CARTAS
da
Maria da Purificação Jesus (4)
(publicitária portuguesa no Vietname)

 


2(in Diário da minha Avó)

"... numa forma sublime. Senti-me uma outra Juliana, uma outra mulher. Conhecia, enfim, o prazer da Virgem Mãe, bendita Mulher entre todas as mulheres, pois Amaro, num gesto solene, destapou-me os cabelos húmidos e soltos, afagando-os com a mão que estremecia...".

Então o padre pediu a Juliana que se ajoelhasse junto a ele e ambos, assim unidos, ofegantes, os corações desordenados, as mãos trémulas que se juntavam numa prece uníssona, juraram perante a Santa Imagem que os olhava com ar cúmplice, que se uniriam para sempre até que a morte os separasse; o corpo de um seria o corpo do outro. A Carne de ambos era indivisível; partilhariam os sofrimentos, as alegrias, as lágrimas de um desgosto;  o prazer da posse e a dádiva da entrega seriam para sempre renovados, e aquele solene momento que ambos estavam a viver era apenas testemunhado por Deus. Entregavam-se ao Senhor. Pertenciam-lhe.
As flores de Santa Teresinha no altar da Virgem, aplaudiram com frenesim; homenageavam a vitória do amor glorificado.
Amaro, com os olhos brilhantes, persignou-se e, pressuroso, ergueu-se e encaminhou-se para a escada que subia ao santuário do amor.
Fez um significativo gesto a Juliana, pedindo-lhe cuidado com o ranger dos degraus.

O quarto de dormir, onde o padre se recolhia para o descanso dos justos, arrumava uma simples cama de ferro com colchão de palha que todos os dias era remexida por Fortunata, uma pequena mesa onde pousava o Novo Testamento, um simples castiçal duma única vela e, na parede fronteiriça à cabeceira, a grande cruz com um Cristo olhando para o Céu.
Decerto enviada pelo Altíssimo, voltara a chuva açoitada pelo vento, com ruidosas batidas na vidraça; e inesperados clarões de relâmpagos, logo seguidos de tremendos trovões, abafaram os ruídos da ferragem da cama.
Ambos se iniciavam na arte do êxtase; ele mal sabia como desapertar-lhe os pequeninos colchetes da camisa e ela apenas lhe desprendeu o cordão do hábito. Mas a natureza, matriarca suprema da criação, ensinou-lhes a desbravar caminhos.
"Juliana, gratia plena, dominus tecum. Sancta Virgo virginum" disse-lhe Amaro adivinhando-a já nua. Os relâmpagos iluminavam aqueles corpos agarrados num abraço forte, onde os seios dela se moldavam ao peito dele; e Juliana, com gemidos lânguidos, pedia-lhe como agir para receber no seu corpo de mulher aquele corpo de homem bem-amado, santificado, cheio de graça e de desejo. Que se beijassem de alma inteira, que se dessem um ao outro. Ela queria ofertar-lhe a sua virgindade, faze-lo eternamente feliz, senti-lo dentro dela para todo o sempre e para isso aí a tinha inteira, naquela boca insaciável de beijos, naquelas pernas que se abriam para o receber e, num grito de dor abafado por um forte trovão; "Oh! minha senhora, senti-me entregue a Deus de corpo e alma".
Amaro, lívido, tímido, por várias fezes rezara fervorosamente "benedicta tu in mulieribus" e, no auge do prazer divino, desfeito pala surpresa da graça recebida, agarrou-se a Juliana com uma força brutal como se a quisesse reduzir a uma hóstia consagrada.

A trovoada parecia afastar-se. Os dois, deitados lado a lado, com um cobertor de papa a tapar a nudez mútua, sem forças, desfeitos pela entrega devota, olhavam para o crucifixo parcamente iluminado pela manhã que despontava, quando sentiram uma penugem acariciante a seus pés; era o impertinente "pirilau" com o pelo eriçado, cheio de medo pelos trovões. Ao primeiro ribombo, num ápice felino, pulara da almofadinha de ponto cruz para se vir enroscar na cama do padre.
Juliana, pelo adiantado da hora, vestiu-se à pressa sem se cuidar em fechar os colchetes e ao despedir-se

 -"adeus amor, até logo"-, recebeu de Amaro o lençol testemunha do amor vivido; "...ainda o tenho guardado, minha senhora, nunca o lavei!".
"- Que idade tinhas tu Juliana? - perguntei-lhe".

Tinha os seus 25 anos, mais ano menos ano. "Esta relação, minha senhora, dura há 18 anos, nem mais nem menos! Há 18 anos!"
Mas Amaro já não era o mesmo padre; deixara-se engordar pelo pecado da gula, as suas prelecções não cativavam os paroquianos como no antigamente mas, mesmo assim, com os seus 52 anos, continuava a ser o mesmo amante. Encontravam-se amiúde em locais diferentes, sendo o palheiro o mais apetecido.

"...e D. Maria, minha senhora, nesta mesma tarde em que nos descobriu, tinha tido sucessivos orgasmos, como da primeira vez. Curiosamente houvera chuva e trovoada...".

 E fico-me por aqui minha filha Maria. Desde que Julianan cumpra como sempre, faço por esquecer este desaforo. Entre a minha idade e a tua apenas distam 16 anitos mas, pelas conversas que ambas temos tido, pressinto aceitares com discernimento a validade destes amores. Ainda não me habituei a essa tua vida académica e ao anticlericalismo que por essa Lisboa te andam a ensinar.
Sinais dos actuais tempos citadinos, tão distantes estão destes campos floridos.


(in Diário da minha Avó)

Era-me salutar - qual elixir de efeito rejuvenescedor - ouvi-la naquele monólogo, desabafo aos turbilhões, numa ânsia de se libertar rapidamente de segredos seculares; abria-se uma porta de cumplicidade entre duas vivencias tão distintas; tua mãe, já com um cabelito branco, inexperiente, perdendo a cada passo a juventude, resguardando-se nas saudade dos sons do Steinweg de parede, fazendo-me recordar os tempos em que aprendia a solfejar ao lado das teclas de marfim.
Também as lições de retórica, de latim, de história, a contagem pelos dedos de números que nunca entendi, arrumaram-me nesta terra ribatejana, sem outros horizontes que não o das searas, o do gado bravo, o dos chaparros, o das éguas dos campinos, dos vinhedos, das vicissitudes das quintas que todos os anos têm o seu ciclo de vida, inexorável, ao longo da história já longa desta família.

Devido a uma promessa descabida de sentido, deixei-me arrastar pelo alheamento da vida amorosa e era em ti, minha Maria, pequenina, saudável, lavada pelo ar do campo, que me refugiava nos meus íntimos pensamentos como qualquer flor que se esconde ao deixar de receber a luz do Sol.
Tu foste, és, a força da minha vida, o amor da minha solidão, a alegria da minha voz, o carinho do meu ser.

Ia assim protelando, com a ajuda de Juliana, o natural desejo de meu marido consumar o nosso matrimónio. Para conquistar a minha frieza Barrete, depois do acidente nas "Fiestas de San Firmín"", abandonara totalmente a boémia toureira, as noites afadistadas, as tertúlias, as bebedeiras colossais, as amantes dos rufiões e, num esforço de grande homem passou ao estudo, ao cuidado da análise, ao saber do negócio e tem prosseguido, até hoje, o bom nome das quintas, a invejável qualidade das colheitas e o prestígio dos nossos toiros.
É certo que ainda não perdera o hábito de enfrentar os bichos do seu curro, em festas de benefício, com bandarilhas vistosas, coloridas, que o seu braço esquerdo tão bem sabe colocar no cachaço dos bichos.

Agora eu ali tinha Juliana em confissão, alheando-se dos preconceitos que regem as diferenças entre patroa e empregada; bebia-lhe as palavras turbilhonas com avidez, como quem estava a aprender o outro lado da vida; Deus pedia aos homens que se amassem e, sendo Amaro um seu humilde servidor, estava perdoada e até justificada, mesmo aos olhos de Cristo, a sua paixão arrebatada.

"E na noite seguinte, minha senhora, não me contive...".

Aguardara que o silêncio dominasse o casarão, vestiu uma capa escura, a do capuz, atravessara a sala onde a lareira consumia restos de freixo e, pé ante pé – com receio de acordar o senhor Purificação que se deixara adormecer quase encostado à sua máquina de escrever Olympia, com o cachimbo pendente entre os lábios – sumira-se pelo portão das traseiras sem fazer chiar as fortes dobradiças.

"Felizmente que a chuva tinha passado..." mas estava uma humidade tal que se entranhava nos ossos. Sempre encostada às grades do jardim, depois às paredes das primeiras casas da aldeia, com receio das sombras, com medo do "maluquinho que quer toda a gente na cama às dez, como a senhora sabe"; mas a igreja lá estava recolhida na escuridão da noite como se a esperasse para a última reza às almas defuntas.

"Peguei na chave da porta da sacristia e entrei sem pisar o chão que geme". Conhecia o caminho; era virar logo à sua esquerda e percorrer o pequeno corredor para se entrar na nave. À direita, a quase sumida luz do círio, projectava sombras dos músculos definhados de Jesus, na parede branca do altar.

E quando se encaminhava para o baptistério, contínuo à capela da Virgem iluminada por uma pequenina vela vermelha, ponto de luz perdido na atmosfera negra e fria da nave, viu Amaro.

"Quase fiquei sem poder respirar, minha senhora!".

O padre, ajoelhado, de mãos juntas, de olhar fixo na Virgem, abrindo de vez em vez os braços para os voltar a recolher numa admirável ternura de homem; e as suas preces, ditas quase em pensamento, ecoavam pelas paredes da igreja como numa missa cantada "à cappella" por vozes de anjos.

Juliana tinha querido retroceder, cheia de temor a Deus pela audácia de ter de se mostrar a um dos seus filhos tão devotos. Mas foi impelida por uma onda de sangue que lhe encheu o coração e, afoita, cheia de coragem e esperança, chegou-se ao padre.

Amaro virou-se para ela. O rosto iluminou-se-lhe duma luz intensa e, depois de olhar para a Virgem com um ligeiro sorriso, de quem há muito espera um milagre e o vê enfim concretizado, dissera-lhe:

"- Porque te demoraste tanto Juliana? Esperei longas noites por ti!".

"E foi assim, minha senhora, a minha primeira experiência de amor. Os meus sentidos encararam a realidade da criação. Fui possuída por uma paixão intensa, sofrida, rezada. Amaro – enfim! podia dizer "o meu Amaro" - seria para sempre o homem da minha vida, o santo do meu altar, a testemunha da minha virgindade, a riqueza do tesouro mais nobre que tenho em mim: o de perder os sentidos nos momentos em que saem destas entranhas lágrimas de gozo e fé.

Minha senhora, D. Maria; não deixe os anos fugirem-lhe. A senhora é casada com um homem, eu tenho um amante santo, e os Santos glorificam a Carne..."


