara, astutamente, ao assalto da cabana dum velho sipaio.
Além das espingardas ainda nos foi fornecido um punhal para eventual luta corpo a corpo. 
Estive mesmo para desistir; mas o guia tranquilizou-me. À nossa frente seguiriam experimentados caçadores profissionais e zeladores da preservação de tigres. Vê bem tu a incongruência. Matavam e zelavam.
Partida do grupo em dois velhos "Jipes" e, uns dois quilómetros depois, alcançamos uma clareira. Dois elefantes com palanquins, seis magros cavalos, uma matilha de cães, vários batedores. Escolhi um dos cavalos, talvez o mais velho. Entramos na floresta. As palmeiras tentavam a todo o custo tapar o forte Sol. Em passada lenta, acompanhando o andamento dos elefantes, seguimos.
Ao nosso lado caminhavam os caçadores e os cães.
Passou mais de uma hora, talvez duas. De repente os cavalos relincharam (menos o meu que se manteve impávido e sereno), os cães ladraram, os caçadores apontaram armas e os turistas tremiam como varas verdes.
E chegámos a uma pequena clareira. No meio dela, sentado, soberbo, pomposamente felino, estava o tigre. Lambia a pata direita num perfeito alheamento ao exército que o cercava. Os cães brincavam. Um dos elefantes esticava a tromba para apanhar os frutos dos tamarindeiros.
"Que ninguém dispare antes do ataque. Silêncio e quietos" avisou um dos caçadores zeladores.
Mas o felino não dava mostras de se incomodar com a excursão.
Exibia-se vaidosamente. Era lindo! Era soberbo!
Então, languidamente levanta-se, espreguiça-se; e logo um tiro parte, certeiro, directo à cabeça do animal que, de relance, ainda olhou para nós, boquiaberto de espanto, sentindo que chegava ao fim dos seus dias.
E tomba, redondo.
Passado o susto, os turistas vingaram-se da ansiedade. Uma saraivada de tiros partiu de todas as espingardas deixando a fera com a pele manchada de sangue e de furos.
Um dos caçadores, prudente, acalmou-nos. Bastava de tiroteio. O feroz animal já não fazia mal a uma mosca. Era tempo das fotografias.
Eu não quis mas, todos os outros, isoladamente e depois em conjunto ficaram registados no negativo dum diligente fotógrafo que não se cansava de dizer; "Todos sorridentes! Sorridennnntesssss!"
Os batedores cantavam cantigas de Bombaim.
Era quase noite quando regressámos. O tigre, numa poça de sangue, lambido pelos cães, lá ficara.
O meu cavalo, mesmo antes de eu lhe ter dado qualquer sinal, retrocedeu.
E toda a caravana regressou, alegre, valente, heróica, vaidosa. Tinha morto o tigre.
Quando, já noite, chegámos à clareira onde os "jepes" ficaram, reparei numa pequena tenda iluminada por candeeiro de petróleo, e um homem de calção e camisa branca de larga abertura, acena-nos.
Desci do cavalo e aproximei-me do indivíduo para saber o que fazia ali, àquela hora, no meio de tanto perigo. A cada momento podia saltar-lhe um tigre...
Maria, vê bem se isto não parece um sonho; para meu grande espanto, o simpático pergunta-me em português:
" - Acredita no dia que acabou de viver?"


Meus Amores

Falta um mês para o grande acontecimento.
Estou perdida de alegria, perdida de amor, perdida de êxtase.
Eu e Céu temos quase tudo preparado. Mário tem ajudado. Jill também.
A outra pessoa que aqui falta está alheia ao acontecimento tão histórico, tão só dela, tão só meu e, porque não, tão só nosso. Ou melhor, tão só de todos. Incluindo os Truquistas.
Elaborada a lista dos convidados (não me esqueci de Cláudia).
Elaboradas as várias especiarias a ter em conta para o dia do repasto com a ajuda de Che Lien e do nosso rico vizinho das sombras chinesas, Sr. Nguyen Rung Tram (que já voltou a convidar-nos para mais uma noitada).

Não consta da minha lista nenhum Truquista. E porque será?

Eu digo agora, para não perder mais tempo. Estou no Vietnam, em Saigão, em Ho Chi Minh e não tenho possibilidades económicas para oferecer tantas viagens.
Em relação ao "Diário", resolvi deixar a Sevilha do pintor Victor Figueira para mais tarde. Minha avó, aliás, talvez num serão menos feliz ou mais precipitado tem, na página que anexo, uma narrativa difusa; umas vezes escreve do pintor, umas do cavalo, outras ainda do padre Amaro, do meu bisavô, de Juliana...
Enfim, do ambiente do casarão sempre animado ao jantar.

Também vos digo que o titulo "Paixão de Maria do Céu" (réplica do romance de Malheiro Dias que eu li quando tinha doze anos e que tanto me impressionou) cá vai indo para ser publicado aos poucos. Mas a "coisa" está séria. Aguardem com ansiedade para compensarem o meu esforço.
Em fotografia mais Mafaldinha na brincadeira com a sua 2ª mãe (quase 11 meses, meu Deus!) e, por estar na moda cá por casa, mais fotos da Índia.
Nota Histórica: neste dia 27, mas no ano de 1831, nasceu uma mulher de nome Ana Plácido. Veio a ser acusada e presa por adultério, depois duma atribulada vida amorosa com Camilo Castelo Branco. Atenção aos Truquistas do sexo oposto; ele, o Camilo, também foi dentro.

Um beijo muito grande, cheio de ternura, desta
Maria, Saigão, 27 de Setembro/07


(in Diário da minha Avó)

Não. O nosso S. Gabriel não vai pousar para o pintor. Pelo menos comigo a seu lado. Aquele animal sagrado que vive connosco desde há 17 anos, não se presta a objecto decorativo.
Que sabem eles da minha relação com o "Lindo Cavalo Negro"?
Olhamo-nos todas as manhãs com a cumplicidade duma entrega e dum desejo. Ele sabe que vai comigo. E deixo-o escolher o passeio pela lezíria, a passo, a trote, a galope, saltar os troncos de árvores caídas, comer os rebentos de erva, beber a água pura do rio.
Deleito-me e admiro-o, um pouco afastado de mim, sem sela, apenas com xarel na garupa; orelhas espetadas atentas ao mais leve rumor e, de vez em vez observa-me num olhar atento; sentindo-me livre de qualquer predador, antes entregando-me aos beijos do sol da manhã, retoma a rotina da pastagem.
Quando há dias, exactamente na 2ª feira passada, jantou connosco o Sr. Pedro Rodrigues, distinto mestre de equitação, tive oportunidade de lhe dizer que o meu cavalo negro não era para ser usado em funerais e muito menos em espectáculos de circo; que me importava que desconhecesse o "Piaffer", o "Capriola", o "Corveta"? Quero-o selvagem e livre. Quero-o na pureza com que meu marido mo ofertou.

- Não me diga que o São Gabriel não conhece égua? – inquiriu o mestre.
- Não sei Sr. Rodrigues – e olhei para meu marido num pedido de socorro.
- Sancte Gábriel ora pró nobis – atalhou Amaro a despropósito, entre dentes, ainda rancoroso com Anacleto; qualquer dia (jurava para si) matava o gato.

Teu avô preparava-se para lhe perguntar ao que vinha o despropositado atalho quando o pintor, que acabara de embrulhar o quadro, tomou a palavra.
Pois os anos em Barcelona não tinham sido fáceis.
Um dia, no interior da "Iglesia de Santa Maria del Mar" atreveu-se a encostar num dos pilares do transepto, um óleo ainda fresco. Era Afrodite, a Deusa do amor em extravagância, com a zona púbica bem realçada de pinceladas negras: e um casal de afoitos ingleses, de passagem, até aí esmagados pelo grandioso gótico catalão, ao verem o quadro, empalideceu; "Oh! shocking, very shocking!".

- Sancta Virgo vírginum – de novo Amaro, rezingão. E despede-se com um seco "uma boa noite na Graça de Deus".
- Boa noite Amaro! Ponha mercurocromo na arranhadela! – disse teu avô.

Lá fora, pouco depois, o rafeiro e o labrador, rosnaram. Não é apenas o Anacleto pois também eles, ao que se vê, não podem com o padre.
É uma pena minha filha! Mas Amaro está a ficar numa antagónica imagem do seu passado. Julgo já to ter dito; constam-se coisas.
Juliana, nada me confidencia. Duas vezes por semana ela metodiza-se na feitura do célebre bolo de chocolate e, no dia seguinte ao da milagrosa receita, encontra-se com o celebrante no celeiro.
Mas Victor Figueira, sentindo-se mais aliviado com a saída do padre e alentado com o interesse de teu avô que de novo dava lume ao fornilho, retoma a narrativa.
Saiu então da Iglesia, deixando Afrodite rodeada de santos cristãos e, na saída, encontra Cármen, a mulher fatal, a que iria engrandecer a sua vida para sempre.

- Es usted un hombre? Un caballero? Un gitano?
- Non, señorita. - Era apenas Victor. Victor Figuieira, um pintor com talento mas sem sorte.

E Cármen deu-lhe o cravo que tinha no cabelo; "pois então se queres ter sorte não é aqui que a agarras. A igreja está com o fascismo. Mas a Frente Popular vai ganhar isto. ".
Mas como ganhar isto? Franco com a ajuda da Alemanha, da Itália e até de Portugal, está às portas de Barcelona! Madrid já não pode resistir por mais tempo! Então, Como ganhar isto?
Teu avô interrompeu-o - Querias que Salazar apoiasse os comunistas? É um homem de honra! É um homem de estado! – disse-lho com a sua voz de orgulhoso português – pois porque não te alistaste nos "Viriatos"?
Nos Viriatos? Como nos Viriatos?! Ele já tinha sofrido bastante com a sangrenta guerra e devia agora de agarrar aquela Cármen primaveril, ardente, brutal, impetuosa, "roja", que necessitava dele para pintar cartazes antifranquistas.

- Temos que lutar pela defesa da República – disse-lhe a soberba espanhola "roja".

Barcelona estava destroçada, perdida. Ouvia-se ao longe a artilharia. A hora era de fugir para lugar mais seguro.

- Vem daí pintor! Canto-te "seguidillas" e  "habaneras". Trazes os pincéis?

Juliana entrou na sala; o Joaquim das cavalariças perguntava à Senhora D. Maria de Jesus se amanhã, bem cedo, podia desenrolar o S. Gabriel.
Respondi que não. A energia do nosso cavalo é só para nós, minha filha.

- Ele que o passeie, apenas, e não o deixe comer verde.

Como já estava farta de ouvir o pintor, dei um beijo a teu avô e despedi-me de todos. Meu marido disse-me:

 - Eu também já me vou andando.

Victor Figueira acabou por sair pouco depois.


As brincadeiras de Maria do Céu.

A "marota" a brincar com a minha antiga e honesta profissão.
Confidenciou-me ter sido o nosso vizinho do lado de lá da piscina (o das sombras chinesas) que lhe tirou a fotografia.
Quis-me fazer uma surpresa e recriou uma saudade risonha dos meus tempos de TRUCA. Velhos tempos, com aquele cartaz das estatísticas da semana, o sorriso para a máquina fotográfica do Luís e a expressão inglesada de John Thomas Belch.
Não me disse (e também não lhe perguntei) como soube do número de visitas dos queridos Truquistas.
O Luís Gaspar que confesse se houve troca de e-mails entre um e outro.
O problema não me diz respeito. Não sou ciumenta.

Continuo a preparar um grande romance com título mais ou menos já definido; "Viagem à Índia".

