Poesia Erótica 25

As Núpcias de Asmodeu

 

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A escritora Deana Barroqueiro é uma repetente neste espaço do Estúdio Raposa, muito devido ao facto de dois dos seus livros terem por títulos “Contos Eróticos do Velho Testamento” e “Novos Contos Eróticos do Velho Testamento”. E pelos títulos...está tudo dito. Da segunda obra retiro para o programa de hoje um excerto do capítulo intitulado “As Núpcias de Asmodeu”.

MÚSICA

Estas duas obras são, uma crónica histórica da Antiguidade, ficcionada, cujo fio condutor é a aventura dos sentidos, através do olhar magoado das mulheres e da sua luta pela existência, num mundo em que as descendentes de Eva eram consideradas pelos homens como mercadoria e inferiores aos animais, conceito que perdurará ainda hoje, perpetuado por certas interpretações fundamentalistas dos livros ditos sagrados, em nome de uma verdade religiosa que nenhum Deus, bom e justo, poderia alguma vez sancionar ou sequer tolerar.

MÚSICA
Vamos, pois, ouvir “As Núpcias de Asmodeu” texto retirado do livro “Novos Contos Eróticos do Velho Testamento”.

MÚSICA

(Sara lembrou-se) de como a sua revolta fora castigada, quando pela primeira vez orara a Deus para que a livrasse do noivo idoso escolhido pelo pai, era ela ainda uma menina... Raguel vira apenas o seu proveito no casamento de Sara com o velho e rico parente, um acréscimo de património para a sua família e não olhara à felicidade da filha, nem atendera aos seus choros e súplicas para não ser dada a um marido cinquenta anos mais velho do que ela. Então, a moça desesperada, prostrara-se no chão do seu quarto com a face por terra e invocara as forças divinas em sua ajuda, mas os céus permaneceram surdos e o casamento não fora cancelado. Como não havia lugar para a rebeldia em casa de Raguel, Sara recalcou dentro de si a dor, o desespero e o ódio, enquanto mostrava ao mundo o sorriso triste da resignação, como se no seu corpo habitassem dois espíritos distintos.
As primeiras regras tinham-lhe aparecido poucos meses antes e Sara contemplava com maravilhada surpresa as transformações do seu corpo, os seios a arredondarem-se como os pomos da macieira do quintal, a cintura estreita acentuada pela curva graciosa das ancas, o triângulo escuro e sedoso do sexo por onde se escoava o fluxo impuro mas vivo da sua fecundidade. Sobretudo, espantavam-na as sensações novas que lhe faziam palpitar o coração, o sangue fluir mais rápido e quente nas veias, o ventre intumescer como um fruto sumarento e a pele arrepiar-se de gozo sempre que avistava Chilad, o moço pastor mais disputado pelas mulheres da sua casa devido à sua formosura.
De noite, no aconchego do leito, quando a Sara obediente e submissa, depois de muito chorar o seu destino de noiva de um velho, consentia ao sono consolador cerrar-lhe as pálpebras cansadas, uma Sara rebelde e enfurecida tomava o seu lugar e deixava a imagem do moço pastor escorregar para debaixo das mantas e tocar-lhe o corpo que se revelava todo outro, diferente e assustador, fonte de prazer e de remorso. As suas mãos guiavam os dedos calejados de Chilad nessa viagem de descoberta e iniciação, tacteando e entreabrindo os lábios macios que se ofereciam num beijo, tocando a língua quente e húmida, percorrendo a linha esbelta do pescoço e da garganta até à brancura arredondada dos seios onde os dedos se atardavam, afundando-se na espessura da carne para volverem à tona do prazer com os mamilos aprisionados numa carícia, a endurecerem num arrepio de pele que a fazia gemer. Mas as mãos ansiosas não se demoravam aí, desciam impacientes até à cintura, buscavam o nó do umbigo, o ventre liso e doce, o interior das coxas que estremeciam ao toque inábil e se contraíam aprisionando os dedos contra as virilhas, como se quisessem impedir a violação do tesouro, o mistério do amor guardado no vértice macio do seu corpo cuja exploração lhe trazia o êxtase onde se deixava submergir abafando um grito.
Contudo, se não lograram tocar as divindades do céu, a súplica e rebeldia de Sara encontraram eco nos numes do inferno, pois Asmodeu ouvira-a, acorrera em seu socorro e apoderara-se dela para sempre. Nessa noite mesmo, entrou-lhe nos sonhos de menina, apanhando-a indefesa e desprevenida, com carícias que lhe devoravam o corpo num prazer doloroso e a faziam contorcer-se como uma serpente e morder os panos da cama para abafar os gemidos e os gritos na garganta. Dessa vez não era Chilad, o pastor simplório que costumava acariciá-la com dedos apressados, mas um amante desconhecido que tomava posse da sua vontade, lhe forçava as mãos e os dedos às carícias mais lascivas, sujeitando-a a uma perversidade e luxúria de gestos e posições que lhe punham o corpo em brasa e a inebriavam como o suco fermentado das uvas. Quando exausta e suada rolara no leito, quase desfalecida, uma voz soara-lhe aos ouvidos, rouca e áspera, murmurando-lhe um segredo terrível:
– Eu sou Asmodeu, nomeado em segredo entre os que me veneram por “Aquele que faz morrer”. – A voz baixou ainda mais, num arremedo quase humano de ternura, quando acrescentou: – Mas podes chamar-me Asmoday ou Acheneday, se preferires, pois a tua beleza achou graça aos meus olhos e eu elegi-te para minha esposa.
Sara estremecera de horror ao ouvir a criatura diabólica que se apossara da sua carne e do seu espírito, nomear-se a si própria por Asmodeu, o senhor dos Shedin, os demónios com garras de galo! Nos contos ouvidos às segadoras de seu pai nas noites de ceifa e debulha, ele aparecia como o pior de todos os demónios, com três cabeças diferentes – uma de touro, outra de homem com hálito de fogo e a terceira de carneiro. “Um fornicador, um porco sujo!”, tinham afirmado as mulheres mais velhas, cuspindo para a fogueira e fazendo uma breve oração de esconjuro.
Contavam casos de mulheres possuídas pelo ser maligno, fornicadas até à morte e um frémito de terror e de ansiedade percorria a roda das mulheres mais moças ou formosas, silenciando os risos e fazendo-as deitar olhares furtivos e inquietos aos lugares mais sombrios da eira. Primeiro julgara sonhar um dos muitos pesadelos que nos últimos tempos lhe povoavam os sonhos de medo e violência, à mistura com estranhos desejos que nem à amiga mais querida ousava confiar. Rezara com muita devoção, jejuara mesmo, a fim de afastar os maus pensamentos e o doce formigueiro do seu corpo e não mais voltara a escutar a voz terrível dos seus demónios.
Porém, a sua perdição começara verdadeiramente na noite das primeiras núpcias, depois de uma cerimónia onde todos, menos ela, festejavam e se alegravam com a ventura de Raguel, pois a noiva tinha o coração negro de tristeza como se assistisse ao seu próprio funeral, à morte de todas as ilusões e sonhos de amor da sua adolescência. Quando, depois de a prepararem e deitarem no leito, as mulheres abandonaram o quarto com risos e chistes maliciosos, Sara ficou só com a sua angústia e a sua raiva à espera do marido que haveria de acercar-se dela nessa noite para a conhecer e assegurar a sua progenitura, se ela não fosse estéril. Como poderiam pedir-lhe que amasse aquele velho parente, austero e sem graça, já com alguns netos da sua idade? O medo do que a esperava, a revolta e a ira que a sufocavam esmagavam-na. Queria sair dali, fugir para muito longe, antes que as mãos enrugadas e gastas lhe tocassem no corpo, a boca desdentada se apoderasse da sua, o sexo...
O marido entrou um pouco cambaleante, com os olhos brilhantes e um sorriso de bem-estar, despiu as roupas no canto sombrio do quarto, enfiou a veste de dormir e abeirou-se do leito para se deitar. Foi o momento escolhido para Asmodeu se apoderar do espírito de Sara com a violência de um vendaval, enchendo-o de imagens de violência, ódio e morte. Vozes soaram dentro da sua cabeça, ora persuasivas, ora ofensivas e hostis, incitando-a à revolta e à vingança de todas as humilhações, até haver nos seus olhos de menina um brilho de demência.
O velho afastou as mantas, subiu para o leito e inclinou-se sobre o delicado corpo adolescente.