(in Diário da minha Avó)

Logo no dia seguinte quis certificar-se com os seus próprios olhos se o bolo de chocolate tinha tido alguma intercessão no enigmático comportamento do senhor padre Amaro. E, depois de orientar o serviço da criadagem, muito cansada pela noite mal dormida, bocejando, de grandes olheiras, abalou até à igreja.
Lembrava-se perfeitamente daquele dia chuvoso pois, ao passar pelo jardim a colher as habituais flores de Nossa Senhora, ficara com as botinhas cheias de lama.
E foi assim, enlameada, que entrou na santa casa do Senhor com o coração a bater-lhe desordenadamente, desde logo arrependida do seu desvario, da sua desventura, do seu pecado.
Mas não vira Amaro durante o tempo que estivera zelando pelo altar da Virgem.
Apenas Fortunata lhe aparecera, a buscar o cibório a necessitar de cré, cuidando em abafar-se por mor duma tosse que não a largava.
Também o "pirilau", preguiçoso, se enleou nas suas pernas num ronronar de luxúria, de rabo esticado para cima, pedindo-lhe festas.

Contra a vontade de Amaro, o bichano persistia a dormir na almofadinha da cadeira do confessionário; paciente trabalho em ponto cruz de Genoveva que representava, em tons suaves, Jesus no Jordão a receber o baptismo, e arrematava, numa letra gótica em linha escarlate; "Este é o meu filho muito amado".
Na esperança de ver o sacerdote, demorou a fazer as três cruzes na testa, na boca, e no peito, invocando simultaneamente a Santíssima Trindade. E, antes de se retirar, ajoelhou no genuflexório, esperando mais um pouco, no extremo desejo de ver aquele homem magro, sempre pálido como ténue luz divina.
Mas nada de Amaro.
Saíra por fim, desiludida e descrente da eficácia da guloseima. Chovia ainda.

"Sentia-me a mulher mais infeliz, minha senhora! Pois se o padre Amaro, todos os dias, àquela hora, deambulava pela igreja, porque não aparecera naquela manhã? Teria ficado indisposto por ela ter posto, no preparo do bolo, mais um pouco de rum velho do que o indicado pela mexeriqueira? Mas a receita no senhor Barrete tinha resultado na perfeição, a avaliar pelas tentativas de se aproximar da senhora! Santo Deus, a noite que passei! Altas horas, quando me parecia que podia enfim descansar, eis que de novo sinto os passos cambaleantes do seu marido a caminho deste seu quarto, como quem rasteja para uma fonte a saciar uma sede de séculos. Mesmo em camisa, lá o aconselhei a desistir do intento. Mas eis que sinto as mãos possantes do senhor Barrete a apalparem os meus seios como se tratasse de avaliar o amadurecimento de melões..."

"Não te esqueças Juliana que o senhor, nesses tempos, tinha também a mania do vinho."
Bem se lembrava! Que tempos horríveis aqueles!

Mas "a senhora desculpe-me!" aquele apalpão quente, envolvendo o seu peito, tinham-na perturbado tanto que sentira um calor enorme pelo corpo todo, e mal tivera forças para dizer ao senhor Barrete que o quarto dele era o número um. E, por fim, nas noites seguintes, pobre dela, naqueles seus 25 anos há muito púberes, chegava a desejar as visitas nocturnas "do seu marido nem que fosse para aspirar uma lufada de álcool".
Felizmente que o" papagaio sentinela" ao gritar "Barrete à vista...", pusera fim ao desaforo que lhe afligia todos os sentidos...
Estou a escrever-te a confissão de Juliana como uma espécie de alívio para os males que me atormentam. A tua mãe tem 34 anos e, de certo modo, revê-se naquela história da "casta diva", agora já não casta e muito menos diva.
Também me faz bem distrair-me a escrever nestes cadernos, a mudar o aparo frequentemente para manter sempre a letra perfeita e sem borrões, a escolher um estilo literário medieval tão envergonhada estou do teu moderno português, ligeiro, fresco, muito alegre, sem excessos de adjectivação.
A escola hoje, o português de hoje, é muito diferente do que aprendi – pelo menos o que recebi do professor Cardoso que vinha dar-me lições três vezes por semana.

Bom! Voltando a Juliana e ao bolo de chocolate!
Aconselho-te a respirares fundo e a beberes um refresco.
E quando estiveres preparada continua a ler-me.
Vira a página.


Truquistas

Enquanto vou de férias lembrei-me de remeter ao Luís uma série de páginas do diário da "Minha Querida e Santa Avó". É assim uma forma de estarem comigo e eu convosco.
Entretanto mando também umas fotografias; Juliana, o padre Amaro numa missa campal, e alguns trabalhadores duma das quintas que mais tarde se veio a descobrir pertencerem a uma organização clandestina.
Beijos mil da vossa.
Maria, Saigão, 26 de Abril de 07

(in Diário da minha Avó)
A ida de meu marido a Lisboa, esfriou as nossas relações, tão encaminhadas estavam para lhe abrir, enfim, pela primeira vez, os lençóis da minha cama.
Juliana, que primorosamente tinha transformado o meu quarto num jardim, ao ver teu pai sair acompanhado pelos homens da PVDE, segredou-me com tristeza:
"Que pena minha senhora! Pois até as rosas abriram!".
"Corta-as Juliana e guarda-as para ti. Durante uns dias recordar-te-ão a tarde de hoje".
Imediatamente me arrependi. Atemorizou-se, coitada e, pelo seu rosto escarlate, correram lágrimas em desvario, e a pobre soluçou como uma criança.
"Pois a senhora sabe? A minha senhora sabe, viu?
"Sei, vi e ouvi. Não tenho que recriminar a tua vida pessoal, Juliana. És uma mulher que muito estimo. Só não entendo a escolha que fizeste. O padre Amaro? Francamente Juliana! O padre? Com tanto homem na terra, logo o padre?"
Pois tinha eu toda a razão. Ela própria se interrogara como fora naquela aventura com um sacerdote de grande fé, amigo e visita da casa.
Tinha então conhecido o senhor Padre Amaro logo numa das primeiras missas que celebrara em S. Miguel, muito antes de a senhora ingressar no colégio das Doroteias, em Abrantes. A extrema fé do celebrante, a sua entrega à causa de Deus, a postura em frente ao altar, os seus cuidados nos arranjos da igreja, a tez morena e bem-parecido, fizeram-lhe, a pouco e pouco, reforçar a sua veneração à doutrina cristã.
E quando a menina fugiu das freiras – por abominar a clausura e as festinhas que recebia duma mestra para a recompor do esforço de vinte Ave Marias – já ela, nas horas vagas, se comprazia em auxiliar Fortunata e Genoveva, nos inúmeros afazeres na interior da casa de Deus. Não era de monta o seu auxílio mas punha particular enlevo no altar da virgem e, em dias de confissão, perfumava de alecrim o confessionário.

Um dia o senhor padre Amaro – já nessa altura habitual visita da casa - chegou a dizer, num dos grandes serões, que ela era de grande utilidade e até lhe pedia parecer sobre as pinturas que queria mandar executar nas paredes laterais da igreja tão maltratadas pela humidade; "A pintura pode fazer pelo analfabeto o que a escrita faz pelos que sabem ler" dizia Amaro parafraseando o Santo Padre Gregório Magno.
Quando a senhora regressara do México, grávida da menina Maria dos Remédios, já ela sentia, pelo sacerdote, uma admiração que ultrapassava o denso prazer de amar a Deus; era uma dupla entrega, espiritual e física, ao Criador. E, quando Amaro, depois da missa, em genuflexão, numa interiorização plena, se recolhia no altar da virgem, era ela, Juliana, que se sentia no lugar da mãe de Cristo, tapada com aquele manto azul cheio de estrelas, com o terço e a auréola de rosas de Santa Teresinha.

Sentava-se então num dos bancos, deixando-se acariciar por aquelas interiores palavras devotas que o padre dirigia ao altar, embevecida, embalada, rodeada de música celeste. Um dia Amaro, terminou abruptamente a oração, persignou-se e, ao erguer-se, reparara nela que lhe enviava um olhar de submissão e de entrega. "Ainda por aqui Juliana?"- perguntou-lhe. "É verdade senhor Padre Amaro. Sinto-me atormentada pelo Demónio!". E Amaro, num repente, disse-lhe com ar severo: "Isso cura-se Juliana, em confissão. Entretanto deixe de cruzar as pernas na Igreja. É pecado!"
Sentira-se uma desgraçada, já descrente da sua juventude, vendo passar os anos sem sentir um carinho de homem, um beijo, uma ternura mesmo que de santo fosse...
... e um dia, numa conversa entre duas velhas mexeriqueiras que, depois da missa de domingo, perdiam horas, sentadas  a conversarem, ouviu que o marido duma delas persegui-a numa grande actividade amorosa, quase diária podia mesmo dizer-se, desde que comera um bolo de chocolate cuja receita recolhera dum livro de doces afrodisíacos.
Que Deus lhe perdoasse, "mas, minha senhora, não descansei enquanto não obtive a receita".
E foi exactamente a tal velhota casada com arrebatador marido que lha indicou, como remédio santo:
Chocolate preto, cacau, natas batidas, leite, manteiga, gemas e claras, açúcar em pó e baunilhado, farinha, canela, e rum velho.
As quantidades de cada produto variavam conforme o número de pessoas.

"A senhora lembra-se de lhe ter pedido autorização para confeccionar um novo bolo, o mesmo que hoje todos comem em dia de festa? No dia de aniversário de seu pai, todos o consideraram o melhor bolo de chocolate do mundo. O senhor Barrete e o Padre Amaro repetiram-no três vezes.

À minha esperança talvez passasse a haver um raio de luz, porque durante essa noite, seu marido foi muito difícil de suster, tal o arrebatamento. Eu pouco ou nada dormi.
Foi por causa dessa noite que comprei o papagaio. Com a sua permissão minha senhora. Lembra-se?"



Truquistas

Desculpem-me por estas crónicas de interesse nulo que o Luís vos tem feito chegar aos vossos computadores.
Mas é uma forma de estar convosco e com esse longínquo Portugal.
E é reconfortante ter, da vossa parte, notícias e sugestões.
Julgo que a maior parte daqueles que me escrevem são publicitários e alguns até se admiram como nesta Republica Socialista, a publicidade está tão evoluída.
Eu não sei muito bem o que quer dizer "publicidade evoluída", e pergunto-me se não é Portugal que ainda trabalha como no tempo do "antigo regime".
Não se esqueçam que os americanos, após o fim da guerra, deixaram por aqui vários presentes; milhares de bombas por explodirem, Coca-Cola, hambúrgueres, t-shirts, jeans (que passaram a ser as delicias das mulheres) e... o gosto da publicidade.
A "importação" da publicidade americana é uma realidade comum.
Ainda subsistem cartazes da revolução... mas apenas para "americano ver".