Não se trata do Gama, do Camões, do Mendes Pinto, ou de outros que por lá andaram. Trata-se exactamente de Maria do Céu, na viagem de recreio à Índia para conhecer parte do País e participar numa caçada ao tigre. Não constava do programa proporcionar-se o conhecimento dum estudante apaixonado por megálitos, mas Céu acabou por ficar apaixonada pelo País, pelo tigre e pelo estudante.
Trazer a Índia, ou mesmo Calcutá, para Saigão, não era de todo possível.
Do tigre bem listrado, cravejado de balas, nem uns centímetros de pele para uma gola.
Mas o estudante megalítico era um homem e não a uma construção pré-histórica.
Ele já está por aqui. E sabem uma coisa? Não se espantem! É português.
Chama-se Mário.
Este romance, com "ninho primaveril" no meu antigo apartamento, tem muito para contar.
Céu com o seu negócio "Fashion Ocidental".
Mário preparando-se para realizar um dos sonhos da sua vida; escrever "A Ciência Megalítica na Construção Civil Contemporânea".
Ambos, conscientes de que a vida não se trata apenas de dois dias, conciliam os destinos num só; querem casar.
Mas não vou adiantar absolutamente mais nada. O que estou a escrever ser-vos-á relatado aos poucos. Tentarei, em termos de escrita, chegar a uma humilde sombra das narrativas do "Diário da Minha Querida e Santa Avó".

E a propósito: Para a semana mais uma página do pintor nos seus tempos de Sevilha.
É deliciosa.

Muitos beijos para todos.
Maia, Saigão, 19 de Setembro/07

 


Meus queridos;

Foi com muita mágoa que recebemos a notícia da morte de Nguyen, o nosso antigo colega da 145 Worldwide. É triste perder-se uma vida jovem, assim, de um dia para o outro.
Desconhecemos ainda as causas da sua morte mas Jill Murdok, em nome das duas, prestou-lhe uma homenagem simples; mandou-lhe uma flor.
Recordo o jantar para o qual ele me convidou, no restaurante "Quan Com Ngon", onde se ouvia Charles Aznavour e Amália Rodrigues.
Recordo a noite fria e a chuva miudinha que caía.
Recordo que em cima da mesa onde jantámos, por ele previamente marcada, repousava um bonito ramo de flores com uma frase apaixonada: "Espero que me entregue o seu coração". 

Nguyen era assim, perdido por amores de ocasião, perdido por mulheres de quem gostava. Uma recém-chegada ocidental, na sua cama de homem viril, certamente ter-lhe-ia dado o estatuto de conquistador universal.
Naquele dia 9 de Março de 2006, sentia-me bonita, apetitosa e fresca.
E – juro-vos – estava capaz de deixar-me arrastar pela conversa do "predador" (como então eu lhe chamava), encorajá-lo a convidar-me para aquela noite, seguir os seus passos, deixar que me despisse e entregar-me. Tinha saudades de um beijo, de uma ternura, do calor de uma cama apaixonada.
E porque não?
Nada tinha a perder. Era uma mulher livre e senhora de mim.
Figueiroa, o amante que deixei em Portugal e que por ele fugi, pertencia ao passado ou pelo menos eu assim pensava.
A minha vida profissional estava num bom momento.
E, de facto, a noite de amor teria acontecido se Minh Lap, então um dos grandes clientes da agência, também jantando na mesa contigua parcialmente encoberta com uma cortina, não se desse ao desplante de contar aos que o acompanhavam que a nova secretária da sua agencia, "uma tal portuguesa de nome Maria, era boa na cama".
Fiquei completamente fora de mim pelo descaramento e pela mentira.
Fiz a cena que fiz. E a noite com Nguyen terminou ali. Deixámos na mesa o peixe com molho picante, a carne ensopada em soja e cervejas de Singapura.

Foi melhor assim.

Um mês depois eu sou amparada por José Manuel Figueiroa de Meneses quando quase caía na atmosfera enevoada da "Apocalypse Now". Inebriada de Whisky, com "Good Night Vietnam" bem legível na apertada t-shirt que vestia, deixei-me levar por ele para uma cama onde nos mostrámos nus e nos possuímos num frenético adeus eterno.
Hoje sou mãe. Mãe da criança mais bela do Mundo.
E digo-vos de todo o coração que muito dificilmente na minha vida poderei alguma vez entregar o meu corpo para recordar os prazeres dos sentimentos amorosos.

Pobre Nguyen! Alguma vez foi feliz?

Eu fui. Fui e sou. Sou feliz e sou rica. Rica dum tesouro enormíssimo que não tem preço; MINHA FILHA.
E aqui vai Ela, (veja-a nas Fofocas onde, habitualmente, o Luís coloca as suas fofografias) a caminho de um ano de vida.
Nguyen nunca a chegou a conhecer e, por ironia do destino – que sempre zomba das contrariedades da vida de cada um – o próprio pai de Muffy, também não.
Mas tu, Figueiroa, deves saber que ambos fizemos uma filha lindíssima. Ela é a nossa vida e a prova máxima da nossa entrega desnuda.
Maria, Saigão, 14 de Setembro/07

Nota: Mais duas fotografias tiradas (?) por Maria do Céu, na Índia. Estas fotos têm uma história muito bonita. Aguardem com paciência. Vou fazer "render o peixe".


(in Diário da minha Avó)

 Um dia, num "Bodegón", enquanto mastigava "alcachofas com asadillo" e "tortilha de patatas", rodeado de quadros de bons artistas, fumarada e copos de cerveja, uma "muchacha" morena de olhos negros com um "clavel rojo en el pelo" perguntou-lhe, com um sorriso luminoso, quanto pedia ele pela "naturaleza muerta" que exibia na "silla" vaga, a seu lado.
O nosso amigo Victor Figueira ia balbuciar o valor dumas quantas pesetas "un valor muy simbólico por que es mona" quando num rádio que transmitia canções nacionalistas, ecoou um noticia que silenciou os presentes; embora com alguns momentos de ruído percebeu-se que um "pueblo" do norte tinha sido reduzido a cinzas por aviões Nazis.

- Guernica! – afirmou teu avô, interrompendo o pintor.

- Regína pacis, ora pró nobis – disse Amaro observando com cuidado a profunda arranhadela na sua mão direita da autoria do Anacleto que continuava a olhá-lo de soslaio. Jurara solenemente, naquela noite, nunca mais ensaiar uma festa ao malvado do gato.

Juliana reentrara na sala a perguntar ao senhor Victor Figueira se lhe apetecia uma sopinha de feijão carrapato ou uma fatiazinha de bolo de chocolate.
Amaro empertigou-se;

- Uma fatia de bolinho não dizia que não. Exáudi nos Dómine – disse com um ligeiro sorriso.

- Não Juliana! Depois dos cafés não são horas de sopa ou de doces – observou teu avô, agastado.

E virando-se para o pintor – Deixa a história da tua guerra por agora. Para lá da pintura com que nos brindas, o que tens feito, afinal?
Pois em definitivo, e depois da larga experiência com Cármen, em Sevilla, fazia pintura. 
Considerava-se um "génio instantâneo", como diziam os apaixonados pela fotografia, pois fixava na tela, com pinceladas de verdadeiro mestre, o momento fulcral da sorte.

Estava, há dois anos metido numa alhada, pois uma das pilecas da sua pequena caleche, de freio nos dentes, entrara por uma cerca e apanhara um rebanho de ovelhas na calma da pastagem, atropelando algumas.
Sem recursos folgados para pagar o prejuízo ao pastor ofendido, alvitrou pagar as ovelhas mortas, em troca de quadros tauromáquicos mas o pastor não se governava com toiros mas sim com ovelhas e cabras e, para arrumar a questão, propôs retratos seus e de toda a sua família. Para concluir o pagamento da dívida ainda lhe faltava pintar três sobrinhos.
Reconhecendo que tinha saber e apurada técnica, conhecimento do equilíbrio das cores e da estética, porque não se aventurara a passos mais largos?
Pois tentara a sua sorte; mandara para o gabinete da Presidência do Conselho de Ministros, à atenção do Doutor Oliveira Salazar, como oferta e para exemplo da sua arte, uma das suas melhores obras; um campinho na montada, sorrindo para o pintor e, ao fundo, uma manada pastando no verdejante prado ribatejano e pedia, apelava, que lhe dessem permissão para pintar sua Excelência
Não o tinham percebido. Recebera o quadro de volta com um lacónico bilhete "Sua Exa. agradece mas não é grande apreciador de ambientes taurinos".
Com raiva escrevera em letras negras sobre um papel cartonado; "Salazar rejeitou esta obra. Não lhe siga o exemplo". E no primeiro dia dos festejos consagrados ao patrono duma aldeia, logo o quadro foi vendido na abertura do arraial.
E para aqueloutro que ali trazia, já com destinatário certo, pedia ao Senhor Purificação e a todos os presentes - pois que todos eram apreciadores de pintura e conhecedores das sublimes pinceladas que nascem no momento em que o pincel deixa a paleta para se dirigir à tela – que admirassem imparcialmente o nobre momento, a alegria, o movimento da fé.

- É Cristo na cruz? – perguntou Amaro.

Não era Cristo.
A tela representava um cavaleiro, no preciso momento em que cravava um ferro na besta.
E já agora (pois parecia-lhe que a sua última obra estava a ser devidamente apreciada – outra coisa não era para menos) pedia permissão ao Senhor Barrete que o deixasse pintar a sua jovem e linda esposa, D. Maria de Jesus Purificação Jesus, montada ou desmontada, logo se veria na altura própria, mas seguramente em traje de amazona, no lindo cavalo negro S. Gabriel.
Que te parece minha querida filha? Autorizo?


Vamos rir

Os cadernos que constituem o "Diário" têm, em folhas soltas e desintegradas da narrativa dos pensamentos da Minha Querida e Santa Avó, informação variada, pétalas secas de flores, fotografias (como uma de Maria Costa Vaz que a dedica à "tia Conceição") de outras pessoas de quem não faço a mais pequena ideia, papelinhos com números de telefones (no referente a minha mãe está apontado em letra menos cuidada: "Maria dos Remédios – se for a governanta a atender mando chamar pela Mimi"), etc.
Noutros, ainda, (de explicação difícil por se saber da adoração dos meus avós pela politica do "Estado Novo"), pode ler-se, com alguma clareza; "Muera el Imperialismo", "Obreros Protestan", "El Pueblo Unido / Jamás Será Vencido".

Mas, reflectindo, estas pequenas grandes coisas, por mim zelosamente guardadas à margem do "Diário", são complementos da história, como revisões subsequentes às pesquisas do antanho (estou hoje a ser rica em palavras caras) que se vão marchetando, por mão de zeloso artesão, ao puzzle de toda a trama. 
A photographia da senhora Maria Vaz (que incluo frente e verso) refere-se a uma tia de minha Avó. Porém Maria Vaz dedica-a à tia Conceição, personagem de quem não faço ideia alguma.
Mas podemos definir uma data; repare-se que a photo foi tirada em França, a julgar por o que se nos apresenta no verso; Carte Postale – Jacquin (lembrei-me agora mesmo dos "jaquinzinhos com açorda" – que saudades!) Frères, Photographes à Valence (Drôme) & Privas (Ardèche).

Ora Maria Vaz esteve em França uns quatro ou cinco anos, e regressa a Portugal dois anos antes da Primeira Grande Guerra chegar ao fim.
Minha Avó teria então os seus 13 anos, ou seja, três anos antes de ter conhecido Lazaro Arteche Malaguilla, o "Mariachi", o verdadeiro pai de minha mãe, que se dizia originário remoto do povo Asteca e filho ilegítimo do revolucionário Pancho Villa.
Mas ainda mais intrigantes - para uma interrogação que talvez nunca venha a ter resposta - são as "palavras de ordem" acima referidas, escritas por alguém (é uma caligrafia muito diferente da de minha avó).

Aquelas três tirinhas de papel, maravilhosamente conservadas, teriam sido dádivas de Malaguilla, juntamente com a cruz em madre pérola, a serenata, a noite de luar e a "brincadeira" no jardim com minha Avó, então nos 16 anos, em camisinha de dormir cheia de rendas?

Embora já um pouco longe da Revolução Mexicana (minha Avó esteve em Guadalajara em 1923), continuavam na altura a existir conflitos armados entre as duas principais forças políticas; uma defendia a separação entre Igreja e Estado, outra exigia a supremacia da Igreja Católica.