Um jorro de obscenidades soltou-se da boca de Sara, ao mesmo tempo que o seu torso se arqueava, as mãos agarravam os cabelos do atónito marido, puxando-lhe a cabeça para baixo, prendendo-a entre as coxas, com o rosto esmagado contra o sexo. As suas pernas cruzaram-se por trás do pescoço do homem com uma força sobre-humana impedindo-o de se soltar, não lhe permitindo senão pequenas convulsões e uma respiração ofegante que se assemelhavam a carícias e a faziam apertar as coxas com maior violência e morder os lábios até sangrarem. Quando o seu corpo se abriu em espasmos de deliciosa agonia, Sara libertou finalmente a cabeça do esposo que rolou sobre o leito, sem vida.
Depois, pela lei do levirato, Sara fora dada sucessivamente aos seis restantes parentes com direito de resgate sobre ela. E a cada goel ou libertador da sua viuvez Asmodeu dava a morte, para que nenhum homem se abeirasse dela e conhecesse a sua nudez que o enamorado demónio da luxúria reclamava para si.

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Ouvimos no Poesia Erótica um excerto do conto “As Núpcias de Asmodeu” do livro de Deana Barroqueiro “Novos Contos do Velho Testamento”. Desta autora acaba de sair, após se terem as duas primeiras edições, a terceira, do seu romance “D. Sebastião e o Vidente”, obra que recebeu o Prémio Especial do Júri - Máxima 2007. Este foi o primeiro livro de ficção editado pela Porto Editora.
Está para breve a edição de mais uma obra de Deana Barroqueiro.

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