Recebi também muitas sugestões para a decoração da nossa nova casa cuja planta, por mim desenhada, foi dada à estampa na edição da Truca da semana passada.
Agradeço a todas (foram apenas mulheres que mandaram um rol de desenhos e até pequenas amostras de tecido para cortinados) mas não se esqueçam que estou num país asiático e, até certo ponto, as tendências de decoração têm que, por defeito, assumirem um gosto oriental.
De todas as sugestões que recebi achámos imensa graça (Maria do Céu também viu) a um pequeno "caderno de encargos", com fotografias tipicamente regionais onde, inclusive, se pode admirar numa varanda uns vasos com sardinheiras, Santo António de azulejo e janelas com tabuinhas. É, com certeza, uma casa portuguesa onde tudo fica bem, para lá do pão e vinho sobre a mesa.

Cláudia (que desta vez se fez acompanhar por uma colega inglesa que trabalha na mesma empresa) já visitou a nova casa e gostou do tamanho do seu futuro aposento, deixando-se fotografar no quarto de banho (a banheira serve-lhe às mil maravilhas).

Mafalda esteve um pouco adoentada. O médico é de opinião que minha filha não deve ser cuidada dentro duma redoma; tem que contactar com a natureza, respirar o ar de Saigão (carros e motos, aos milhares, durante o dia inteiro), contactar com os micróbios, etc. Uma lição que me pôs boquiaberta; estou a ser má mãe? Não estou a ser para a minha Mafaldinha o que ela merece?

Antes de se começar a trabalhar no novo projecto, devo fazer umas férias. Decidi dar uma boa volta por este encantador País e talvez, porque não, ir até à Tailândia que Céu reafirma ser um encanto.
Naturalmente que não vou levar o computador o que implica não haver crónicas.
Mas também é uma forma de se verem livres de mim por algum tempo.

Beijos.
Maria, Saigão, 20 de Abril/07


Mais uma semana de muito trabalho.

Uma breve cartinha para vos mostrar (com certo orgulho, digo-vos), o desenho que fiz no portátil e que pretende representar o apartamento de que vos falei sumariamente na semana passada.

O quarto reservado para Cláudia é o de maior área (sempre é a Cliente, não é verdade?) sendo o meu e de minha filha o mais pequeno. Não me importo! Jill assume o papel de direcção da nossa empresa "Mercado em Movimento" e há que ter também algumas atenções pela sua posição. A cozinha e o quarto de banho, são duas divisões obviamente colectivas mas, sendo o meu quarto o mais pequeno, parece-me justo pagar menos do que ela. O quarto de Cláudia é pago pela empresa, não obstante ser esta divisão ocupada apenas uns dias, mês sim, mês não.
É pena ler-se na planta o que chamo de "espaço inútil" porque, de facto, o projectista não pensou muito bem na utilidade daquela grande área; pode vir a ser de alguma utilidade quando minha filha iniciar a aprendizagem de bicicleta. Veremos!
Aqui, nesta 145, que adivinha o seu fim com a nossa saída, já todos os colegas sabem do projecto. E as vénias são mais prolongadas, como se fossem necessárias cortesias suplementares para nos fazerem crer da admiração (?) que têm por nós.

Eu, Maria, não tenho razão de queixa. Sempre fui estimada e bem tratada. Do account predador, que tudo tentou para se aproximar de mim, nunca mais ouvi falar desde a sua saída desta agência. De alguns clientes, que também queriam levar esta vossa Maria para a caminha, especialmente o Minh Lap, o tal da "pilinha de amendoim", também foi ar que lhes deu. Até a submissa Kim, que fazia o melhor chá do mundo, e que me parecia amiga sincera nunca teve, depois da sua saída com o grupo dissidente, a amabilidade de me visitar.
Não te preocupes Maria do Vietnam. Tens um coração enorme, maior do que um dos maiores rios do mundo que se chama Mekong e nasce no Tibete, passa por Myanmar, Laos, Tailândia, Camboja, visita também este País e vai até ao mar da China Meridional. Um total de 4,500 Km de água. Neste teu coração Maria, em vez de água, há sangue. Estás em vantagem.

Ao longo da minha vida, incluindo os anos gloriosos ao lado de minha Avó, assisti à excepção e queda de várias estrelas. Elas brilham maravilhosamente mas, de repente, à laia de supernova, apagam-se num abrir e fechar de olhos deixando a claro a fragilidade das suas aptidões.
Mas, entretanto, enquanto brilharam, encheram-se de fama e de dinheiro. A fama vai-se mas o dinheiro, se o souberam gerir, dá-lhes o estatuto de senhores.
Mas são apenas isso; senhores, ou seja, quase nada.
Como falei de minha Avó, não resisto à tentação de vos incluir uma fotografia que ela encontrou na pequena mala que seu marido levou a Lisboa, quando se deslocou à capital a pedido de Salazar, e por lá ficou três dias.
Nos manuscritos maravilhosos do seu diário que vos tenho feito chegar e que conheço de cor por tantas vezes o já ter lido, nunca se referiu àquela foto, eventual mancha na honradez do meu avô que lhe jurava fidelidade. Foi um dia, por acaso, que Ela me disse em resposta à pergunta que lhe fiz sobre a origem daquela foto sugestiva: "Não sei minha querida neta. Só meu marido, que Deus tem, o pode saber".

Se tiverem sugestões para a decoração da minha nova casa eu, humildemente, agradeço.
E digo humildemente porque as minhas economias não dão para os honorários que auferem os arquitectos de interiores.
Maria, Saigão, 15 de Abril/07


Queridos Truquistas

No dia 7 de Março (mas no ano de 1972),  jactos americanos atiram-se a cinco MiGs do Vietnam do Norte e abatem um para amostra... e esta vossa amiga está a pensar muito seriamente em mudar de apartamento.
Mas porquê? Estarei eu com medo que me caia uma bomba em cima da casa passados tantos anos? Não, nada disso!

Parece que conseguimos um espaço magnífico junto ao Palácio da Unificação (merece a pena visitar mas não com o bilhete que vos mando), na rua Nguyen Thi Minh Khai, num edifício moderno. A renda obriga a um maior esforço financeiro em termos de despesas fixas mas parece-nos compensador.

Se, por outro lado, eu arranjar um apartamento maior e mais confortável, pensando até na hipótese de ser suficiente para mim, Mafalda, Jill e mais um quarto bem mobilado para Cláudia (mês sim, mês não, virá a Ho Chi Minh trabalhar connosco e está habituada a pernoitar no Sheraton), Maria do Céu responsabiliza-se por esta casa onde vive comigo desde sempre, bem perto da sua loja em vésperas de ser inaugurada. 

Mas, por enquanto, é assunto que fica para se pensar com conta, peso e medida.
A ideia inicial do nosso escritório de prestação de serviços "Mercado em Movimento" ficar paredes meias com o hipódromo está, portanto, posta de lado.
Mas esta semana tem sido inteiramente dedicada a fazermos "os trabalhos de casa".

Numa primeira avaliação seleccionámos duas centrais com quem iremos trabalhar. Recolhemos a opinião de vários anunciantes de peso que trabalham directamente com Centrais de Produção para nos inteirarmos das experiencias alheias.
Interessa-nos uma cláusula inquestionável; seriedade.

Quando esta minha "crónica" for publicada na Truca, já Portugal viveu a Páscoa.
Os 6 milhões de católicos vietnamitas também não se esquecem destes dias santos, reforçados com a abertura deste governo, principalmente depois da recente visita de Dom Pietro Parolin, a Hanói, no mês passado, para por ponto final nalgumas divergências entre a Santa Sé e o Budismo. O comunicado de ambas as partes que, como é costume, antes de ser dado à estampa, já toda a gente conhece, diz em estilo conciso "que foi dado um novo e importante passo para a normalização das relações bilaterais".

Para mim é uma data célebre e enraizada na história da minha família.
Foi num almoço de Páscoa, em 1923 que minha avó, então com 16 anos e aquela grande coragem que a acompanhou até à morte, confidenciou a quem a quis ouvir que estava grávida de minha mãe.
A grandeza da sua alma petrificou os que saboreavam o delicioso cabrito. E o padre Amaro – que nessa altura já andava enrolado com Juliana – disse "que decerto tinha concebido por Obra e Graça do Espírito Santo".
Oh! Minha Querida e Santa Avó! Todos os dias me recordo de Ti! Foste uma verdadeira Santa. E para Santa como tu foste, não te fazem falta religiões, episcopados, concílios, confissões, milagres, beatificações, canonizações, promessas.
Foste heroína. Foste mulher e mãe.
Basta-te isto: a humilde homenagem que te presto diariamente ao mostrar a tua bisneta os retratos que tenho de Ti.
Mafalda, minha filha, tanto te ama tua mãe!
Maria, Saigão, 7 de Abril/07  

 


        Queridos Truquistas

As perspectivas de alugar um pequeno apartamento para as nossas iniciais instalações estão muito bem encaminhadas. Jill Murdok (Directora e amiga), Ngo Dinh Diem (financeiro) e esta vossa amiga (subdirectora e coordenadora) devem sair em definitivo desta 145 Worldwide para o final do próximo mês de Abril. O local do apartamento pode não ser dos mais famosos (fica perto do hipódromo) mas os 55 mil Dongs de renda mensal são convidativos.
Para esta semana mando-vos uma linda página do "Diário de Minha Avó" (preocupada com minha mãe) e uma fotografia de Maria do Céu experimentando um dos modelos que irá vestir no dia de inauguração da sua loja.
E não resisto a dizer-vos que estou a ficar traumatizada com a beleza de minha filha e a recordar com mágoa aquelas duas "velhas" inglesas que, numa mesa, com chávenas de chá preto já bebido, me disseram: "Tem uma netinha encantadora"
Parvas!
Maria, Saigão, 23 de Março/07



(in Diário da minha Avó)

 O meu marido regressou três dias depois.

A sua ausência tornou fria a promessa do primeiro encontro a sós, entre mim e ele, há tempos sonhada entre a distância estreita e lúgubre do comprido corredor do "casarão". Os lençóis de seda estavam escolhidos e guardados na terceira gaveta da cómoda, com um raminho de cheiros entre eles. Os botões de rosa do jardim prometiam-se abrir na noite de núpcias.

Ao longo dos anos desta escrita que te dedico, tenho deixado algumas páginas em branco. Para quê escrever o dia-a-dia, a sombra das árvores, o cheiro da terra molhada pela chuva, o cavalgar dos campinos, o curto voar das joaninhas, o prazer de me sentar na cadeira de verga, no alpendre, depois dum dia de trabalho, e olhar os campos ora doirados, ora verdes, e ali ficar na contemplação do que vejo e do que penso.

Mas, minha querida filha, esta página não pode ser remetida para o esquecimento porque vai falar de ti. Bem sei que a lerás depois do meu último suspiro, mas quero que sintas, ao lê-la, que as minhas recomendações não são letra morta. Ainda no mês passado, quando vieste por dois dias, com os teus livros de estudo e uma sacola cheia de papéis inúteis, disse-te, por entre o vinhal de bagos já rosados, que tinhas tudo na vida, respiravas o ar mais puro do mundo, eras bonita e aplicada estudante, mas necessitavas de meditar um pouco e sentires bem nos pés o terreno que pisavas 

"Não se preocupe minha mãe. A sua filha sabe-se cuidar. O que se diz, o que se ouve, tem muita parra mas pouca uva".