Posto isto, é de crer que Malaguilla, aproveitando-se da fama do seu grupo de Mariachi, fosse um elemento duma das facções; não me posso esquecer que no verso da cruz que ele ofereceu a minha Avó (na tal noite da serenata com camisa de renda) está escrito em letra gótica; «o caminho para Deus é através da devoção e do pecado».
Mas reservo-vos uma relíquia. Misturada em tantas recordaçõezinhas avulsas há uma carta maravilhosa que ainda hoje me é difícil entender. Não é anónima; assina-a um tal senhor António Mindérico e é dirigida a meu bisavô. Aqui começa desde logo o meu perplexo. Sabendo-o extraordinariamente organizado nos seus papeis como foi possível esta carta ir parar às mãos de minha Avó, sua filha?
A carta também pode ser de uma mulher com pseudónimo; é uma carta delatora, sem dúvida!
E pede uma recompensa.
Digo-vos, meus queridos Truquistas, que ainda hoje tenho alguma dificuldade em a perceber na sua total dimensão.
Tenho uma certeza; a assinatura de "Mindérico" deu-me uma pista. É de alguém de Minde.
Alguém que ainda pode estar por este Mundo. A carta é datada de 1933, ano em que foi criada a PVDE.

Com a companhia de minha filha (já repararam que também está a crescer convosco?), divirtam-se e aceitem (quem não aceita?) beijinhos meus.
Maria, Saigão, 31 de Agosto/07

E aqui vai a carta. Mistério?

"Senhor Purificação de Jesus
Casarão da Família Jesus
S. Miguel de Rio Torto

Meu Charale.

Minhas desculpas por interromper o seu dia apiamado ao serviço das grandes quintas, do seu afamado maltesão, dos seus cabaneiros e morenos, e dos chincheiros. Este Ribatejo com a ajuda do Charale e de Deus nosso Senhor e de pai adão é uma grandiosa província, tão bem governada tem sido desde o dia em que todos os portugueses escolheram para chefe do governo o Senhor Doutor Salazar.

Vossa Excelência tem os cortiços largos pois existem covanos nas suas terras que são contratados para lobar, marrecar, apanhar as maneças, e o joca, e na apanha das lampanas ou do gunilho e das pataeiras, que passam a vida em reuniões, às escondidas do meu Charale, urdindo sei eu bem o quê. Não merecem o caroço do grisol que oferece pela manhã. É pessoal de Classe-do-Mota mas têm medo do modeio.
Pois sei é que têm piação com piadeira comprida contra a maneira como são tratados, quando toda a gente sabe que Vossa Excelência é um exemplo de latifundiário, tratando os seus criados como se fossem da família, e os homas com boa comida à mesa, moncas bem regadas com grisol, folha da costa com linhas tintas, pelota e de vista-baixa, leite para os terraiozinhos, e marco da portela, maltesão em marinha para grunhir à descrição. Graças ao Charale não sabem o que é âmbria. Apenas um; não há folha da costa que seja capaz de lhe embutir aquela atafona.
Pois eles dizem que só comem chocalheiros, cascalheiras e negrinhas
E de vez em quando uma balhadeira, fústria e dona amélia para a rapariga de boas carrasquinhas, e uma berlica, marialva, balões, cardosas ou mesmo cardosas de baixo, cinco-pontas, para o rapaz. Até já lhe deu um bandarra.
Mas quando o covano jorda maltesão na chaveca só diz mal.
Depois de marrecar, ou de brinçalar, reúnem-se no grisoleiro, afastam as bagaceiras para maior espaço, em fuscas de luminárias, de madrinha do céu ou de beijos de leôa, ou então escondem-se nos monteiros com ou sem invisível, ou ainda no canto da mocaínha, como fazem os covardes.
Um dia cheguei perto e logo ouvi: "Peniche que o covano penetra a piação dos charales".
Querem ter direitos que o Charale desconhece e o Chefe do Governo também. Ora isto é gadelhudo. O Charale Purificação devia dar à piadeira.
Eu sei quem são esses ganilhos.
Revelarei os nomes com a ajuda do meu ligadinho, do mifança, do mestre-grosso, do lacatrofo, do catorze e do sana.
E este serviço é prestado ao meu Charale e à nossa Querida Nação.
Não quero engenhar mas se o Charale tiver algumas chapas pois quero arranjar a beiúca chanfalha, agradeço e peço a Deus Nosso Senhor, com a ajuda do Francisco Vaz, em pedra d'era que lhe dê cópios anos de vida com saúde.

No próximo planeta vou por regatinho na chaveca do meu terraizinho mas para a semana volto ao Charale.

Com o Charale o Ribatejo faz deste País uma Terra Santa.
Viva o Charale.
Viva Salazar.
Viva Portugal.

António Mindérico
Ninhou 1933"


Mais uma ida a Macau

Com a mania do chá quase que perdíamos o avião.
Era imperiosa esta ida aos escritórios do Cliente. Aliás foi assim que se convencionou no início das nossas relações de trabalho; mês sim, mês não. Sabemos que Cláudia prefere vir a Saigão (adora o seu quarto na nossa casa) mas nós também gostamos de Macau e faz bem mudar de ares.
Maria do Céu prontifica-se sempre a ficar com a minha Mafalda. É uma querida!

A administração do nosso Cliente (continuo a reservar-me quanto ao nome deste colosso – apenas já vos disse que também está representado em Portugal), deposita em Cláudia toda a confiança; até hoje, as nossas reuniões de trabalho são entre nós e a sua equipa, constituída por três elementos; dois macaenses e uma moça de Taiyuan.

Pois (pensamos, eu e Jill) estamos a fazer um bom trabalho. A argumentação sobre a "filosofia de um programa de promoção" – como acção multidimensional – foi suficientemente esclarecedora e apreciada. Inclusive, na análise dos custos (que tem por objectivo final optimizar a eficácia das acções) provámos que as centrais que seleccionámos para este trabalho (criativa, de produção e distribuição) ficam longe dos orçamentos que o Cliente estava habituado a desembolsar.
"Mercado em Movimento", é co-responsável mas cabe ao nosso Cliente a responsabilidade final de optar pelo que mais lhe convém.

A segunda parte da nossa apresentação (depois do inevitável tea-break) tem uma primeira aproximação à criatividade da campanha onde, ardilosamente, se "vende" brinquedos sem ser necessária a presença da criança.
Cláudia ainda se atreveu a perguntar "como se pode estimular o nosso grupo alvo, se ele não nos aparece como o principal elemento anunciador?"
Fácil: a família mais chegada (presumivelmente os pais) pergunta à criança (muito passiva em toda a argumentação) se aprecia o produto para as suas brincadeiras: a decisão é dela.
A criatividade, ao contrário do que possa parecer, não é a chave de ouro do sucesso mas sim um bom posicionamento (que significa algo diferente na imaginação do consumidor), permite aos produtos sobreviverem num mercado competitivo.
Claro está, e neste particular Jill foi peremptória, o mercado tem que estar receptivo, a distribuição tem que ser conveniente, e não há posicionamento possível se o produto não tiver atributos de valor para os consumidores.
Se o produto quer ser "leader" em Saigão e depois em Hanói, em Hué e, por fim, em todo o Vietnam, a estratégia de Marketing (cuja responsabilidade cabe ao Cliente) tem que ser orientada de tal modo que leve em linha de conta um mercado carenciado de inovações.
Cláudia, aí, foi ríspida; "disso sabemos nós".
"Mercado em Movimento" concordou; Marketing é a uma jogada estrategicamente estudada. Criatividade é o processo pelo qual se enriquece a boa jogada. Por isso, a nosso ver, o trabalho até aqui desenvolvido, respondia ao "brief" que nos foi entregue em devido tempo.

 E, por hoje, não posso adiantar mais nada...

 Voltámos no dia seguinte, depois duma rápida passagem pela fachada da igreja de S. Paulo que já vi algumas vezes mas, aqui entre nós, tem para os portugueses uma montanha de "recordações históricas" (aqui um pleonasmo, acho eu). Aquela imponente fachada de granito é um orgulho português. Como sabem está incluída na lista do Património Mundial da Humanidade.
E, no aeroporto, como já vem sendo hábito, esperava-me minha filha com uma flor e com a Céu.
Aqueles grandes olhos, perscrutaram-me desde longe e pareceu-me interrogarem?
"Porquê tanto tempo de espera, minha mãe?".
De, facto o avião, aterrou com duas horas de atraso.
Para publicação uma foto de minha filha a seleccionar o seu programa favorito, e duas de Maria do Céu na Índia. Estou quase a convence-la a deixar-me contar a sua estada naquele País. É uma história bonita e de amor. Veremos.
Maria, Saigão, 25 de Agosto/07


Então?
Como vão essas férias?

Em mais esta página do "Diário" (já se sabe que se trata do da "Minha Querida e Santa Avó") o Truquista mais atento não deixará de notar as histórias desordenadas no tempo e no espaço que vos tenho enviado.
Na página de hoje, por exemplo (que continua a falar do pintor Victor Figueira artista que eu apenas conheci pela obra da qual, aliás, tenho uma série de fotografias), o "lindo cavalo negro" está doente, quando há tempos, não sei precisamente quando, vos remeti uma página onde o animal havia morrido.
Também já sabem que meu avô faleceu em plena praça de Salvaterra, mas nunca vos enviei a descrição pormenorizada dessa tragédia. É ela, talvez, uma das páginas mais lindas; aquele casal, naquele dia, iria viver a sua primeira noite de amor. Ele tinha cinquenta anos, minha avó quarenta.
São várias as razões para eu ter alterado a sequência temporal:

A primeira; não pretendo fazer deste riquíssimo legado, um "romance" estruturado. Já perceberam que minha avó é espontânea, muda de assunto, interrompe-se e retoma-se. Mas é óbvio que os cadernos foram por mim "partidos e dados" como se se tratassem dum baralho de cartas.
A segunda: há páginas que me pertencem, são segredos de família e, quanto tais, não são passíveis de publicação.
A terceira: qualquer pessoa (não um Truquista, claro está, porque são todos idóneos), podia agarrar em todo o "Diário", retocar aqui e ali, e eis um livro nos escaparates das livrarias, com um título de arromba como, por exemplo, "Eu, Virgem, e Minha Filha Maria".

Com esta resumida explicação julgo ter respondido a alguns amigos que se interrogam, através do Luís, da falta de coerência do calendário do "Diário".

Não volto a escrever sobre este assunto. Definitivamente.
Eis agora a Mafalda, a Mafaldinha, a Muffy, a minha FILHA.
Bonita (sai à mãe, claro!), fresca, já "cabeça de cartaz" na Truca de todos nós.

 Nota Histórica: No telefonema de ontem com Cláudia, fiquei a saber que os nossos vizinhos, há mais ou menos 90 anos, sofreram com as cheias uma catástrofe brutal; 50 mil mortos e dois milhões de desalojados. A Europa pode-se queixar das actuais enxurradas, mas o aquecimento global parece já vir de longe...
Cláudia disse ainda, ao desligar: "O Capitalismo Universal está a entrar em falência".
Maria, Saigão, 9 de Agosto/07

 (in Diário da minha Avó)

 No ambiente do pequeno quarto da pensão de Montmartre, restavam-lhe poucos "souvenirs" da jovial amante; o gaiato sorriso em inúmeras fotografias de propaganda, um par de meias de rede negra das bailarinas de "Cancan", um "soutien-gorge" cor sangue, e o "parfume" fantástico a rosas e sândalo, de fechada alquimia, que se infiltrava nas paredes do quarto, nas roupas, e nos lençóis raramente lavados.
Mas naquele bloco paginado de estudos em grafite, lá foram, com Antoinette, fortes pedaços da sua arte, pedaços dele próprio, na moldura dum corpo quase sempre desnudo, primeiro num esboço simples como num beijo roubado, depois já a traço carregado, determinado, definitivo, cheio de vida, retratando-a rebelde e virtuosa.
Para ele, sem Antoinette, Montmartre, "la Place du Tertre", o esplendoroso gótico de "Notre-Dame" sempre reflectido no Sena, Paris enfim, já não faziam sentido; e um dia, num "bistro", em bate-papo com três artistas de "la novelle-vague", com atelier no Boulevard de Clichy, influentes e amigos íntimos de negociantes de arte, dizem-lhe que caminhava para um anacronismo desmesurado, longe das novas tendências; as "Banhistas" sensuais e carnudas de Renoir, eram agora resolvidas com dois traços.
Assim, sem demoras, decide deixar a "Cidade Luz" da sua escuridão.
E em Barcelona, quase berço dum homem multifacetado, um génio a esbanjar arte na pintura, na cerâmica, no bronze, onde um prego, nas suas mãos, valia uma mina de oiro, toma quarto numa modesta pensão nas "Ramblas"- local onde nunca se dorme, apenas se come e bebe e ri e dança, num ritmo de vida inesgotável.
Medindo com olhar de artista a enorme estátua de Colombo que aponta para longe como um sinal inequívoco de que ainda há muito por descobrir, o nosso amigo Victor Figueira parece ter encontrado o caminho criativo e solene; deixaria a grafite para se dedicar de alma e coração à técnica do nobre óleo. A verdadeira pintura estava exactamente naquelas pastas oleosas que permitem inventar cores; e, com a venda de alguns desenhos da estátua do descobridor genovês, compra as suas primeiras tintas e pincéis.
(Ouço os passos do teu avô no corredor... Bateu-me à porta! Espera, minha filha!).
...Anda preocupado com o S. Gabriel. Em boa verdade, Maria, eu também.
O cavalo come mal e a infecção da garganta que se julgava passageira, teima em manter-se aguda. Parece-me que os medicamentos não estão a resultar. Na tua próxima vinda não o estafes. Passeia-o sem o montares. É o que eu tenho feito ultimamente.
Mas voltando ao pintor; contar-te-ei o porquê de nunca ter chegado onde sonhava chegar. Noutras páginas. Noutra altura. O que tu sabes, minha filha, é que ele se tornou num pintor tauromáquico.
Com os anos, e o suporte económico de teu avô, foi-nos enchendo as salas com tantos quadros taurinos que quase já se não vê o desenho dos papéis que forram as paredes.
Na visita de ontem mais uma tela e mais um toiro. Mas adorei este seu último trabalho. Sabes porquê?
Era "Islero Segundo", o animal que tu pediste para assim ser chamado, uns diazinhos depois de ter nascido.
Ele ali estava, com os seus quase dois anos, sereno, garboso, rodeado de papoilas, olhando o pintor.
- E onde vamos pôr essa sua nova tela? Já temos toiros que baste, nesta casa, amigo Victor! – disse teu avô com o seu ar sério mas complacente e humanista.
- No meu quarto – disse eu, serenamente.
Tu não fazes a mais pequena ideia dos ares de espanto de meu marido, de Amaro e até de meu pai.
Juliana que tinha entrado pouco antes com os cafés, ficou horrorizada;
- Não acredito no que ouço, minha senhora! No seu quarto? o único desta casa pintado de branco, sem papel, com reposteiros brancos, a botar-lhe esse bicho todo negro? Deus Nosso Senhor me perdoe! O boi até me parece a alma do diabo!
- Et cum spiritu tuo – disse Amaro, distraído.
- Vai ficar bem no meu quarto. Ao lado do contador – concluí, decidida.
- Deus do céu. Como consegue distinguir que é o toiro que a menina baptizou? Deus do céu! – insistia Juliana.

Tenho muito para contar de Victor Figueira. Continuarei a revelar-te o que sabemos ou o que julgamos saber sobre a vida deste homem. Calha-me melhor assim, escrevendo.
Quando estamos as duas é pouco o tempo para te ouvir falar. E tanto gosto de te ouvir falar!
Estou atenta ao tempo.
Nesta escrivaninha, onde não raro me dedico a ti por estas páginas que irás um dia ler, anseio pelo fim do teu curso (e sobre isto temos que conversar, Maria!).
O que estás a estudar é para ti, eu sei. Mas a minha filha é o campo, e o campo a forma de vida da nossa família.
E tu, com essa tão bonita vida que Deus te deu, com teu marido, filhos, enfim! com a tua força inteira no destino, tens o Ribatejo a teus pés. Não te esqueças que o local onde nasceste está sempre florido.
A grande novidade de ontem; o "Anacleto" deu profundos arranhões na mão de Amaro quando o sacerdote se preparava para lhe fazer uma festa.
O bichano está cada vez mais alérgico ao padre.


Desta vez sim; eis a noite de Jill.

O nosso "amigo" e vizinho senhor Nguyen Rung Tram, acompanhou-me à porta.
Ficou com bastante pena de eu não poder assistir ao espectáculo de "sombras chinesas" que tinha preparado para depois do jantar, mas compreendia os superiores deveres de uma mãe - a sua experiência de pai, dum pai viúvo, situação que lhe auferira um estatuto de grande responsabilidade, era mais que suficiente para desculpar a minha ausência.
Mas Jill ficou.
Três dias depois contou-me o que se passou naquela noite, enquanto se servia dum cigarro e dum whisky.
No nosso leitor de CD ouvia-se "The Nigth and its Moon", oferta de Tram.

Depois do chá, Nguyen convidou Jill a acompanhá-lo a uma pequena sala parcamente iluminada, com amplas almofadas espalhadas pelo chão, e três ou quatro camas de esteira com umas pequenas cabeceiras de madeira, de formato côncavo.
Era a sala do seu refúgio, da sua solidão, das reminiscências do passado – a um canto, ao lado dum Buda de corpo inteiro comprado a um anamita e que lhe custara uma fortuna, reluziam algumas fotografias dos seus pais nos esplendorosos anos vividos no negócio da cocaína.
Mas ele, Rung Tram, não lhe oferecia aquele pó magicamente branco que exibia na pequena salva de prata, numa redoma, como raríssima relíquia dum passado que fizera a fortuna da sua família.
Mas convidava Jill a experimentar a folha da coca, seca, seca por quem a sabe secar, em vez do "Camel"; Ele próprio, num cerimonial que lhe dava enorme prazer, preparou os dois compridos cachimbos, com o fumo adequado no largo fornilho; os nutrientes que ambos iam expirar eram uma dádiva para a saúde.
Entretanto, numa tela branca, quadrada, rompeu o "teatro das sombras chinesas" com requintados bonecos manipulados por três pessoas – como Jill veio a verificar mais tarde - que contavam a aventura de caminhantes na busca da verdade.
E a verdade estava na descoberta do corpo como parte sustentável do pensamento; era neste que todas as imagens da vida terrena, mesmo a intra-uterina, passavam para lá da própria eternidade, num percurso tão longínquo que a primeira mente, nascida do primeiro óvulo, ainda nem a meio do caminho se encontrava.

Assim, naquele momento que desde já considerava solene, Tram entrega a Jill o cachimbo preparado para o prazer, pois de prazer é feita a caminhada de imperecíveis milénios, ao mesmo tempo que delicadamente lhe pedia que se deitasse na esteira, encostasse a cabeça na cabeceira, voltasse o fornilho para a vela e, com pequenas mas fortes expirações, acendesse o fumo.
Na tela branca as sombras de disformes animais pareciam bailar à volta dum Deus Universal, e o nosso vizinho, deitando-se na esteira mesmo ao lado da de Jill, principiou, por sua vez, a acender o seu cacimbo.

- Deixei de sentir o meu peso, Maria – balbuciou-me pegando noutro "Camel" –  estava num estado de imponderabilidade. Foi pena não teres ficado, não sabes o que perdeste, disse.

Então, por detrás da tela, as sombras dos bonecos deram lugar a silhuetas de mulheres em corpo inteiro, para depois aparecerem, para cá do pano branco, envoltas numa capa de veludo azul, um azul muito escuro que talvez até fosse preto em vez de azul.
Uma delas, num ritual cadenciado, aproximou-se de Nguyen, desta vez ao som de "Paradise of Dreams" (tema que exactamente se ouvia naquele momento no nosso leitor) e com um ligeiro sorriso e uma delicadeza de gestos, principiou a despi-lo. Uma outra, mais alta e esguia, com a cara pintada de branco, tirava o vestido a Jill sem que esta tivesse um único gesto de resistência. Deixava-se levar pela ternura que recebia do fumo, da música, das máscaras de sorrisos das três mulheres sendo que a terceira, de joelhos, entre as duas esteiras, observava a cena balbuciando palavras incompreensíveis, que ressoavam pela salinha, enquanto se deliciava acariciando-se pelos seios, braços, pernas, ventre, como se fora um objecto de culto a homenagear perdidamente.

- Não me recordo exactamente de tudo. Sei que pedi. Sei que me obedeceram. Sei que me deram muito. Sei que retribui tudo o que tinha. Sei que beijei e fui beijada. Não!, não sei se eram beijos, eram antes aromas quentes que sentia no meu corpo abandonado, sem forças, anestesiada, perdida num sonho do qual não queria sair. Desejava o fim dos dias. Desejava não ter que acordar para uma realidade que agora meço, aqui ao pé de ti, na comodidade da nossa casa, na incerteza do nosso futuro porque, depois do que senti,  não podemos ter a certeza de nada.

Mais tarde uma das mulheres, já com a túnica vestida, dera-lhe um chá a beber. E adormecera quase de seguida, não sem antes sentir que a retiravam da salinha. Quando acordou, já na tarde do dia seguinte, encontrava-se num quarto forrado de tecido branco com mobiliário em canas de bambu. Um grande cesto com frutos esperava-a.

- Gostava de repetir o sonho. Prometes-me que no próximo jantar não nos abandonas?

Não prometi.

Maria, Saigão, 2 de Agosto/07


Truquistas amados;

 O prometido, por vezes, não é devido.
Estavam à espera da "noite de Jill" com Rung Tram mas enganaram-se redondamente. Fica para a semana.
Para esta, peço-vos uma leitura atenta à magnífica prosa de minha Avó (são sempre magníficas!) não obstante seguir incompleta.
A segunda parte será então publicada daqui a quinze dias.
Como sabem é raríssimo Ela datar as páginas do seu "diário" mas, curiosamente, ao escrever que meu bisavô está preocupado com a "guerra por essa Europa fora e que nunca mais parece ter fim" podemos talvez datá-lo entre 1944/45.
A reforçar este meu raciocínio está o facto de minha mãe estar com 22 anos, ou seja, quase a terminar a sua licenciatura, exactamente no último ano da Segunda Grande Guerra.

O tempo por aqui é o costume; por esta altura do ano temos 30º - mais grau, menos grau – e as chuvas de monção aparecem e desaparecem conforme lhes dá na gana.
Quando o Sol espreita para casa e para a piscina é que é o caminho, com Muffy, claro está!
Hoje foi um dia assim; uma manhã tenebrosamente enevoada e uma tarde com Sol bonito, como a minha filha e o seu turbante.
Vejam as fotos.
Beijos frescos para todos (é o que apetece com esse calor, certo?).
Maria, Saigão, 28 de Julho/07

(in Diário da minha Avó)

"Não pego neste caderno desde que te deixámos no comboio, domingo passado.

Quando te vejo desaparecer na curva da linha não reprimo lágrimas; deixo-as correr livremente pelas faces e meu marido enxuga-mas com o seu lenço de cambraia. O fumo branco da máquina ofusca-me o teu adeus da janela da carruagem. Desculpa-me minha filha! É sempre uma despedida as tuas partidas para Lisboa! Os teus 22 anos são toda a história da minha vida.
Além do mais continuo muito preocupada com o teu avô; vejo-o a perder a jovialidade de outrora, cabisbaixo, apoiado à sua bengala que já deixou de ser um adorno de elegância; folheia o "Diário de Noticias", de lunetas embaciadas, e absorve com avidez as últimas da guerra por essa Europa fora e que nunca mais parece ter fim; tristíssimo pelos constantes dissabores com alguns trabalhadores das nossas quintas que exigem melhor jorna. Balouça-se no seu velho cadeirão de palhinha e fica horas infinitas no alpendre que dá para o roseiral, com os olhos fixos em nada, de cachimbo apagado, de braços pendentes, esquecido de si.