Não é verdade minha Maria dos Remédios! Julgo haver uvas em quantidade exagerada!

Quando teu pai regressou de Lisboa vinha muito preocupado. E, no dia seguinte, pelo meio da manhã, à sombra duma azinheira, contou-me o encontro com Salazar; este confidenciou-lhe que tu, Maria, minha filha, estavas a deixar-te levar por más companhias, por grupos de malfeitores, por contestatários ao regime do nosso querido Presidente do Conselho de Ministros que, com a seriedade de todos os santos juntos, tinha tirado este Portugal da iminente miséria. A guerra que arrasa a Europa está-nos a passar despercebida graças ao seu dom de grande estadista. Que se devia olhar para a grandeza dos latifúndios, para o florescimento da economia, para as novas igrejas e uma ou outra nova escola, sentir o respeito com que o Mundo nos admirava, especialmente depois da Exposição do Mundo Português, há dois anos, tu foste connosco Maria, já não te lembras? Já te esqueceste da maravilha do nosso Império? Aquele colosso de culturas, obra grandiosa no coração de Lisboa, capital deste País pobre mas honrado, onde o homem do campo, ao fim dum dia de trabalho, chega a casa de enxada ao ombro, de camisa impecavelmente limpa, e é recebido pelos dois filhos pequenos que correm para ele cheios de alegria enquanto a bonita e virtuosa mulher, de ar trigueiro, já com a mesinha posta, retira da lareira a panela de ferro com o caldo verde a fumegar. Não corrias perigo, disse, mas a PVDE segue os teus passos e Ele, Salazar, não é Deus, não pode estar em todo o lado para te apartar de qualquer contratempo; "...isso é assunto que diz mais respeito ao Cardeal Patriarca", teria dito a teu pai com bonomia.

Antes de se despedir com um grande abraço, ainda o alertou para um certo desconforto que pairava sobre o Ribatejo, mais relacionado com os trabalhadores da lavoura, pois também por aqui, nesta gente que trabalha de sol a sol e que nós tão bem cuidamos, consta haver um ou outro instigador por melhores condições de vida. "Barrete, está atento e não te esqueças: manda quem pode, obedece quem deve! Os meus respeitos a tua mulher e tem uma conversa com tua filha, conversa séria, como deves saber faze-la. De pai não austero mas firme; assim não há rotura de geração."

Nestes últimos quatro dias em que estiveste connosco nada disto te disse, Maria; primeiro na tentativa de descobrir aquela minha filha que está para lá do chapéu de palha cheio de papoilas, depois por ter morrido, no dia seguinte ao da tua chegada, o S. Gabriel, lindo cavalo negro, primeira das primeiras ofertas de meu marido, e que tantas alegrias nos deu; tinha apenas 18 anos e sucumbiu a uma grande inflamação na garganta que, com o tempo, e talvez sem tratamento adequado, se espalhou pelo corpo inteiro.

Mas, em compensação, assististe ao nascimento dum novilho ("mãe, mãe, a vaca pariu um bezerro") gritaste tu, de longe, a correr para casa, afogueada e jovial.
Mais um toiro para a próxima ferra. Mais um exemplar da nossa ganadaria.
Hoje mesmo, pelo fim da tarde, recebi uma carta tua. Levou 4 dias de Lisboa a S. Miguel de Rio Torto.

Pedes-me para baptizar o novilho de "Islero", "Islero Segundo".

Leste-o num panfleto que dava conta das recentes "ninhadas" dos Miuras, e consideras nome próprio para macho desta ganadaria, nome atrevido, nome que rima com "salero" e, como tal, "deve vir a tornar-se num animal nobre, galante e airoso. Diz ao pai! Sou eu que mando! Beijos da tua filha. Nota; o novo professor de Silvicultura é um encanto".

"Islero? está bem! – sorriu meu marido – Quanto a airoso veremos daqui a quatro anos, quando entrar num redondel".


Sem tempo para tudo.

 Hanói quer "negociar". Ainda não acredita no que está a acontecer nesta delegação.
Sabe, isso sim, que vai ficar sem a directora, sem um bom financeiro, e sem a portuguesa. Somos apenas 3 profissionais a sair desta casa.
Peço desculpa aos Truquistas pela pobre crónica desta semana.
O espaço habitual vai ser ocupado por fotografias, por sinal uma ou outra já antiga.
Podem apreciar Cláudia após ter abatido um avião militar.
Estou eufórica.
Até me esqueço de vos mandar as habituais saudades.

Maria, Saigão, (sinceramente não sei em que dia estamos) 2007


Aguentem-se, meus Queridos, com uma crónica feliz.

 Quase preparado o "dossier" da despedida.

Jill já possui o bilhete da passagem para Hanói; parte na 4ª feira, no voo das 12,50 horas, levando na bagagem o seu computador, seis exemplares em suporte informático e em papel, e uma pequena mala com duas ou três mudas de roupa. Espera estar na capital dois dias, tempo suficiente para desbobinar as divergências, os pontos de vista desiguais, as alternâncias de poder que nos deixam, aqui em Saigão, numa instabilidade profissional e emocional. E, por fim, antes da Administração e Direcção terem tempo de se refazerem da "bomba", informar, sobriamente e sem ares de heroína, que apresenta a sua demissão e a de mais dois ou três profissionais que fazem questão de a acompanhar num novo projecto de trabalho. Um de eles sou eu.

Não referirá uma palavra sobre o nosso novo cliente Chinês. Não irá revelar que concorreu àquela grande conta macaense com "remetente pseudónimo" e que os criativos que elaboraram a estratégia que nos conduziu à vitória, foram contratados nas centrais de criatividade. Da 145 Worldwide, constava apenas, em envelope fechado para abrir numa posição de boas probabilidades de short list, o nome de um grupo de dissidentes, ambiciosos, cheios de vontade de trabalhar e carregados de confiança no futuro.

Vamos fazer a nossa pequena "central de coordenação" (neste contexto o nome de "Agência de Publicidade" não faz sentido) para se responsabilizar totalmente pelos produtos que este grande cliente deseja promover neste País.

Cláudia (simplesmente Cláudia), e toda a administração da empresa de Macau, aceitaram com aplausos a nossa filosofia de trabalho; caber-nos-á sempre a responsabilidade de todas as estratégias aconselháveis para os novos produto (são cinco no total), seleccionaremos consultores de Marketing altamente qualificados, e cada um deles trabalhará apenas no mercado de que perceba realmente, ou seja, o responsável pelo mercado dos brinquedos não é seguramente o mesmo responsável pelo mercado onde se insere a marca de electrodomésticos que vamos lançar. Com esta teoria, o cliente tem um atendimento personalizado, ou seja: - vamos lá ver se me sei explicar – os profissionais das "Centrais de Marketing e Estudos de Mercado" que viermos a seleccionar, ficarão tão estreitamente ligados aos produtos deste cliente que passam a fazer parte duma atitude global, desde a área geográfica aos ambientes e programas de marketing (cada macaco no seu galho, como se costuma dizer). Os resultados dos estudos que irão complementar os conhecimentos profundos que o cliente tem do Vietnam e particularmente de Saigão, serão os ingredientes das diferentes "receitas" duma estratégia criativa e de comunicação.

Posto isto, e aprovados os diferentes planos, abrem-se as portas às "Centrais de Criação e Produção" que nos garantam a eficácia, o melhor esforço financeiro e a melhor qualidade.

O Cliente espera ter, ao fim de três anos, uma quota de 18% de mercado.
Nada mau!

Vocês, Truquistas, sabem haver milhares de definições de marketing; pois nós vamos denominar mais uma para o nosso projecto. A proposta foi desta vossa amiga e tenho boas razões para pensar que vai ser a escolhida; "Mercado em Movimento".

Que vos parece?

Quase não vejo minha filha nesta azáfama que me preenche de manhã à noite. Mas sinto-me felicíssima; a minha responsabilidade profissional, a partir de agora, não passa por "a secretária da direcção". E estou desde já a preparar o meu discurso de despedida para ser lido em voz alta quando sairmos definitivamente desta 145 Worldwide.
A seu tempo darei mais detalhes mas, por agora, duas palavrinhas de homenagem a Maria do Céu, que tem sido uma segunda mãe para a minha queridíssima Mafaldinha. É a pura das verdades! Sem ela eu não me podia dedicar a este apaixonante projecto.

A Céu merece todas as felicidades do Mundo. A sua loja de moda está praticamente concluída. As mulheres de Saigão vão ficar riquíssimas com o magnifico gosto desta minha e vossa amiga.
Homenageio-a na crónica desta semana ao lado de minha filha, e uma foto duma das mulheres vietnamitas que espera ansiosamente pela fashion ocidental.
Maria, Saigão, 18 de Março/07


Eu Truco, Tu Trucas, Ele Truca
(o problema é que Truca não é verbo !)

 É muito raro a Minha Querida e Santa Avó datar os seus escritos.
Mas desta vez dá-me umas indicações preciosas para, num contexto histórico, poder circunscrever uma época, para mim distante.
Na página desta semana – que dá continuidade a uma outra já publicada – refere ter 34 anos o que implica estarmos em 1941, uma vez que nasceu em 1907.
Minha mãe, com 18 anos, encontra-se a estudar em Lisboa.
O Estado Novo está seguríssimo e a 2ª Guerra Mundial tem dois anos de mortos.
A Guerra Civil Espanhola (que referirá mais lá para a frente) tinha terminado em 1939, permitindo que Franco e Salazar se encontrassem no Alentejo para caçar.

Entretanto a minha querida Mafalda Superbaby (não há adjectivos para a sua beleza) está agora com 4 meses.
Segue foto e beijos; Dela e meus.
Maria, Saigão, 9 de Março/07

(in Diário da minha Avó)

Fiz algum esforço para desvalorizar o que acabava de descobrir; aquelas palhinhas na sotaina negra de Amaro, denunciadoras dos seus amores com Juliana, não podiam destroçar a minha noite, a nossa noite, adivinhada e sussurrada naqueles mútuos afagos que contivemos no ocasional encontro no corredor, antes de descermos para a sala de jantar. Era visível no meu marido, naquele novo homem que o meu desprezo de anos tinha modificado, a mesma ansiedade; ambos queríamos glorificar a vitória do amor e seria no meu quarto que, rendida, receberia o meu homem, e me deixaria levar para o leito, e me despiria para ele com a timidez própria da inexperiência que nem mesmo a natureza podia remediar.