Muitas vezes dou por ele a folhear álbuns de fotografias e alguns daguerreótipos que conserva em pequenos panos de seda, e fica assim, isolado, entregue ao passado que viveu, como quem rebusca na memória as montarias fidalgas, as aventuras prazenteiras e alguns dissabores resultantes da teatralização das lendárias façanhas "à Zé do Telhado".
Consta-se que teve uma aventura amorosa semelhante à de Camilo com Ana, mas nada se provou de concreto porque algumas libras resolveram o problema passional.
Ele sabe – estou tão certa como estas linhas que te escrevo - que eu e meu marido lhe dedicamos uma amizade profundíssima e um grande amor. Os amigos que nos visitam amiúde, enchem esta casa de alegria mas, mesmo assim, sinto que ambiciona a chegada da noite alta para se recolher ao seu quarto onde, antes de se deitar, vagueia em passada lenta, como quem deseja ouvir o ruído dos seus passos no velho soalho.

Ainda ontem recebemos o Sr. Nuno Duarte, o "brasileiro", no seu impecável fato branco e grande anel d'oiro com pedra negra, que mais uma vez nos saturou com as "minas do Brasil. Aquilo é que era terra e era vida! Portugal, agora, só pra férias. Curtas, férias curtas". E tagarelou durante horas num refinado sotaque "à moda do Brasil" como diz acertadamente o padre Amaro.
Mas a visita da noite era de todo inesperada; Bateu-nos à porta o pintor Victor Figueira.
Teu avô deu-lhe um grande abraço; abraço de saudade; abraço de amigo. Quase que vira nascer o rapaz.
Victor Figueira (jovem com os seus quarenta anos) desde novo que se sentira inclinado para a difícil arte da pintura. E na primária, ao desenhar na sebenta um Pégaso de asas curtas, a professora – velha senhora de óculos grossíssimos – teve uma conversa com os pais do petiz, alertando-os para a vantagem de proporcionar ao moço "outros voos, pois era pena perder-se um talento tão precoce".

De facto, depois de concluídos o liceu e a tropa, parte para Paris, a cidade luz, e de luz se deixa entranhar na contemplação das obras dos grandes mestres, expostas nas enormes galerias do "Musée du Louvre", interpretando como um hermeneuta os segredos dos grandes pintores que venerava como se venera a Deuses.
Mas que caminho escolher? O escandaloso Caravaggio? A técnica sublime de Rembrandt? A magia da cor de Renoir? 
Um dia, depois dum bocado de pão manducado na margem do Sena, com bloco e grafite, entra na liberdade criativa da "la Place du Tertre", cheia de Sol num dia de inverno, na esperança dum retrato; e eis que de súbito, mal tinha aberto o banquito articulado, lhe aparece uma jovem lindíssima, que o convida a desenhá-la de perfil.
Deveria ter sido a sua primeira "obra-prima" pois nessa mesma noite, depois da ronda pelos bares nocturnos que lhe pagavam para se despir em público, aplaudida com taças de vinho espumoso, a rapariga convida-o a dormir na sua cama numa modesta pensão de Montmartre.
Quando, num à-vontade da profissão, a vê despachar as peças do vestuário, Victor disse-lhe apaixonadamente: "passa as noites a despir-se para os outros; deixe-me ser eu a despi-la para mim".

Era helénica. Deixara-se arrastar para Paris, embarcando na aventura da juventude, com projectos grandiosos – e Victor, ao ver aquela figura de estátua grega, qual Samotrácia completa, recordou-se do seu Pégaso primário e dos óculos da velhinha professora.
Os ruídos da estreita cama de ferro não conseguiam abafar as delícias do prazer mas o artista, na contemplação da pele marmórea que se lhe oferecia como dádiva, durante a noite inteira, percorreu os caminhos divinos da história da Arte Universal. 
As noites loucas de Paris eram retratadas, a preto e branco, no seu bloco – até que numa manhã, ao acordar, depara-se-lhe um simples papel que o despede como amante e como artista; "Antoinette" resolvera partir, levando com ela os seus desenhos a grafite que a retratavam numa nudez difusa mas cada vez mais bela e apaixonada.
"Adieu, Mon petit Chéri. J'ai perdu mon temps a faire des folies. Je t'adore. Nette."


Sem "veia" para crónicas.

 É verdade.
A vossa "Maria do Vietnam", está hoje sem qualquer vontade de se agarrar a esta coisa, para vos escrever algo que mereça a vossa atenção.
Sobre Muffy já vocês sabem que é a filha mais linda do Mundo; aliás o Luís dá-lhe sempre, na paginação das "Fofocas", honras de primeira página (a propósito mando mais uma fotografia tirada por mim).
Sobre o nosso "Mercado em Movimento" não posso adiantar muito acerca do trabalho que estamos a elaborar, enquanto o produto não for lançado aqui em Saigão.
Sobre a noite de Jill com Rung Tam (o nosso vizinho) prometi contá-la no fim do actual mês para terem leitura condigna nas vossas férias.
Sobre o "Diário" da Minha Querida e Santa Avó, não tenho tido muito tempo para seleccionar as melhores páginas; compreendem que há assuntos de família que quero preservar apenas na minha intimidade.
Por sinal, em algumas folhas que Ela dedica ao tão pouco tempo que esteve no colégio das freiras, em Abrantes, penso na revolta que teria sentido – aquela jovem habituada ao ar campesino – a ser obrigada a cumprir o "Regulamento da Filha de Maria".Leiam alguns exemplos, que transcrevo dos "Exercícios de Piedade", sem omitir uma palavrinha, a ortografia da época ou eventuais erros tipográficos:

 "Uma filha de Maria deve levantar-se a uma hora fixa, assim como também se deve deitar a hora certa.
A sua primeira acção ao despertar será fazer o sinal da Cruz; o seu primeiro pensamento oferecer o dia a Jesus, Maria e José, estes dulcíssimos nomes serão as suas primeiras palavras.
Vestir-se-há com a maior modéstia possível, como estando em presença de sua immaculada Mãe, e procurará entreter-se em pensamentos piedosos, preparando-se para a oração e meditação.
Apenas vestida, a não ser que de todo lhe seja impossível, fará logo a sua oração da manhã.... prevenindo as occasiões de offender a Deus e tomando as boas resoluções práticas.
Deve amar-se o trabalho, considerando-o como um dever imposto por Deus em castigo do pecado...
Não se permitirá amizades particulares....
Uma Filha de Maria deve-se lembrar, estando consagrada à mais pura e modesta das Virgens, tomou a obrigação de fugir do luxo e dos enfeites mundanos..."

 Compreende-se porque minha Avó, habituada a todas as liberdades que a natureza lhe oferecia, a levantar-se antes do primeiro cantar do galo e a deitar-se muito depois de ver adormecer os vitelos, não suportasse a clausura e as regras rígidas de semelhante regulamento.
Talvez um dia, sem querer ferir susceptibilidades, e sem pôr em causa a ideologia cristã e, muito menos ainda, o Colégio onde andou minha Avó, eu acabe por publicar na integra a parte do Diário que refere a sua vida nas freiras.

Veremos.
Beijos para todos.
Maria, Saigão, 18 de Julho/07


Sobre o Aeroporto de Lisboa!

Estou no Vietnam há mais de ano e meio. Mas continuo a ser portuguesa e tenho uma querida filha dum pai português.
Acompanho as polémicas nesse Portugal - que vive para elas ou que delas precisa – quase diariamente pelos imensos meios de informação que estão a tornar este planeta numa pequena aldeia onde todos se conhecem para o bem e para o mal.
Patriotismo? Chamem-lhe o que quiserem!
Mas deixem-me contribuir para uma causa que a todos interessa: " Novo Aeroporto Internacional de Lisboa" (NAIL, para simplificar).
Apresento-vos uma proposta original, quiçá a mais original do Mundo, que tornaria Lisboa numa Cidade todo-poderosa e universalmente conhecida e reconhecida.
Com este projecto contentam-se os principais interesses entre o Norte (Ota) e o Sul (Alcochete) e as pequenas localidades - que também estão na disputa pelo privilégio de virem a possuir uma pista de aterragem.

Trata-se de uma coisa séria; Existe alguma cidade no Mundo que tenha um rio como o Tejo? Pois bem; entre a "Ponte 25 de Abril" e a "Ponte Vasco da Gama" distam alguns quilómetros.
Pois é nesse espaço que Portugal vai construir a maior pista de aterragem do Mundo esmagando, pela sua grandiosidade técnica, qualquer outra obra de engenharia e humilhando, literalmente, o acrescento da pista do aeroporto da Madeira, que entra pelo Atlântico dentro.
A nova pista de aterragem, talvez na zona do mar da palha, poderia ter uns bons 50 metros de largura e os pilares a altura semelhante às actuais pontes "Abril/Gama", para não incomodarem as fragatas, os cacilheiros, ou o "Freedom of the Seas".

Está bem de ver que este monumental aeroporto contentava todas as partes (os do norte e os do sul) e parece não haver lugar a expropriações, nem luvas, nem negociatas; o Tejo vem das serranias espanholas, mas é em Lisboa que respira o ar do oceano. É o rio de todos os portugueses tal como é o Presidente da Republica.
E que atracção turística, meus amigos!
Deixem-me sonhar; a alguns quilómetros da pista o comandante do Airbus A380, com voz serena, fala aos seus 555 passageiros e chama-lhes a atenção para a próxima aterragem no maior e mais bem equipado aeroporto do Mundo:

" - Senhores passageiros do rés-do-chão e do primeiro andar, informo-vos que nos estamos a aproximar do "Maravilhoso Aeroporto Internacional de Lisboa". Podem entretanto admirar, à vossa esquerda, a linda serra de Sintra, hoje por azar enevoada, mas aconselho visitas ao Castelo dos Mouros e ao Palácio da Pena, este uma confusão de estilos arquitectónicos, mas foi ali que a última rainha de Portugal, antes de partir para o exílio, passou a noite sem ter pregado olho. E eis já a baía de Cascais, Estoril logo ao lado onde se vê a casa de Manuel Espírito Santo Silva, aquela pintada de cor rosa, onde Eduardo VIII, Duque de Windor, viveu uns dias, no tempo da última Grande Guerra, antes de partir para a América. Segue-se o Forte de Santo António do Estoril – neste País tudo é Santo, Graças a Deus - local onde o ditador Salazar deu um trambolhão duma cadeira à porta dos anos 70. Eis já a Torre do Bugio, no meio do mar, sinal que entrámos no rio Tejo de águas tão serenas.
Ainda à vossa esquerda a famosa Torre de Belém, o Padrão dos Descobrimentos, o CCB, ou melhor, o Museu Berardo, o Mosteiro dos Jerónimos... mas estou-me a esquecer da margem direita; a Trafaria onde se come magnífico peixe e amêijoas fresquíssimas, caldeiradas, sardinhas assadas, e Almada com o seu Castelo e a Igreja de Santiago do Castelo... Mas já não tenho mais tempo para cicerone. Eis o Cristo Rei, de braços bem abertos, abençoando incansavelmente esta cidade de Lisboa que espera por vós. Pena foi não ter sido erigido antes do terrível terramoto do século dezoito...
Acabamos de aterrar; De facto é uma pista magnífica. Não se sente a suspensão destes 22 pneus. A Airbus deseja-vos uma magnífica estada em Portugal. Regressem connosco".

Que vos parece o projecto deste "NAIL"?
Um aviso aos ecologistas, sempre preocupados com todos os centímetros quadrados desse País; posso assegurar que o borrelho fica em segurança no seu habitat.
E para terminar mando-vos uma foto recentíssima de minha filha, mais uma outra de Céu na Índia, e as minhas saudades para todos vós.
É tão bom sonhar com Portugal.

Maria, Saigão, 11 de Julho/07 (Nota histórica; neste dia, no ano de 1995, Bill Clinton estabelece relações diplomáticas com esta Công Hòa Xã Hôi Chú Nghia Viêt Nam)
(Fotos: a minha Muffy e a querida Maria do Céu na Índia)


Queridos Truquistas;

 1 - Compreendi a preocupação do Luís.

A culpa foi minha pela maneira como lhe comuniquei o acidente de Maria do Céu; aflitíssima, por aquela chamada do hospital às 21,30, esqueci completamente a diferença horária que nos separa - 6 horas precisas entre este País e Portugal. Mas não passou de um susto; Maria do Céu foi radiografada, e estava intacta. Apenas umas ligeiras escoriações na mão esquerda. Nada de mais, felizmente!
Contou-me então que seguia na minha ex-bicicleta (ofereci-lha) e esquecera-se que os semáforos de trânsito, aqui em Saigão, são meros elementos decorativos; a cor vermelha não obriga a parar, apenas a buzinar.
Salvo em raras excepções (como as das fotos que vos mando) se respeitam as regras; Em grandes rotundas ou quando algumas vacas atravessam a rua.
Maria do Céu, "distraída", parou num "vermelho" e o condutor da motoreta que vinha imediatamente a seguir, não esperando tamanha respeitabilidade ao semáforo, esbarrou contra ela danificando a roda. Esta, se me é permitida a brincadeira, ficou literalmente feita num oito.
O homem do ciclomotor protestou, barafustou, acelerou e desapareceu na ruela à direita, por sinal com indicação proibitiva.

 2 - Tenho acompanhado de perto a monumental polémica (entre tantas que há em Portugal) sobre um importantíssimo investimento que o governo pretende levar por diante afirmando, convictamente, ser de capital importância para o País; refiro-me ao Novo Aeroporto de Lisboa.
O cidadão comum e as diversas forças políticas, têm opiniões díspares sobre o local onde o mesmo se deve projectar.
Eu também tenho opinião. Uma opinião reforçada com uma sugestão de força.
Para a próxima semana, revelá-la-ei – aguardo um estudo preliminar que arquitecto amigo se apronta a entregar-mo. É mais um estudo, este gracioso.

 3 - A noite de Jill em casa do nosso vizinho Rung Tam, merece uma crónica muito especial. Tenho-a pronta, quase pronta! Enviá-la-ei na semana que antecede as férias do "Estúdio Raposa". Servirá de leitura de entretenimento para os ouvintes deste "Estúdio", privados que ficam durante um mês inteiro da reconhecida qualidade dos programas.
Parece-me que ninguém perdoará ao Luís Gaspar desligar o microfone durante um mês inteiro.
Eu não lhe perdoo.

 4 - Outro assunto: Cláudia (já não necessita de apresentações), tem-nos contado coisas muito curiosas sobre as antigas Agências de Publicidade em Portugal. Há uns três anos, quando se deslocou a Lisboa, conheceu um senhor duns sessenta de idade que trabalhou grande parte da sua vida em agências de serviço completo.
Meu Deus! As histórias que ele lhe contou; tenho "material" para uma grande série de crónicas.
É uma maneira de me esquivar a dar-vos satisfações sobre o que estamos a fazer para o lançamento dos brinquedos.

 5 - E chega por hoje. Mando mais uma foto de minha filha que aproveita todos os bocados de Sol para mostrar o seu bonito corpo.

 Renovo o pedido de desculpas ao Luís.
Beijos a todos os Truquistas.
Maria, Saigão, 4 de Julho/07


O jantar com Rung Tram.

(antes de lerem esta crónica suspeita, vejam a minha Mafalda na piscina do condomínio)

Já estava arranjada quando Maria do Céu nos bateu à porta. Jill quase pronta. 
Mafalda, sem nenhum compromisso social, entretinha-se com uma das inúmeras bonecas da sua colecção.
E quando Jill, enfim, se considerou arranjada para sair, dei um grande beijo a minha filha e prometi-lhe não me demorar.

A casa de Rung Tram fica ao lado da piscina. Um pequeno mas bem tratado jardim antecede a porta principal. Lá estava a cabeça de Buda, para a qual nos tinha chamado a atenção; contornámo-la e seguimos o pequeno lajedo ladeado de velas acesas.
Foi o próprio dono da casa que nos abriu a porta, com um largo sorriso e uma grande vénia.
Casa luxuosa, de pessoa rica. A sala de jantar fica logo à direita e para ela nos encaminhámos. Duas flores sobre a mesa indicavam-nos os nossos lugares. Ouvia-se música esotérica estilo "filosofia Yin e Yang" de grande espiritualidade e serenidade (já lá vão 3 dias e ainda me recordo de dois temas que Rung disse chamarem-se "Paradise of Dreams" e "The Night and its Moon").
E enquanto éramos servidas por uma linda vietnamita ("free lancer" em jantares de cerimónia), o nosso vizinho começou por nos dizer que a sua vida era simples – e que se chamava Nguyen Rung Tram. Tinha quase 70 anos, viúvo de segunda mulher há precisamente 3, e que encontrara no ano passado, naquela cidade de Ho Chi Minh, naquela casa tão privada e serena, o sonhado ambiente de conforto. Rodeara-se dos seus queridos livros, da sua querida música, duns queridos quadros de artistas orientais, e duma comodidade não luxuosa mas suficientemente cómoda para terminar em felicidade o resto dos seus dias.

Nascera em Hué – a linda capital imperial – mas dois anos antes da criação da Liga pela Independência, chefiada pelo comunista Ho Chi Minh, seus pais, com ele ao colo, emigraram para as Américas onde vieram a enriquecer de um dia para o outro ao engendrarem uma camuflagem que até aí ninguém se tinha lembrado.
E com um à-vontade que nos espantou, Rung Tam, relatou-nos minuciosamente que o melão e a noz eram invólucros insuspeitos para a transacção de cocaína. Mas a prudência aconselhava a uma segurança ilimitada e, para isso, era necessário subornarem agentes alfandegários e de tal modo o conseguiram que em 15 anos as fronteiras praticamente tinham desaparecido. Os transportadores de maior vulto eram os pneus dos grandes carros a as asas dos aviões. A rede estava de tal modo bem organizada que ninguém sabia quem dava ordens, quem as recebia e muito menos como a cocaína era distribuída e vendida às claras nas concorridas ruas das cidades americanas.
Mas Rung Tam negava-se a colaborar naquele negócio tão lucrativo e, no dia em que festejava os seus 17 anos com um grupo de amigos, ao ver um deles cair redondo no chão com uma overdose, demite-se das cumplicidades e pede aos progenitores que pretende concluir os seus estudos em Inglaterra. Com milhares de Libras depositadas num banco inglês já refeito da última Grande Guerra, chega a Londres num dia memorável; ao aguardar pela sua bagagem, uma jovem japonesa encosta-se a ele com um maço de cigarros Marlboro e diz-lhe: "Ofereço-lhe, isto passou a ser cigarro para homens".

Na Universidade de Southampton, nas salas de estudo e em quartos de amor, rodeados de livros e sorvendo beijos, Rung atinge uma monumental nota em Engenharia, ela uma monumental nota em Ciências Sociais, e um e outro uma menina linda como o amor de ambos.
Empregaram-se facilmente na "University of Cambridge", no mesmo ano em que Rung Tam sofre rudes golpes; toda a organização de seus pais fora desmantelada por uma das mais corruptas polícias de Tijuana, e pouco tempo depois uma fulminante leucemia matava sua mulher.
Destroçado, sem pais, sem mulher e com a pequenita nos braços, sentira-se o homem mais infeliz do Mundo.
E, à nossa frente, começou a chorar.
Ficámos indispostas com tanta desgraça junta e Rung Tam percebeu isso.
Num instante mudou de assunto; confidenciou-nos que se sentia muito só e, quando pela primeira vez nos vira na piscina com uma menina pequena (estava-se a referir a Mafalda), tinha-lhe ocorrido a feliz ideia de nos oferecer a sua desinteressada amizade e companhia.
Oh! Minha querida Filha! Horas infinitas a esperar por sua mãe. E Maria do Céu, decerto, já cansada do jantar infindável...
Então, sem cerimónias, informei o nosso simpático vizinho que me tinha que ausentar. Rung teve uma expressão complacente: "ficava com muita pena pois seguia-se um pequeno espectáculo de sombras chinesas".
Jill não o desiludiu e continuou a fazer-lhe companhia; "Eu fico, vai tu andando..."- disse-me ela.
Esta vossa Maria saiu, contornou a piscina, e entrou em casa. Mafalda dormia. Maria do Céu bebia uma chávena de Chá e despediu-se pouco depois.
Não dei por Jill ter entrado em casa. Aliás, de manhã, a sua cama estava intacta.

Maria, Saigão, 22 de Junho/07


"Não deixes crescer a erva...
...do caminho que te leva à casa do teu amigo".

 Vem isto a propósito de quê?

Do seguinte: Cláudia e sua amiga Elizabeth, partiram esta manhã para Macau (eu mesma as levei ao aeroporto) depois de todas nós termos chegado a um consenso quanto à estratégia para o lançamento dos brinquedos.
Mas a grande surpresa foi o dia de ontem. De manhã a nossa querida cliente, com ar solene, diz-nos ser o dia do seu aniversário e que estávamos todas convidadas para jantar num dos mais requintados restaurantes de Saigão. Mandei desde logo fazer um bolo com a legenda "Viva o Amor".
E aqui está o tema desta crónica escrita à pressa para chegar a horas do Luís a publicar.

O tempo é severo, já o sabemos. 
Mas, da sua severidade pode, se assim o permitirmos, resultar o esquecimento.
"Em tempos que já lá vão" recebia – enviados pelo Luís – grande série de mails; pessoas com quem me dava, amigos e conhecidos. Mas, a pouco e pouco, a correspondência foi escasseando e hoje é raríssimo recepcionar qualquer notícia dum Truquista.
Que saudades das avalanchas de novidades, manifestos de interesse por mim...
Que saudades das anedotas que recebia, dos cuidados para com minha filha (nunca mais esquecerei que D. Guilhermina me enviou a primeira chucha da Mafalda), da D. Bibi de Cascais (cheguei a dizer-lhe minha amiga, que a Senhora de Fátima que me remeteu não estranhou o clima do Vietnam?). Até o senhor Américo Luís (autor de diversos dicionários de calão) deixou de estar atento à minha escrita ou então ainda anda pesquisando o motivo pelo qual a sua obra não se vende neste país.

 Pois se nós deixamos "crescer a erva do caminho" quer dizer que não o percorremos, que não vamos ao encontro do nosso amigo e que o nosso amigo também se esquece de nos visitar. A isto chamo falta de AMOR. Amor com letra grande para que se veja, ouça e sinta. Li, não sei onde, não sei quando que, para viver, é preciso haver amor.

 Na quarta-feira passada visitámos o "Museu de Arte Antiga e Contemporânea". Para meu grande espanto, na sala onde se expõem obras de artistas da chamada "corrente do realismo moderno" – titulo que me deixa um pouco baralhada – encontro um quadro dum artista português do qual não fixei o nome. Fotografei-o, às escondidas. Ele aí vai.
Mesmo ao lado deste "Nu erótico" de Portugal, um dos mais conhecidos quadros de Chagall (A Noiva) e ouvimos uma jovem inglesa, casadinha de fresco, ao lado do seu imberbe marido, dizer-lhe; "A felicidade não existe sem um bode que toque violino"
Mando também a foto (ligeiramente desfocada) do jantar de ontem; Cláudia logo à esquerda, em segundo plano Jill e, à direita, Elizabeth.