Tu, querida filha, já estavas na faculdade, em Lisboa, com os teus risonhos 18 anos cheios de vida e esta tua mãe, com 34. E, enquanto ouvia ao longe as conversas à mesa de jantar e olhava para teu pai que me sorria, fui levada à tarde soalheira de Outubro de 1923 no dia em que tu nasceste de surpresa, um mês antes do previsto, naquele terreno de erva para pasto. Como sabes, exactamente no local onde te amparei com a ajuda de um campino que passava, estão sempre flores que planto ao sabor das estações; gipsófila, lírios, violetas, camélias, goivos, cravos, amores-perfeitos, calêndulas, begónias, margaridas, tulipas, um mundo de cor que se destaca desde longe. Já te pedi – e aqui deixo escrito para que nunca de esqueças da minha vontade – o favor de manteres sempre florido o local onde nasceste.

A voz do padre Amaro que tinha perdido, com os anos, a frescura dos seus primeiros tempos de pároco em S. Miguel, fez-me acordar do sonho; ele reflectia se era necessário à salvação, o culto de Maria.

- Meu querido padre! – disse teu avô – O senhor, desde o dia em que bateu a esta porta, foi recebido como amigo, não como padre. De padres estou eu farto, sem desfeita, claro está! Deixe-se de cultos, homem! Basta um Deus para os bem-aventurados. Olhe! A propósito de bem-aventurados; a minha filha e o meu genro, que o senhor uniu, ainda não se "aventuraram"em demanda dum varão para estas quintas...

Eu e Barrete olhámo-nos, apaixonados. Podia ser essa a noite; bastava-nos ficarmos unidos, suados, beijando-nos pela louca permuta da entrega, durante um pouco, não muito talvez, mas uns momentos de silencio, sorrateiros; cruzaria as pernas abertas ao redor da cintura do meu marido para facilitar o caminho ao sémen fresco, e podíamos adormecer assim, unos, eternamente inseparáveis e ser de novo mãe, com paixão, com sentimento e fé.

Nestes pensamentos duma jovialidade própria da tua idade, ouvi, distintamente, vindo da cavalariça um relincho do S. Gabriel.
O rafeiro, lá fora, ladrou por duas vezes.
O imponente Anacleto, gato persa duma requintada vaidade, sumiu-se num ápice.
E Juliana entrou na sala anunciando que dois senhores, de fato preto, gravata preta, chapéu preto, pretendiam dar uma palavrinha ao senhor Barrete Salvação de Jesus.

E assim foi: meu marido afastou a cadeira e levantou-se. À minha frente ficou a descoberto aquela natureza morta com os horríveis cornos brancos da cabeça embalsamada dum toiro.
Os senhores eram da PVDE, a polícia política deste País, a polícia do nosso querido Salazar que Portugal adora; pediam desculpa pela hora, tinham vindo de Lisboa, nessa mesma manhã, mas o mau tempo, as más estraditas e ainda um almoço um pouco demorado, enfim, pediam desculpas mas, "- o senhor Barrete sabe onde encontrar um homem chamado Alves Redol, escritor, visita desta casa, amigo desta família, e ainda dum tal Cipriano Dourado?".
Do Redol sim! havia um mês que o tínhamos recebido mas agora, francamente, não sabia onde podia estar; de Cipriano não fazia ideia, não conhecia, nunca tinha ouvido falar em tal pessoa.
Os homens agradeceram mas, antes de partirem comunicavam ao senhor Barrete que o Presidente do Conselho de Ministros, senhor doutor António de Oliveira Salazar, desejava ter "uma pequena conversa com o senhor Barrete. Coisa de somenos. Quando lhe fosse possível, claro está! mas se quisesse – oh sublime ideia! porque não se tinham lembrado mais cedo? – podia o senhor Barrete aproveitar a boleia até Lisboa, no "arrastadeira" novinho em folha, em alegre cavaqueira. Que tal, hem?".

A um sinal de meu marido, levantei-me e acompanhei-o ao seu quarto de vestir. Preparou uma pequena mala e disse-me.
- Salazar chama-me. O que teria Maria feito desta vez?

Oh minha querida filha! a tua leviandade e esse anarquista com quem andas, tiraram a tua mãe a sua primeira noite de amor.



Meninos Truquistas;

 Depois de uma semana de trabalho, Cláudia regressou a Macau. Profissional competente, sempre bem-disposta, sorri de noite e de dia e, para mim, tem um valor muito especial: é portuguesa, filha de pais portugueses que imigraram para Macau tinha ela poucos meses de nascida. Por lá fizeram a sua vida numa inicial dificuldade já esperada; enfrentar uma cultura tão díspara, não lhes foi fácil. A adaptação é lenta e, por vezes, dolorosa. Trabalharam para a filha e tiveram a noção exacta da importância da China, como grande potencia a médio prazo. Nunca deixaram de lhe falar em português, o português de Lisboa, e Cláudia assim foi nascendo no seio da língua pátria cultivando-se em escolas onde aprendeu o mandarim, o inglês e alguns dialectos regionais. Em Pequim (onde concluiu licenciatura com elevada nota em Relações Internacionais) enamorou-se dum artista plástico, tímido, ainda sem obra de vulto, adepto da religião muçulmana, mas com grandes projectos para encetar uma vida de arte e de saber.
Foi de pouca duração o relacionamento; Cláudia apercebeu-se que os projectos, plásticos e tímidos, de artista vocacionado para uma minoria religiosa, não tinha futuro numa jovem que queria correr e abraçar o Mundo sem esperar pelo dia seguinte. Um "adeus até ao meu regresso", uma estada de semanas em Xangai, mais um pequeno período em Hong Kong e finalmente os pais, o idioma português e Macau.

Não lhe foi difícil arranjar ocupação na grande empresa onde se encontra; para lá do profundo conhecimento de idiomas, comprometeu-se em não procriar nem um filho para amostra e, se o fizesse, seria de imediato despedida com justa causa. Os incentivos financeiros para encorajar apenas um filho não deram o resultado esperado e, mais dia, menos dia, naquele gigantesco território, não há um centímetro quadrado para uma pessoa se movimentar.

Para o mês que vem voltará, ou vamos nós a Macau. Gostei muitíssimo daquela cidade.
Aqui na agência ficámos com muito trabalho...
... tanto que, num informal serão em casa de Jill, (Maria do Céu ficou com Mafaldinha), pensámos ambas que podíamos mandar às ortigas a 145 Worldwide, arranjar-mos um pequeno escritório de coordenação e, a partir dele, seleccionar as melhores centrais de criatividade, de media, de produção gráfica, de cinema, de rádio, de todo um mundo novo de janelas de comunicação.
Cláudia tem que ser convidada para esta nossa ideia que me parece genial; fazer parte da nossa pequeníssima equipa, sem ser necessário sair da multinacional onde se encontra. Uma entreajuda remunerada, naturalmente.

O pior vai ser Hanói, a sede. Mas este novo grande cliente foi trabalho de Jill, quase às escondidas. O mérito é nosso (digo nosso porque também dei uma ajuda).
E sabem amigos! Não me estava a ver ser delator de ninguém.
Por outro lado, já estou farta dos directores criativos, dos directores de arte, dos produtores de televisão e de rádio, dos da arte final, das secretárias, das tricas, dos tempos que perdem aos gritos nos jogos de computador, dos ordenados chorudos para uns e miseráveis para outros, enfim, Truquistas, farta, fartíssima.

A minha querida filha ainda não diz uma palavrinha mas o seu olhar e o seu sorriso comunicam comigo. Está cada vez mais linda.
Para esta semana mais duas fotos de Cláudia para a ficarem a conhecer melhor.
(Não estão com saudades duma página do diário da Minha Querida e Santa Avó?)
Beijos doces.
Maria, Saigão, 2 de Março/07


Queridos Truquistas;

 Às zero horas do dia 20 de Dezembro de 1999, a bandeira portuguesa foi retirada do mastro e substituída pela chinesa. Mas em Macau continuaram a viver portugueses, com família e vida organizada, negócios prósperos e lucros somados em milhares de patacas; mas é uma pequena comunidade. Segundo julgo saber apenas 1% da população é portuguesa; poucos, mas bons.

Foi na última semana de Janeiro que esta vossa Maria, Jill e o director comercial, se hospedaram no Hotel Lisboa (fronteiriço ao casino com o mesmo nome onde perdi, numa assentada, logo na primeira noite, algum dinheirito – foi aqui, neste casino, que me cruzei com o grande amigo do Luís, o Bill, esse mesmo, o Gates, com ar cabisbaixo, provável sintoma de ter gasto uns trocos avaliados em milhões de patacas) para oficializar o negócio que, há algum tempo, e por Jill, vinha sendo prospecto; trazer para a agência um cliente de peso que deseja instalar-se com armas e bagagens no mercado de Saigão.

É a resposta da minha directora às exigências de Hanói. Se tudo for bem-sucedido, o volume do negócio ultrapassa largamente toda a facturação actual desta casa e, ainda, uma boa percentagem dos lucros da sede.

Para ficarem com uma ideia, digo-vos tratar-se de um cliente de respeito. Produz e distribui electrodomésticos, calçado, têxteis, vestuário e ainda brinquedos da última geração.

No dia seguinte ao da chegada a Macau, logo pelas nove da manhã, tive uma grata surpresa ao entrar na sala de reuniões do cliente; uma das nossas futuras interlocutoras é... portuguesa. Cláudia (que fala correctamente o português e não o patuá), magra, da minha altura, de cabelos doirados, sorriso aberto. Recebeu-nos com elegância, distribuiu-nos pelos lugares marcados e, depois dum chá magnífico e de nos apresentar a outros seus colegas, iniciou uma muito bem organizada apresentação da empresa e dos seus produtos fulcrais. Sobre os objectivos e, para nosso plural espanto, deu-nos uma lição do mercado de Ho Chi Minh (não escrevo Saigão, para não rimar com "lição") e, à laia de brief, (que completaria com informação exaustiva na visita que nos faria dias depois do novo Ano do Porco), falou-nos das características qualitativas do mercado e sua evolução, dos objectivos de marketing, das oportunidades de negócio, dos aspectos funcionais dos produtos, quer objectivos quer subjectivos, dos principais concorrentes. Abordou depois a clientela alvo (grupos socioeconómicos, em termos psicológicos e de comportamento, e seus hábitos de consumo de media), benefícios aos consumidores e a justificação desses benefícios, quer racionais quer emocionais.

Bebeu um pouco de água e passou a palavra ao colega do lado; este, sem perda de tempo, ataca os posicionamentos dos produtos, os problemas que a publicidade tinha que resolver, os tons e ambiências da comunicação, as directivas obrigatórias e restrições a ter em conta. Não prescindiriam de pré-testes de todas as peças e desde logo reforçou que, no orçamento global de cada produto, havia uma estimativa percentual para isso.

Três horas depois respirámos fundo. Fomos convidados para um magnífico almoço "Yam Tchá" (reservarei uma crónica para a gastronomia de Macau) e, depois, demos uma volta turística por esta magnífica terra; as emblemáticas ruínas da Igreja de São Paulo, outras igrejas católicas e templos budistas, as Portas do Cerco, o terminal marítimo e heliporto, o Casino norte-americano "Sands", o Palácio do Governador, o delta do Rio das Pérolas e o Centro Histórico de Macau, este incluído na lista dos Patrimónios Mundiais da Humanidade, da UNESCO. Macau é, de facto, magnificamente bela.

Pois Cláudia chegou aqui, ainda cansada dos festejos do Ano do Porco, no dia 21. Ficou hospedada no Sheraton Saigão e tirei-lhe várias fotos que irei mandando. Por hoje vão duas.

A propósito de fotografias quero dizer-vos que não gosto de me ver. Eu já não sou a jovem "plastificada" que o Luís publica na Truca. Aquelas minhas expressões têm, pelo menos, uns seis anos.

Estou com mais uns anitos em cima e adivinham-se as rugas.

Agora, as alegrias da vaidade vão para a minha Mafaldinha, cada vez mais linda.

Beijos

Maria, Saigão, 23 de Fevereiro/07




Truquistas;
Por aqui tudo calmo. Os resultados da minha viagem à China ainda não são visíveis. O segredo do negócio está exactamente... no segredo.
Os meus colegas meteram-se comigo sobre o referendo que ouve por aí sobre o aborto.
A minha Mafaldinha com uma ligeira constipação mas cada vez mais linda.
A amorosa Maria do Céu quase a fechar o negócio de compra duma loja para o seu projecto ter possibilidades de andar com êxito. Mando-vos uma foto que ela tirou. Não sei o que é. Ela também não.
Para vós ainda a continuação do "Diário" que descreve o padre Amaro.
Perguntarão! E então a célebre noite de núpcias que se aguarda há tanto tempo?
Calma! "Estou a fazer render o peixe". Mas a culpa não é minha; a "culpada" é a Minha Querida e Santa Avó.
Beijos.
Maria, Saigão, 15 de Fevereiro/07

(in Diário da minha Avó)

A data ficou gravada na minha memória até ao dia de hoje. Foi no Fevereiro de 1922, um ano antes da minha ida ao México, donde vim contigo.
Foi mais um dia de consagração para o padre Amaro, há 8 anos no imponente pedestal que todos os paroquianos lhe consagravam, e há uns dois ou três anos meu professor de latim. Naquele radioso sábado de 11 de Fevereiro, com a igreja florida de giestas e madressilvas duma primavera que se anunciara cedo, casaram Lourdes da aldeia das Carniceiras com Manuel da aldeia do Vale do Açor.
O namoro não vinha de muito longe; conheceram-se a seguir às janeiras, num bailarico da aldeia das Bicas, lugar de permeio entre as localidades dos seus berços, por entre os suores do folguedo e as apalpadelas maliciosas da juventude.
O Padre Amaro aceitou ser o celebrante desde que se respeitassem todos os preceitos do Código do Direito Canónico; comprovativos de que nada impedia o casamento, visita ao pároco da aldeia de cada um, se os noivos tinham recebido a sagrada água da fonte baptismal, se frequentavam a missa com assiduidade, e mais um rol interminável de obrigações para que "cada homem tenha sua mulher e cada mulher seu marido, e não se recusem um ao outro..."
Marcou-lhes dias separados para o confessionário e, nesses dias, com ar de resignado santo, ouvia atentamente, de cortina fechada, os pecados de Manuel e de Lourdes; esta saía a chorar, aquele envergonhado por desconhecer as primárias letras e não saber uma única oração.
Mas o alvoroço foi grande; as duas aldeias reconheciam em Amaro e na sua Igreja de Rio Torto uma bênção do Senhor, mas não entendiam perderem os seus filhos por uma birra de neutralidade.
Numa noite, ao serão, já depois do café, teu avô, com o inseparável cachimbo, diz para Amaro que enrolava um cigarro.
- Já dei ordens ao caseiro para lavar o Resignado. É a nossa oferta aos noivos que você vai casar.
- Há um grande movimento de benefício, senhor Purificação. Todas os proprietários das quintas têm uma lembrança para o futuro casal! – disse o padre.
- E esses noivos estão bem preparados, padre? Já lhes deu as primeiras lições?
Amaro fez-se escarlate. E disfarçou;
- Hoje o bolinho de chocolate está uma verdadeira bênção de Deus Nosso Senhor.
- Lá está o padre a meter Deus em tudo quanto é sitio. Até no bolo da Juliana. Deixe lá o bolo em paz e coma mais se lhe está a dar prazer!
O padre teve um disfarçado sorriso. Se eu soubesse o que sei hoje, minha filha, tinha desde logo percebido aquele disfarce.
Chegou enfim o dia do casamento. Fortunata e Genoveva com a ajuda do velho Jacinto que, de perna manca, ainda se aperaltava para dias solenes de sacristão, embelezaram o altar, deram uma limpeza a pente fino na cadeira presidencial e em todos os bancos, cantos e recantos da Igreja. Com as flores campestres a nave ficou totalmente iluminada. O Orago resplandecia. O manto azul da Santa Virgem tinha mais estrelas.
O padre, solene, no esplendor da sua alva apertada com o cíngul, estola, e casula rosa com breves bordados a ouro, saiu da sacristia trazendo o leccionário casamenteiro.
A nave estava repleta de gente. Vendo bem, minha filha, eram três aldeias juntas naquela cerimónia. O nosso padre Amaro foi soberbo; ainda me lembro dalgumas das suas palavras e da convicção com que as disse; "vós que assumis perante Deus a graça de amar e procriar, devereis ser diferente em cada dia que passardes. Tu, Lourdes, deves colocar nos teus cabelos uma flor distinta todos os dias, e tu, Manuel, ama tua mulher como se ama uma santa no altar. O vosso fruto deve ser amadurecido com amor; a teneris consuescere multum".
No fim da cerimónia (Ego conjungo vos in matrimonium in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti), depois do envergonhado beijo do jovem casal, alguém disse a Amaro para se adiantar à saída dos noivos pois o adro estava repleto de oferendas para benzer.
O padre ficou petrificado; à sua frente, depois duns campinos que ensaiavam um fandango ao som da concertina, um montão de animais pejavam o largo; uma vaca leiteira, algumas ovelhas, dois cabritinhos que saltitavam buscando a mãe que perderam, dois perus que escaparam à matança do Natal, três leitões, patos, galinhas, coelhos, um cavalo de sela e outro de faetonte, um burro com a albarda cheia de fruta e doces do Ribatejo, e mesmo ali, no primeiro degrau da entrada, uma minúscula gaiola com um grilo, não se sabe como, pois ainda longe vinham os santos populares.
E lá estava também o nosso "Resignado", boi já na reserva, farto de emprenhar as nossas vacas, mas a não se fazer envergonhado perante um fresca vitela que lhe coubera ao lado.
Amaro, rápido, aspergiu com o hissope aquele mundo, e sumiu-se para a sacristia.


Como o tempo passa;

Faz hoje exactamente um ano, hoje dia 4 de Fevereiro, que escrevi a primeira carta para todos os meus queridos Truquistas. O Luís viria a publica-la na Truca no dia 12 do mesmo mês.
Como é possível ter passado um ano tão velozmente? Tantas foram as coisas que aconteceram, qual relâmpago que num ápice ilumina a noite escura!

Lembro-me perfeitamente de quase tudo o que vos escrevi; A carta de despedida que enderecei ao meu amante, sublime pai de minha filha, quando eu viajava no avião com escala em Paris. O primeiro dia na agência, as minhas relações com colegas e clientes (lembram-se do da "pilinha de amendoim?"), a primeira experiencia num dia de filmagens, os negócios do senhor Chu-Lien, nosso antigo director comercial, a perseguição de Nguyen, o "account predador" que me queria levar para a cama, e aquela noite no "Apocalypse Now" vestida com a t-shirt "Good Night Vietnam", e o subsequente fim-de-semana ao lado de Figueiroa, aqui em Saigão, noite gloriosa de amor onde concebi minha filha que ontem fez 3 meses de nascida.

Aquela morte do pai de Mafalda, no estúpido acidente nos lavabos da aeronave que o levava a Hanói, para os braços do soprano Butterfly, não me sai do pensamento. Vi aquele meu amor partir para Portugal, em caixão adequado, sem saber que germinava dentro de mim o fruto duma relação selvagem. Onde estás tu, meu amado Figueiroa? Dava alguns dias da minha vida para que visses a nossa lindíssima filha!

Em crónicas nostálgicas, não deixei de vos confessar as enormes saudades de Portugal, da Truca, do cartaz das estatísticas, das praias do Meco, do meu corpo nu nas doiradas areias. Narrei-vos a política deste País, o seu herói Ho Chi Minh, marco histórico duma guerra perdida pelo imperialismo. E escrevi-vos sobre as prostitutas que trabalham perto do meu apartamento e da triste e velha rameira, baby-sitter do meu Bó, que levou para a cova um corpo explorado por centenas de marines.

Lembram-se do grande trabalho criativo para a alteração da bandeira deste país? Da noite em que fomos quase todos para uma discoteca, cheios de raiva e inveja por ter sido a sede em Hanói a vencedora do concurso? E depois? Lembram-se? Bebemos, "chutámos" e fomos engavetados para prestar declarações numa esquadra de costumes; vomitei para cima dos apontamentos do polícia que me chamou "grávida da merda". Ele tinha razão! foi nessa noite que tomei definitivamente consciência do meu estado de futura mãe, e foi nessa noite que me deparei com Maria do Céu, dormindo, à porta de minha casa.

Mas, para mim – com toda a sinceridade vos digo – o mais bonito de tudo tem sido a liberdade que me impus em dar a conhecer o "Diário" da minha Querida e Santa Avó; cinco cadernos que tantas vezes já os li. Respiro em sua homenagem. Vivo na convicção que aquela mulher serena, que sobreviveu à morte de seu marido e da sua própria filha, minha mãe, tem uma adoração especial pela sua bisneta, a minha Muffy.
Tenho-vos também mandado fotografias, umas tiradas por mim, mas a maior parte por Maria do Céu. A propósito, nestas que vos mando hoje, vejam o "antes e o depois". Quanto ao futuro – se eu fosse religiosa – dizia agora que "o futuro a Deus pertence".

Há por aqui grande agitação; fala-se duma aliança com outro grande grupo que, segundo me parece, também existe em Portugal; os meus colegas de nada sabem, Jill não se confessa ou também desconhece. Aliás vejo-a muito em baixo. O mercado da publicidade está a sofrer profundíssimas alterações. Quer se queira, quer não, este negócio "já foi chão que deu uvas"!

O que for suará!