 O nosso vizinho, senhor Rung Tram - o que mora numa vivenda ao lado da piscina - (vejam a Truca 503), insiste em convidar-nos num jantar em casa dele. Diz-nos apreciar a camaradagem e que só temos a ganhar com a sua amizade. Mandou-nos um formal convite para a próxima 4ª feira. O repasto é baseado em peixe, galinha (ou pato), legumes e frutas. Numa letra miudinha, num pobre inglês, dizia que nos esperava pelas 19 horas e chamava a atenção para não tropeçarmos num pequeno Buda que antece os degraus.
Para despedida... pois claro!
Adivinharam Truquistas: Uma foto de Muffy, ao lado de Céu que não vejo há mais de uma semana.
Maria, Saigão, 17 de Junho/07


(in Diário da minha Avó)

No passado domingo fomos ao "Solar do Rossio". O "Ford" bem se queixou do péssimo caminho mas o nosso desconforto deveria ser recompensado; cantava Hermínia Silva.
Teu avô (sinto-o um pouco adoentado mas também pode ser minha impressão) convidou o padre Amaro e ainda um antigo e fiel empregado, o Joaquim, que nunca na vida ouviu cantar o fado. Éramos, portanto, 5 pessoas.
Chegámos ao Solar (casa cheia como seria de esperar) e, depois das habituais deferências para com teu avô, o António encaminhou-nos para a mesa habitual – a que fica quase encostada ao estrado – e foi-nos logo dizendo que naquele dia em que "Rossio ao Sul do Tejo" recebia a grande Hermínia, a casa fazia também uma significativa homenagem à gastronomia ribatejana; podíamos escolher a fama dos sabores de Santarém, Golegã, Cartaxo, Salvaterra, Chamusca, Almeirim, Benavente, o que quiséssemos. Havia de tudo. Era escolher, comer com gosto e saudar à saúde com um tinto especial que vinha já trazer à mesa".

- E a que horas canta a Hermínia? – perguntou teu avô.

Pois aí estava uma pergunta que não podia ainda responder –"Lá pelas onze, talvez, o senhor Purificação bem sabe que o fadinho quanto mais tarde mais apetitoso".
Naquele momento cantava uma fadista de voz dorida, mulher magra, Maria das Dores de seu nome, toda vestida de negro, cabelo penteado para trás, dando à anca em travessura; "Mato a mulher que amaste na esquina da minha rua..."
Palmas para a artista. E desde logo teu avô, com o seu reconhecido ar de senhor e cavalheiro, convidou-a para nos fazer um pouco de companhia, no lugar vago "que a esperava" pois éramos cinco e a mesa de seis.
A fadista aceitou com grande à-vontade e desde logo manifestou o prazer de ser efectiva no elenco daquela casa de tanto prestígio; pois até hoje cantava a grande Hermínia.

- E veja o senhor Panificação – disse a fadista Maria das Dores – quando se canta numa casa onde vem actuar Hermínia Silva...
- Purificação. Senhor Purificação – corrigi-a bruscamente.

No momento o atencioso António tomava nota do nosso jantar; teu avô escolheu "Açorda de Sável da Golegã", meu marido "Naco de Boi em Vinho Tinto do Cartaxo", eu optei pelo "Ensopado de Enguia de Salvaterra", o Joaquim "Bacalhau com Couves a Soco da Chamusca" e o padre Amaro – que se ausentara por momentos – tinha escolhido "Migas com entrecosto de Benavente". A fadista aceitou apenas uns "Suspiros de Santarém "e um cálice dum vinho doce para nos fazer companhia.
Entretanto outro artista que se dizia fidalgo, tinha subido ao estrado. E a guitarra, chorosa logo nas primeiras notas, colou-se à voz do artista que entoou o primeiro verso com alma afadistada; "Quando eu era pequenino...".

- Mas saiba o senhor Panificação – continuou no mesmo erro a Maria das Dores – que uma vez, já lá vão, deixa cá ver Maria, deixa cá ver Maria, aí uns cinco anos. Cantava um menor quando a guitarra perdeu a ré.
Estão a ver a minha aflição, cantar sem aquela nota, bumba! papo-seco no chão. A corda passou ao lado do sobrolho do guitarrista, parecia um chicote, zás! Mas não me atrapalhei. Como não havia outra, afinfei-lhe com um fado que pode contornar a ré sem ninguém dar por isso. O pior é que bumba! papo-seco no chão..."
Nesse instante chega o padre Amaro e ao ouvir "papo-seco no chão", debruça-se, espreita para debaixo da mesa, procurando.

- Que faz o senhor na posição de decúbito ventral?
- De cú pró ar, quer o senhor dizer – disse a fadista – hoje é o seu dia de sorte padre. O Evaristo está de folga, senão... (e silvou três vezes, sublinhando os silvos com postura gestual significativa).

O padre soergueu-se num repente e bateu com a cabeça no tampo, fazendo estremecer os copos.

- Mas o que lhe deu Amaro? Não deixe arrefecer as "Migas" – disse teu avô.

Olhei para meu marido. Viu-o comer com alguma reserva mas sentia-o satisfeito.
Era tão raro vermo-nos fora das quintas. Libertarmo-nos do quotidiano do dia-a-dia. Respirar outros "ares".
Assim, naquela noite, parecíamos de facto marido e mulher, longe dos desgostos comuns que nem um nem outro ultrapassava. A tua mãe, querida filha, sentia-se uma mulher adulta, ao lado do seu marido, felizes ambos... E um outro fadista cantava "Eu quero que o meu caixão/Tenha uma forma bizarra...".
Mas a noite já ia alta e nada de Hermínia Silva. A sala impacientava-se. Adivinhava-se grande balbúrdia mas o senhor António veio enfim justificar a falta da grande fadista "Senhoras e Senhores. A grande D. Hermínia Silva pede-vos perdão de não poder estar aqui hoje mas um contratempo com as filmagens de "Homem do Ribatejo" impediu-a de sair de Lisboa a tempo de estar com esta grande família. Mas a nossa Maria das Dores vai cantar um dos grandes êxitos de Herminia".
E a fadista, vaidosa por substituir a artista convidada, subiu ao estrado e cantou "... Quer queiras, quer não / tens que cumprir a tua sina".

- Tenho a impressão que enfiámos uma grande carapuça – disse teu avô ao pagar a factura do jantar.
- Verbum Dómini – arrematou Amaro que tinha jantado que "nem um abade".


"Mercado em Movimento" – O primeiro trabalho.

Cláudia (directora de projectos) e Elizabeth (sua secretária e que já por aqui tinha estado em Maio passado), estão entre nós para reuniões formais. É o primeiro passo na caminhada que iremos percorrer; não é um caminho fácil, sabemo-lo desde há tempos. Mas estamos determinadas em alcançar o sucesso. Este cliente de Macau confiou em nós e não o podemos desiludir.
Nas nossas instalações modestas (adjectivo qualificativo que convém sublinhar) localizado nas traseiras do "Palácio da Reunificação", exactamente na avenida Nguyen Thi Minh khai – vejam a edição da nossa Truca de 9 de Abril – respira-se um clima de trabalho sério e responsável. Sério porque não procuramos o lucro fácil, responsável porque nós e o Cliente somos uma equipa colectiva, onde não há lugar para vedetas exploradoras e resignados explorados.

É bom dizer-vos que na nossa "Postura de Estilo", nas regras deontológicas, não consta a palavra "transparência" que na 145 Worldwide tantas vezes se ouvia como forma fácil de encapotar a falta dela.
O nosso Cliente faz parte desta casa como nós fazemos parte da dele; numa parceria de esforços e de responsabilidades, em conjunto, em equipa, analisaremos os melhores fornecedores, os seus coeficientes de êxito comprovado, a sua resposta ao Brief, os seus orçamentos descriminados, a sua imagem no mercado. Não adjudicaremos seja o que seja a quem tenha fama de mau pagador. 
Não adjudicaremos seja o que seja a quem nos prometa recompensa pela preferência.

 As regras são claras para todos; se um de nós necessitar de tratar dum dente, paga do seu bolso; se pretender um carro, paga do seu bolso. Quem não tiver bolso não compra carro nem trata do molar, canino ou incisivo.
"Mercado em Movimento" não necessita de carro nem de dentes.
Necessita duma coisa linda: gostar de trabalhar e fazê-lo com alegria e saber.
E uma promessa já foi feita no jantar de antes de ontem, entre nós as quatro (Jill, Cláudia, a inglesa Elizabeth e eu): nada de prendas em dias festivos que sejam suportados pela esta empresa ou pelo Cliente.

As nossas despesas fixas estão suficientemente estudadas numa primeira avaliação das necessidades primárias: renda das instalações (com os custos paralelos de água, electricidade, telefone, condomínio, etc.) remunerações e leasing de material informático. Para todas as outras (material de escritório, por exemplo) iremos estipular uma verba fixa, anual, depois de termos uma ideia aproximada das necessidades. Na racionalização dos custos, evitaremos os valores brutais que se gastavam na 145 Worldwide na desgovernada tiragem de milhares de fotocópias a cores que se inutilizavam porque o texto tinha uma vírgula a mais ou a menos.
Um dos produtos com que vamos iniciar a nossa colaboração (todos os outros serão estudados lá para Outubro) é nem mais nem menos... um brinquedo para crianças dos quatro aos seis anos. A ideia é assombrosa; não se trata de bonecos que falam, dão saltos, dançam, fazem vénias, brincam para eles próprios, deixando a criança sozinha, encostada a um canto, olhando para o brinquedo que a ignora, não a deixando ser cúmplice da brincadeira.

Continuarei para a semana a contar-vos em que se baseia este Kit, quais os estudos que vamos fazer e quais os criativos que vamos seleccionar.
Para ilustrar a crónica de hoje mando de novo o desenho (por mim feito, não esquecer!) da nossa casa, desta vez já com jardim, piscina e quarto de Cláudia arrumado. A pouco e pouco vou redesenhando-o.
É claro que temos vizinhos; logo a seguir à piscina mora um cavalheiro (para variar muito magro e de olhos em bico), que se mostra interessado em relacionar-se connosco. Logo se verá.
Entretanto Jill que o ature.
Mando-vos mais fotos tiradas na Índia com Maria do Céu.

E esta semana (para castigo não sei de quê) não há Mafaldinha (um muito obrigado ao Luís pelo realce que deu a minha filha na semana passada. Bem sei que com Muffy as "Fofocas" ficam valorizadas...)


Maria, Saigão, 31 de Maio/07

(Nota Histórica: faz hoje 39 anos que 75 soldados comunistas conseguiram escapar ao cerco de mais de 2.500 soldados sul-vietnamitas, na cidade de Dalat – muito gozaram aqueles fulanos com o governo fantoche do sul!)

A Índia é um país de sonho.

No átrio que precede a saída da secção das bagagens, vi imediatamente, nos braços de Jill, a minha querida Muffy, à espera de sua mãe, cheia de saudades, com um sorriso de alegria e uma flor na mãozinha. Eu, quando a vi, deixei a Maria do Céu o meu carrinho da bagagem e corri para minha filha como se não a visse há uma eternidade.
Não me posso voltar a ausentar. Não posso estar um dia sem ela. Deixo de ser eu sem a companhia da minha Mafaldinha.
Mas a Índia, o que vimos da Índia, é um país de sonho.
Muito vos terei que contar nestas crónicas que já se tornaram um hábito; um hábito saudável.
Sinto-me feliz ao experimentar a sensação de estar junto a vós, ler-me semanalmente, ou recordar as páginas do "Diário" da Minha Querida e Santa Avó que vos tenho enviado para minha própria recriação espiritual.

O Luís tem percebido isso ao publicá-lo, massacrando-vos com a vida de uma família que, bem argumentada, podia dar um romance ou um filme; quanto a este não vejo, no universo das artistas, alguém com talento suficiente para personalizar minha Avó.
Ontem fui dar uma olhadela às nossas instalações. Ainda alguns caixotes por abrir, mas a salinha de Jill já está pronta com grande sobriedade e descrição.
A simplicidade, neste nosso projecto "Mercado em Movimento", é essencial.
As agências de publicidade viveram sempre com o complexo de grandes e faustosas instalações para impressionarem os clientes e estes, coitados, a curto prazo ficavam a saber o que lhes custava aquelas alcatifas, cadeirões em pele, mesas com tampos de mármore, Tudo "chique a valer" como dizia uma das personagens de Eça.
Segundo Jill está tudo tratado com a 145 Worldwide.
Contas arrumadas. Objectos pessoais já retirados.