Termino por hoje com um obrigado muito especial ao Luís Gaspar (ouço sempre o seu "Estúdio Raposa") pelo espaço que me dedica na Truca.
Beijos muito grandes desta vossa amiga de sempre e para sempre.
Maria, Saigão, 4 de Fevereiro/07


Queridos Truquistas

Estive, de facto, aqui ao lado, na China, com dois colegas, em "viagem de negócios".
Mas a notícia não era para publicar, meu caro Luís! Esqueci-me completamente de lhe pedir sigilo. Enfim! Estamos ambos perdoados. Sabe uma coisa? Estive a dois passos do seu amigo Bill.
Eu devia ser um pouco mais recatada e não vos remeter coisas de foro íntimo mas, já que tornei universal o "Diário de Minha Avó", aqui vai mais uma página contínua à anterior em que ela descreve a personalidade do Padre Amaro e a sua entrega à Virgem. Para os fervorosos católicos que me lêem, o sofrimento daquele Padre "que Deus tem", não deve ser entendido como o de um filho indigno da Igreja.
Foi um homem. Para mim basta!
Beijos.
Maria, Saigão, 3 de Fevereiro/07

(in Diário da minha Avó)

Queres saber, minha querida filha? Em pouco tempo o Senhor Padre Amaro conseguiu restauros na casa de Deus, com a ajuda dum grande número de desinteressada gente. Era vê-lo, mal o Sol raiava, de mangas arregaçadas, calças coçadas e velhas botas de solas cardadas, a caiar as paredes laterais do interior da igreja.
Na primeira missa, foi brilhante; inspirando-se num dos evangelistas, poema de toda a sua alma, Amaro, austero, olhou de frente o silêncio dos crentes que enchiam a nave e, num eloquente sermão, agradeceu-lhes os modos gentis que o tinham recebido a ele, um humilde servo do Senhor, e esperava, com a ajuda de todos, transformar a igreja agora renovada, num paraíso de reflexão, de amor e de paz; "- Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa nos Céus; non in solo pane vivit homo. Dominus vobiscum"
Colocou nos santos as doações dos devotos, em ouro e prata dourada, e ali estava parte da sua jovem vida, naquelas grossas paredes brancas, quais vitrais multicores de grande catedral gótica. Era o seu orgulho e a sua dádiva.

As missas de domingo tinham fama. Amaro paramentava-se a rigor e, desde cedo inspeccionava todos os recantos antes de mandar tocar o sino, já com corda nova. Na credência verificava a alvura da toalha, a galheta, o sanguinho, o cálice para a consagração, o turíbulo, e destapava o cibório para consagrar as hóstias numa primeira aproximação ao corpo de Cristo. De vez em vez provava uma, olhando bem para a Cruz, em genuflexão, pois tinha descoberto, certo dia, que Genoveva, na feitura da massa divina, lhe punha uma colherzita de fermento e uma pedrinha de sal. Passava depois pela pia já com água limpa e benzia-a. Água, a fonte da vida.

Palas dez horas a igreja estava cheia para o ouvir e receber dele todas as graças.
Os cristãos cheiravam a alfazema e Amaro, exausto pelo improviso da doutrina
("- Vós sois a luz do mundo..."), perante o altar, sentindo a dor sofrida de Jesus, pegou na santa hóstia, partiu-a ao meio, e ergueu-a com as duas mãos, bem alto, para receber a luz resplendorosa da cruz.

E todas as vezes que ele assim se abandonava na claridade da sua fé, na torre sineira, cantava um rouxinol.

"- Aplique-lhe uma chumbada. Juliana tem um jeitão para rouxinóis com arroz" – disse-lhe teu avô, num dos serões, com o indicador salivado para o ás de paus.
O pior que poderia acontecer ao Senhor Padre Amaro era passar noites de insónia. Via-se longe, na sua aldeia natal, caminhando descalço pela geada, acompanhando os pastores, as ovelhas, as cabras e tocando a sua flauta de cana.

Numa dessas noites levantou-se e, descalço, desceu as escadas de madeira, devagar pelo ruído dos degraus, e encaminhou-se para a igreja parcamente iluminada pelo círio. Era ali que se sentia bem, a sós com Deus e todos os Santos a quem se tinha dado inteiramente.
A Virgem esperava pelas suas orações. E Ela ali estava, esperando-o na obscuridade, aureolada com rosas frescas, o rosário pendente das suas mãos numa oração perpétua.
Amaro ajoelhou-se perante a bela imagem de manto azul estrelado.
Num sussurro, persignando-se: "- Per omnia saecula saeculorum, eu te amarei". De braços abertos, confessou-lhe que desde muito jovem, tinha por ela uma adoração de abençoada amplitude, e queria beijá-la nos olhos que choravam, na boca que sorria, nos seios que tinham amamentado Jesus, no ventre que gerara o Salvador. Era seu, entregava-se-lhe para a vida inteira.
A Mãe do ungido, na sua magnífica virtude, era o seu refúgio de menino.

Sentindo-se enregelar, o padre Amaro levantou-se quando, nesse instante, ouviu uma voz doce, cristalina, parecendo-lhe mel a escorrer dum favo.

"- Ama-me, Amaro"

Olhou para a Virgem, alucinado! E viu-a pôr de lado o rosário, tirar a auréola de rosas brancas, descer o pequeno degrau do altar, fazer descair o manto que lhe tapava os ombros e os seios redondos e túmidos. Caminhou para Amaro numa nuvem que já o envolvia também a ele, enquanto o manto de Maria continuava a descair descobrindo o seu ventre, as pernas celestiais, e aqueles braços de ternura que agora o envolviam. Os lábios quentes, quase encostados aos seus, repetiram; "- Ama-me, como eu te amo". E Maria, completamente nua, apertou-o contra si, beijou-o languidamente, e possuiu numa frenética loucura de amor carnal.

Já o Sol nascia, e o padre, inanimado, morrendo de frio na sua camisa comprida de linho, foi levado para a cama por Genoveva e Fortunata, na hora em que cantava o rouxinol.

Minha querida filha. Não queiras chegar já ao fim da história. Não vás procurá-lo. Lê com tempo.
Mais à frente dizer-te-ei como soube tudo isto. Nesta altura eu tinha apenas uns oito anos.


Meus Truquistas.

Foi uma despedida triste. Quase chorei ao dar um beijo muito grande a minha filha que dormia com um sorriso de sonho, no seu berço cor-de-rosa.
Ainda tinha mais uns dias de licença de parto mas, a pedido de Jill, eis-me na Agência desde ontem.
São duas da tarde. Cheia de saudades de minha filha, telefono para Maria do Céu amiúde; a menina dorme e, com o telefone, acordo-a.

A conversa com Jill, minha directora e amiga, foi longa. A sua continuidade na direcção da Agência, aqui em Saigão, vai ser cotada por Hanói, no final do presente ano. Disto tem ela a certeza. Toda a filosofia da Agência deve ser remodelada. Os tempos que se julgavam imutáveis são outros, e outras as exigências dum mercado que despertou para novas formas de negócio e de estar na vida.
"Maria, nesta casa, que respira o ar duma República Socialista, quem dita as leis é o capitalismo", disse-me Jill no final da reunião.
As grandes reformas têm que ser rapidamente implementadas sob pena de se perder o filão de ouro que parecia inesgotável; os clientes mudam de agência "como quem muda de camisa" (ditado muito popular aqui, no Vietnam).
Outras empresas estão a aluciná-los com "custos reais" como se a publicidade fosse uma ciência exacta.
Eu podia dar-lhe uma ajuda, começando por supervisionar os profissionais, disfarçadamente, sem ninguém dar por isso; as horas de entrada dos meus colegas, o tempo que perdem na cafetaria da esquina, o cigarro que leva uma eternidade a fumar, e as consequentes necessidades de serões para colmatar o tempo perdido durante as horas de Sol. Haviam gráficos que trabalhavam de noite e dormiam de dia; recebiam dois ordenados – o fixo e o das horas extraordinárias sempre pagas a dobrar.
Mas tenho eu feitio para isto? Vou prestar-me a delatar colegas com quem trabalho há um ano?
Ainda ontem um criativo me disse: "estou sem inspiração, vou ao cinema; é uma fonte inesgotável de criatividade".
E foi. O cinema aqui do lado, pequena sala numa cave, exibe filmes indianos, ricos em cor e música.
Que vou fazer? Um relatório maledicente, ou uma prova inequívoca de como se deve estar na profissão?
Não me agrada o pedido de Jill.
Oh! Minha Querida e Santa Avó; tanta falta me faz.

Eu estou a gostar deste País e já cheguei à conclusão haver mérito na minha vinda para o Vietnam. Alguns vietnamitas da minha rua, as "meninas" da Ngo Duc Ke, os cafés e restaurantes da grande avenida Nguyen Hue, a Agência, e mais uns e outros, já conhecem Portugal. Interessam-se por saber do meu País, ouvem as notícias, lêem o que de Portugal se escreve, vêm na televisão imagens que por aqui chegam.
Depois falam comigo, no rudimentar inglês, e trocam impressões sobre coisas que às vezes me deixam um pouco embaraçada.
Os meus colegas, por exemplo, com ar de gozo, não entendem como não conseguimos salvar seis pescadores, dum barco encalhado a poucos metros da praia. Nós, Portugueses, homens dos oceanos, que demos a volta ao Mundo, que descobrimos rotas, ventos e marés, deixámos perder seis vidas ali, ao alcance da mão? Custa-lhes a acreditar. Neste País onde vivo, mais de metade virado pró mar, isto não podia acontecer e, se de facto acontecesse, havia um culpado.

A grande alegria de ontem, esperava-me à saída da Agência.
Minha filha, na rua, ao colo de Maria do Céu, com os seus bracinhos abertos virados para mim, para sua mãe, que a abraçou e beijou até se desfazerem as saudades acumuladas durante o dia. 

Maria, Saigão, 17 de Janeiro de 2007


(Página do diário da minha avó)

A vinda do Sr. Padre Amaro para S. Miguel de Rio Torto, deveu-se a um acontecimento de pesar para toda a paróquia; o velho celebrante Padre Francisco, homem de grande fé, que há muitos anos era o mentor espiritual de todos os paroquianos, sentindo-se às portas da morte, e querendo receber as últimas graças do Senhor, suplicou a presença do frade para lhe administrar, pela 2ª  vez, a Extrema-unção.

Nunca cheguei a conhecer o defunto mas, uns dois meses depois do seu enterro, lembro-me da chegada do Sr. Padre Amaro, indigitado sacerdote para substituir e continuar a obra do bem-fazer que o seu predecessor cultivara durante uma vida de devoção e temor a Deus.

Amaro vinha de Trás-os-Montes; alto, magro, talvez com os seus 25 anos, cabelos fortes, negros, com uma tonsura delicada que lhe conferia um respeito áureo.

Duma família de terras altas, tão altas que com um simples levantar de braço quase se tocava o céu, Amaro, filho único, foi desde muito novo encaminhado para os sagrados caminhos da Santa Madre Igreja, vindo a tornar-se um aluno brilhante e um devoto de todos os Santos com especial entrega à Virgem Santíssima. Dias depois da sua ordenação, no regresso à aldeia, esperava-o uma rija festa, onde não faltaram os melhores enchidos do fumeiro, pão acabadinho de sair do forno, vinho tinto borbulhante, foguetes de grande estrondo e até um baile de concertina que encheu de alegria os rapazes e raparigas que, desde a última colheita das cerejas, não se encontravam tão de perto.