Agora é assentar "arraiais" (que saudades tenho eu duma noite de Santo António em Alfama ou Mouraria, com balões coloridos de velas acesas, sardinhas assadas e um copo de vinho tinto) na nova casa, com outro tipo de atitude.
A aventura vai começar. Cláudia (que no nosso novo apartamento já tem o seu quarto arranjado) vem nos primeiros dias do próximo mês para se dar início aos estudos dos seus produtos.

Quanto à Índia... bom!

Ponderadamente, irei mandando as fotografias que tirei, especialmente a Maria do Céu que ficou apaixonada pelos indianos; aqueles homens gentis, bonitos e morenos que falam com grande serenidade. Entre ela e um desses cavalheiros houve um bonito entendimento que, às escondidas, vos poderei contar.
Para o mês que vem é também inaugurada a sua loja "Fashion". As vietnamitas vão ficar doidas com tanta coisa bonita.
Admirem desde já uma fotografia de Céu e outra de especiarias onde o nosso Vasco da Gama andou metido.
Eu sei que os Truquistas já estão com saudades de minha filha; pois faço-lhes a vontade e eis Mafalda olhando-vos com ar maroto.
Beijos para todos
Mairia, Saigão, 24 de Maio/07

2(in Diário da minha Avó)

"... numa forma sublime. Senti-me uma outra Juliana, uma outra mulher. Conhecia, enfim, o prazer da Virgem Mãe, bendita Mulher entre todas as mulheres, pois Amaro, num gesto solene, destapou-me os cabelos húmidos e soltos, afagando-os com a mão que estremecia...".

Então o padre pediu a Juliana que se ajoelhasse junto a ele e ambos, assim unidos, ofegantes, os corações desordenados, as mãos trémulas que se juntavam numa prece uníssona, juraram perante a Santa Imagem que os olhava com ar cúmplice, que se uniriam para sempre até que a morte os separasse; o corpo de um seria o corpo do outro. A Carne de ambos era indivisível; partilhariam os sofrimentos, as alegrias, as lágrimas de um desgosto;  o prazer da posse e a dádiva da entrega seriam para sempre renovados, e aquele solene momento que ambos estavam a viver era apenas testemunhado por Deus. Entregavam-se ao Senhor. Pertenciam-lhe.
As flores de Santa Teresinha no altar da Virgem, aplaudiram com frenesim; homenageavam a vitória do amor glorificado.
Amaro, com os olhos brilhantes, persignou-se e, pressuroso, ergueu-se e encaminhou-se para a escada que subia ao santuário do amor.
Fez um significativo gesto a Juliana, pedindo-lhe cuidado com o ranger dos degraus.

O quarto de dormir, onde o padre se recolhia para o descanso dos justos, arrumava uma simples cama de ferro com colchão de palha que todos os dias era remexida por Fortunata, uma pequena mesa onde pousava o Novo Testamento, um simples castiçal duma única vela e, na parede fronteiriça à cabeceira, a grande cruz com um Cristo olhando para o Céu.
Decerto enviada pelo Altíssimo, voltara a chuva açoitada pelo vento, com ruidosas batidas na vidraça; e inesperados clarões de relâmpagos, logo seguidos de tremendos trovões, abafaram os ruídos da ferragem da cama.
Ambos se iniciavam na arte do êxtase; ele mal sabia como desapertar-lhe os pequeninos colchetes da camisa e ela apenas lhe desprendeu o cordão do hábito. Mas a natureza, matriarca suprema da criação, ensinou-lhes a desbravar caminhos.
"Juliana, gratia plena, dominus tecum. Sancta Virgo virginum" disse-lhe Amaro adivinhando-a já nua. Os relâmpagos iluminavam aqueles corpos agarrados num abraço forte, onde os seios dela se moldavam ao peito dele; e Juliana, com gemidos lânguidos, pedia-lhe como agir para receber no seu corpo de mulher aquele corpo de homem bem-amado, santificado, cheio de graça e de desejo. Que se beijassem de alma inteira, que se dessem um ao outro. Ela queria ofertar-lhe a sua virgindade, faze-lo eternamente feliz, senti-lo dentro dela para todo o sempre e para isso aí a tinha inteira, naquela boca insaciável de beijos, naquelas pernas que se abriam para o receber e, num grito de dor abafado por um forte trovão; "Oh! minha senhora, senti-me entregue a Deus de corpo e alma".
Amaro, lívido, tímido, por várias fezes rezara fervorosamente "benedicta tu in mulieribus" e, no auge do prazer divino, desfeito pala surpresa da graça recebida, agarrou-se a Juliana com uma força brutal como se a quisesse reduzir a uma hóstia consagrada.

A trovoada parecia afastar-se. Os dois, deitados lado a lado, com um cobertor de papa a tapar a nudez mútua, sem forças, desfeitos pela entrega devota, olhavam para o crucifixo parcamente iluminado pela manhã que despontava, quando sentiram uma penugem acariciante a seus pés; era o impertinente "pirilau" com o pelo eriçado, cheio de medo pelos trovões. Ao primeiro ribombo, num ápice felino, pulara da almofadinha de ponto cruz para se vir enroscar na cama do padre.
Juliana, pelo adiantado da hora, vestiu-se à pressa sem se cuidar em fechar os colchetes e ao despedir-se

 -"adeus amor, até logo"-, recebeu de Amaro o lençol testemunha do amor vivido; "...ainda o tenho guardado, minha senhora, nunca o lavei!".
"- Que idade tinhas tu Juliana? - perguntei-lhe".

Tinha os seus 25 anos, mais ano menos ano. "Esta relação, minha senhora, dura há 18 anos, nem mais nem menos! Há 18 anos!"
Mas Amaro já não era o mesmo padre; deixara-se engordar pelo pecado da gula, as suas prelecções não cativavam os paroquianos como no antigamente mas, mesmo assim, com os seus 52 anos, continuava a ser o mesmo amante. Encontravam-se amiúde em locais diferentes, sendo o palheiro o mais apetecido.

"...e D. Maria, minha senhora, nesta mesma tarde em que nos descobriu, tinha tido sucessivos orgasmos, como da primeira vez. Curiosamente houvera chuva e trovoada...".

 E fico-me por aqui minha filha Maria. Desde que Julianan cumpra como sempre, faço por esquecer este desaforo. Entre a minha idade e a tua apenas distam 16 anitos mas, pelas conversas que ambas temos tido, pressinto aceitares com discernimento a validade destes amores. Ainda não me habituei a essa tua vida académica e ao anticlericalismo que por essa Lisboa te andam a ensinar.
Sinais dos actuais tempos citadinos, tão distantes estão destes campos floridos.


(in Diário da minha Avó)

Era-me salutar - qual elixir de efeito rejuvenescedor - ouvi-la naquele monólogo, desabafo aos turbilhões, numa ânsia de se libertar rapidamente de segredos seculares; abria-se uma porta de cumplicidade entre duas vivencias tão distintas; tua mãe, já com um cabelito branco, inexperiente, perdendo a cada passo a juventude, resguardando-se nas saudade dos sons do Steinweg de parede, fazendo-me recordar os tempos em que aprendia a solfejar ao lado das teclas de marfim.
Também as lições de retórica, de latim, de história, a contagem pelos dedos de números que nunca entendi, arrumaram-me nesta terra ribatejana, sem outros horizontes que não o das searas, o do gado bravo, o dos chaparros, o das éguas dos campinos, dos vinhedos, das vicissitudes das quintas que todos os anos têm o seu ciclo de vida, inexorável, ao longo da história já longa desta família.

Devido a uma promessa descabida de sentido, deixei-me arrastar pelo alheamento da vida amorosa e era em ti, minha Maria, pequenina, saudável, lavada pelo ar do campo, que me refugiava nos meus íntimos pensamentos como qualquer flor que se esconde ao deixar de receber a luz do Sol.
Tu foste, és, a força da minha vida, o amor da minha solidão, a alegria da minha voz, o carinho do meu ser.

Ia assim protelando, com a ajuda de Juliana, o natural desejo de meu marido consumar o nosso matrimónio. Para conquistar a minha frieza Barrete, depois do acidente nas "Fiestas de San Firmín"", abandonara totalmente a boémia toureira, as noites afadistadas, as tertúlias, as bebedeiras colossais, as amantes dos rufiões e, num esforço de grande homem passou ao estudo, ao cuidado da análise, ao saber do negócio e tem prosseguido, até hoje, o bom nome das quintas, a invejável qualidade das colheitas e o prestígio dos nossos toiros.
É certo que ainda não perdera o hábito de enfrentar os bichos do seu curro, em festas de benefício, com bandarilhas vistosas, coloridas, que o seu braço esquerdo tão bem sabe colocar no cachaço dos bichos.

Agora eu ali tinha Juliana em confissão, alheando-se dos preconceitos que regem as diferenças entre patroa e empregada; bebia-lhe as palavras turbilhonas com avidez, como quem estava a aprender o outro lado da vida; Deus pedia aos homens que se amassem e, sendo Amaro um seu humilde servidor, estava perdoada e até justificada, mesmo aos olhos de Cristo, a sua paixão arrebatada.

"E na noite seguinte, minha senhora, não me contive...".

Aguardara que o silêncio dominasse o casarão, vestiu uma capa escura, a do capuz, atravessara a sala onde a lareira consumia restos de freixo e, pé ante pé – com receio de acordar o senhor Purificação que se deixara adormecer quase encostado à sua máquina de escrever Olympia, com o cachimbo pendente entre os lábios – sumira-se pelo portão das traseiras sem fazer chiar as fortes dobradiças.

"Felizmente que a chuva tinha passado..." mas estava uma humidade tal que se entranhava nos ossos. Sempre encostada às grades do jardim, depois às paredes das primeiras casas da aldeia, com receio das sombras, com medo do "maluquinho que quer toda a gente na cama às dez, como a senhora sabe"; mas a igreja lá estava recolhida na escuridão da noite como se a esperasse para a última reza às almas defuntas.

"Peguei na chave da porta da sacristia e entrei sem pisar o chão que geme". Conhecia o caminho; era virar logo à sua esquerda e percorrer o pequeno corredor para se entrar na nave. À direita, a quase sumida luz do círio, projectava sombras dos músculos definhados de Jesus, na parede branca do altar.

E quando se encaminhava para o baptistério, contínuo à capela da Virgem iluminada por uma pequenina vela vermelha, ponto de luz perdido na atmosfera negra e fria da nave, viu Amaro.

"Quase fiquei sem poder respirar, minha senhora!".

O padre, ajoelhado, de mãos juntas, de olhar fixo na Virgem, abrindo de vez em vez os braços para os voltar a recolher numa admirável ternura de homem; e as suas preces, ditas quase em pensamento, ecoavam pelas paredes da igreja como numa missa cantada "à cappella" por vozes de anjos.

Juliana tinha querido retroceder, cheia de temor a Deus pela audácia de ter de se mostrar a um dos seus filhos tão devotos. Mas foi impelida por uma onda de sangue que lhe encheu o coração e, afoita, cheia de coragem e esperança, chegou-se ao padre.

Amaro virou-se para ela. O rosto iluminou-se-lhe duma luz intensa e, depois de olhar para a Virgem com um ligeiro sorriso, de quem há muito espera um milagre e o vê enfim concretizado, dissera-lhe:

"- Porque te demoraste tanto Juliana? Esperei longas noites por ti!".

"E foi assim, minha senhora, a minha primeira experiência de amor. Os meus sentidos encararam a realidade da criação. Fui possuída por uma paixão intensa, sofrida, rezada. Amaro – enfim! podia dizer "o meu Amaro" - seria para sempre o homem da minha vida, o santo do meu altar, a testemunha da minha virgindade, a riqueza do tesouro mais nobre que tenho em mim: o de perder os sentidos nos momentos em que saem destas entranhas lágrimas de gozo e fé.

Minha senhora, D. Maria; não deixe os anos fugirem-lhe. A senhora é casada com um homem, eu tenho um amante santo, e os Santos glorificam a Carne..."