Uma das suas primeiras acções, depois da simples alteração à casa de telha vã que o seu antecessor deixara tão bolorenta, foi fazer uma romagem a todos os paroquianos, dando-se a conhecer como mais um membro da família, disposto a aliviar as dores da alma e do corpo, ambas indissociáveis do verdadeiro cristão. Escusado será dizer-te, minha filha, que teu avô lhe abriu a porta da quinta, com o seu ar vivaz de boas vindas, exigindo-lhe que nos visitasse amiúde pois que a nossa Juliana era uma cozinheira e doceira, como poucas, em todo o Ribatejo.

Amaro agradeceu-lhe, persignando-se. Voltaria com todo o gosto, prometeu.

Mas tinha ainda árduas tarefas pela frente. Efectivamente, como função primordial dum sacerdote, olhou a sério para a igreja e remodelou por completo a disposição dos santos, desesperando-se por os ver sujos pelas visitas dos pardais (ele que não podia ver uma mosca a sobrevoar o altar), arrumou mais para a frente a mesa da palavra, encostou mais para a esquerda a Credencia, exigiu uma limpeza geral às vestes litúrgicas, avisando Fortunata e Genoveva (as duas santas mulheres responsáveis por estes cuidados) que impunha, diariamente, um Clerical lavado e tão branco como a própria Alva.

A sua exigência reforçou-se ainda mais ao ver o estado lastimável do confessionário, quase a cair de podre, sem resguardo para a confissão dos pecados, e um banco desengonçado onde em cima da almofada sebenta, dormitava durante a noite o velho "pirilau". Quis despedir o gato mas Genoveva foi peremptória: "O senhor Padre Amaro tenha paciência, mas os gatos também são criaturas de Deus, e o bicho não sabe o que é a confissão", ao que Amaro teria retorquido: "Exactamente por isso, não o quero a dormir no meu local de meditação e absolvição. Arranje-lhe outro lugar Genoveva, outro lugar! E, já agora, peço-lhe que mantenha o Círio sempre aceso, de noite e de dia". Genoveva pôs as mão na cintura "Ora que desperdício, senhor Padre Amaro! sempre quero saber onde vai arranjar oferendas para as velas. Pois não sabe que estão pela hora da morte! Durante a santa missa ainda vá, mal parecia, Deus Nosso Senhor me perdoe mas, durante o dia e a noite? De dia temos a bênção do Sol e de noite os santos dormem". "Na Igreja nada dorme Genoveva, nem de dia, nem de noite. Círio aceso, sempre aceso. Et nunc erudimini".

Amaro utilizava com muita frequência citações em latim, o idioma da fé cristã, como ele sempre dizia.

Mesmo em recolhimento, ajoelhado em frente da Virgem Imaculada, de braços abertos, orava em latim, pedindo-lhe que o livrasse da obsessão do pecado, especialmente da imagem fortemente negativa da sexualidade. O celibato eclesiástico era irrefutável.

Um dia, num serão, teu avô já visivelmente irritado com tantas citações latinistas, disse-lhe:

"Mas porque não cita em Aramaico? Vocês dizem que era a língua falada no tempo de Cristo!".

Amaro pedia-lhe desculpas, distraía-se, não tinha mão naquela entrega constante à sua opção de vida; "E quando vou ter o prazer de o ver na missa, senhor Purificação?".

Antes de se deitar, muitas vezes a arder em febre, ainda dedicava o desejo de boas-noites à pequenina Virgem de gesso, iluminada a lamparina de azeite, de pavio renovado, diariamente, por Fortunata.

"Ave Maria, gratia plena; Dominus tecum: benedicta tu in mulieribus, et benedictus frutus ventris tui, Jesus. Sancta Maria, Mater Dei, ora pró nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae. Ámen"




 Truquistas de cara lavada.

Passei a ser vedeta no novo arranjo que o Luís deu à Truca.

E foi uma grata surpresa ver a imensidade de coisas que vos escrevi, inclusive com fotografias que já não me lembrava de as ter enviado.

Digo-vos Truquistas que não esperava tamanha honra; destaque no índice geral, um simples clique, e eis-me ali toda, de alto a baixo, desde os tempos em que deixei de segurar no cartaz das estatísticas da semana, até à ultima crónica sobre a mão doente.

Mas o Luís pregou-me uma partida; exibir o matacão de gesso que molda a minha mão direita – o que me impede de vos escrever com amor, porque o meu afecto exige liberdade de todos os movimentos para que se desprenda a transparência dos instintos - não é coisa que se faça!

Mas, para mim, o que esta nova Truca me parece estranha, e me entristece, é ver a minha Querida e Santa Avó exposta assim, escancarada, sem o recolhimento duma escrita íntima. Eu tive conhecimento dos manuscritos quando ela, três dias antes da sua morte, mos delegou com mão trémula e quase fria.

Para agravar a desfaçatez da minha inconfidência, há o erro clamoroso de vos ter revelado páginas numa ordem não muito ordenada e, embora o conteúdo histórico esteja presente, sinto-as solitárias, desinseridas duma vida que em parte testemunhei. Minha Avó, lida assim, aqui e ali, aos saltos, aos tropeções, perde o sentido poético dos seus desgostos, das alegrias vividas, e dos profundos conflitos da sua personalidade. Dá-me a ideia de ter sido uma pessoa que não me pertenceu, que teve uma vida com tropeções aventurosos, quando dela guardo a imagem de uma mulher de ferro moldável, que encarnou todas as formas da virtude e semeou a floresta da sua vida com árvores que constantemente se renovavam.

E quando imagino que, pela internet, qualquer pode entrar na intimidade que tanto preservou, nos sentimentos da sua vida que abrigou até ao dia da sua morte, rói-me a consciência de ter esbanjado, infantilmente, as páginas doces, realistas, cruéis, amorosas, defuntas, desgostosas, por vezes manchadas da água salgada das suas lágrimas. Entristece-me de ter dado a conhecer a sua caligrafia e os seus segredos autógrafos.

Da avó que queria só para mim, tenho uma avó que é de todos.

O mal está feito. Não o posso remediar.

E, já que abri as janelas por onde entraram tantas estações, continuarei a enviar-vos as magníficas páginas do seu diário, até ao dia em que fechei para sempre a do quarto onde ela passou os seus últimos dias, não deixando entrar uma nova primavera ou uma folha furtiva de árvore caduca.

Seja, enfim, a minha Querida e Santa Avó, uma mulher universal; dies erae...

 

O meu tempo de "férias" está quase no fim. Daqui a duas semanas regresso ao trabalho.

Maria do Céu irá ser, pelo menos nos primeiros tempo, a baby sitter ideal para a minha Mafalda. Não estou preocupada; minha filha respira saúde e Céu é uma segunda mãe. Em boa hora lhe dei alojamento na minha casa.

Aqui entre nós, julgo que a paixão de Maria do Céu por Ernesto Guevara está a abrandar, tão envolvida anda com a perspectiva do negócio da "revolução da fashion oriental" (nome que lhe aplica) aqui em Saigão. O seu actual trabalho de campo é descobrir um espaço digno para a loja, numa das principais artérias desta cidade. Paralelamente vai tirando fotografias que eu aproveito para enfeitar as minhas crónicas; Tema desta semana: Calma no campo, bulício na cidade.

Beijos sempre renovados.

Maria, Saigão, 4 de Janeiro/07


Truquistas – Ano Novo, Vida Nova.

Há muitos anos que ouço as mesmas palavras ditas e escritas; "Boas Festas, Feliz Ano Novo! Que os sonhos se concretizem! Felicidades, mereces tudo do melhor". Acreditem, Truquistas; Estou saturada de as ouvir e de as ler. A folha do calendário que vamos agora deitar fora, descobre mais um Janeiro que inicia um novo ciclo de 365 dias. Pode parecer incrível mas, para Fevereiro já tão perto, faz um ano que vos escrevo do Vietnam, faz um ano que deixei esse Portugal onde nasci e cresci, onde vivi a minha infância, onde aprendi a ser mulher. Este País é agora a minha terra, a minha gloriosa alegria e a minha profunda tristeza; alegria porque aqui nasceu minha filha, tristeza por ter deixado para trás o que de mais bonito tinha: Eu.

Que deixei de mim? A vontade sublime de viver, a cor sadia da minha voz, as lindas recordações da minha juventude, os meus amigos, os meus amores. E ainda o portuguesismo, a raça lusitana no sangue das minhas artérias e a nostalgia de não poder nunca mais viver ao lado de minha avó, que foi mãe, amiga, irmã, companheira, confidente. Quando a deixei, num adeus último, ao lado de seu marido, na prateleira fria do jazigo da "Família Jesus", recolhida nas recordações de toda uma vida a seu lado, não pude suster as lágrimas duma fonte inesgotável, ao ver afastar-se aquele sepulcro de mármore, que o carro deixava para trás a caminho do aeroporto de Lisboa.

Um dia, a palma da minha mão foi lida por cigana castiça, numa Feira do Cavalo, na Golegã - e das palavras que ouvi, musicadas por um sorriso crédulo nuns olhos grandes e negros de fêmea jovem e bravia, recordo umas espanholadas que, com os anos, nunca as traduzi para o meu português ribatejano; "...Porque hay que tenerlos y tu los tienes".
Tão errada estava a cigana ao ler a linha da cabeça da minha mão. Há muito que lhe perdoei os fracos conhecimentos de quiromancia.

Olho para minha filha que se distrai no seu berço com uma estrela de borracha. Ilumina-a a luz coada pela cortina da janela. Parece-me uma pintura barroca, de retratista famoso. Mas a temporalidade da luz do dia altera a composição daquela vida. A minha Mafalda, futura mulher, pode escolher o seu destino e ser dona de si própria? Se eu disto tivesse a certeza não me importava de morrer neste instante. Mas, numa análise simplista, o mundo está desfeito e os homens não se unem para amparar as ruínas que restam da catástrofe.

Ainda hoje vi numa rua um cartaz de propaganda que, por alturas do Natal Cristão e Ano Novo, o regime insiste em recolocá-lo. Representa uma criança com capacete protector. É a guerra ainda omnipresente neste Cộng Hòa Xã Hội Chủ Nghĩa Việt Nam.

Pobre filha minha! Que poderei eu fazer para te moldar um destino feliz?

Chego finalmente à conclusão que sempre há lugar para votos de Feliz Ano Novo. É a esperança que resta a todos nós; que o Novo Ano seja Feliz.

 Notícia triste: A velha rameira, a "avó" das meretrizes da Ngo Duc Ke, ficou-se neste ano. Para ela a vida acabou no dia 8 de Dezembro, depois de ter fumado o seu último cigarro que enfermeiro compadecido, pressentindo-lhe o fim, a ajudou a acender. Neste dia, no ano de 1980, morria John Lennon, que contestou a inconcebível Guerra do Vietnam, um dos principais ganha--pães da meretriz que tanto sofreu com a morte do meu Bó. Apagou-se o cigarro no cinzeiro duma vida.

E para terminar a "crónica" de hoje, ainda com a mão direita engessada, um muito obrigado aos que me escreveram, por intermédio do Luís, com palavras símbolos de coragem.
Beijos.
Maria, Saigão, 28 de Dezembro/06