Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 130
Fernando Pinto do Amaral

 

INDICATIVO

Fernando Pinto do Amaral é o autor que nos empresta as suas palavras para o programa de hoje. Ouviremos a sua poesia.

MÚSICA

Fernando Pinto do Amaral iniciou a sua formação universitária pela Medicina mas ao descobrir maior interesse pela palavra do que pelo corpo, desistiu de ser médico e dedicou-se à escrita. Acabou por se licenciar em Línguas e Literaturas Modernas, concluindo o Mestrado e o Doutoramento em Literatura Portuguesa. É Professor do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa.

MÚSICA

Publicou o seu primeiro livro, Acédia em 1990, e para além de outras obras de poesia e ensaio, traduziu poemas de Baudelaire, Verlaine, Jorge Luis Borges e Gabriela Mistral. Prefaciou edições de poesia de Camões, Bocage, Antero de Quental, Cesário Verde, Ruy Cinatti, Tomaz Kim e Luís Miguel Nava, entre outros. Alguns dos seus poemas estão traduzidos e publicados em espanhol, francês, holandês, alemão, checo, inglês, búlgaro e turco.

MÚSICA

Fernando Pinto do Amaral ganhou, com a tradução de As Flores do Mal, de Baudelaire, o Prémio PEN Clube e o Prémio da Associação Portuguesa de Tradutores. Recebeu ainda o Prémio de Ensaio PEN Clube pelo seu O Mosaico Fluido — Modernidade e Pós-Modernidade na Poesia Portuguesa Mais Recente, publicado pela Assírio & Alvim.

MÚSICA

Vamos ouvir, sem interrupção, cinco poemas de Fernando Pinto do Amaral pela seguinte ordem: Praia e Eco do seu primeiro livro, Acélia. Palavra e Segredo da obra Às Cegas e finalmente Prisão, do livro A Cinza do Último Cigarro.

MÚSICA

Feliz, quem sabe, o vento. Sem memória,
beijando-me nos lábios, ele abraça
o meu destino às cegas na paisagem.
É sempre nesse instante que regresso
à poalha do céu onde começa
talvez a maldição, talvez o encanto
de invocar-te em silêncio. Porque, eu sei,
entre palavras morre a cor dos sonhos,
o vão pressentimento de estar vivo.

Feliz talvez o vento e no entanto,
arrasta ainda areia e vagas vozes
na praia ao abandono. A luz da tarde
encobriu-se de névoa, só o mar
ficou perto de mim - agora é simples:
as ondas trazem novo o teu sorriso,
movem o seu abismo nos meus olhos,
mas lágrimas nenhumas vão salvar-me o corpo,
a alma, as cinzas, esta vida.

MÚSICA

É mais fácil partir quando o silêncio
transpõe a tua voz.
Mais simples celebrar a tão efémera
certeza de estares vivo.

A música do ar esvai-se nas sombras,
tu sabes que é assim,
que os dias correm céleres, não tentes
perseguir o seu rasto - repara
como em abril as aves são felizes.

Sê como elas: não perguntes nada,
deixa que o sol responda à flor da tarde
e esquece-te do mundo.

MÚSICA

Às vezes é tão bom ver nascer uma estrela

ao fim da tarde, à hora em que declina
a alegria dos pássaros,
este verde sem alma nem corpo

talvez ainda à flor de uma canção.

De rumor em rumor
absorvo o que resta dos deuses
entre o cheiro da terra e o calor de uns lábios - os teus,

esses que nunca me beijaram.

Paisagem acabada de morrer,
aceita-me e ensina-me p’Io menos
uma simples palavra.

Só queria uma palavra que te amasse
pela primeira vez. Desisti de saber
onde mora o teu rosto, onde começa
a sua melodia - meu amor,
acredita,
às vezes é melhor ficar assim,
ver como o céu se despe ou se despede
de tudo o que foi luz e se transforma agora
na música das sombras.

MÚSICA

Esta noite morri muitas vezes, à espera
de um sonho que viesse de repente
e às escuras dançasse com a minha alma
enquanto fosses tu a conduzir
o seu ritmo assombrado nas trevas do corpo,
toda a espiral das horas que se erguessem
no poço dos sentidos. Quem és tu,
promessa imaginária que me ensina
a decifrar as intenções do vento,
a música da chuva nas janelas
sob o frio de fevereiro? O amor
ofereceu-me o teu rosto absoluto,
projectou os teus olhos no meu céu
e segreda-me agora uma palavra:
o teu nome - essa última fala da última
estrela quase a morrer
pouco a pouco embebida no meu próprio sangue
e o meu sangue à procura do teu coração.

MÚSICA

Aqui te sequestramos, meu amor:
ergues os braços, viras a cabeça
cada vez mais atenta - são dois olhos
onde começa o mundo.
Que ciência é a tua? Que magia
transforma a luz de cada lâmpada
no mais puro relâmpago?
É tão difícil encontrar saída,
uma linha de fuga para os gestos,
uma resposta digna desses gritos.
Ensina-me a romper todas as grades
do berço que te embala,
a abrir contigo as portas, decifrando
a matéria que é mais do que matéria,
a que chamamos corpo.
Aqui te sequestramos, com o amor
de quem sabe e não sabe e talvez
não tenha salvação.
Assim te sequestramos, assim estamos
também nós sequestrados desde sempre
no prazer e na dor,
à procura de um íman que nos fale;
de alguém para escutar o nosso antigo pranto;
de uma voz que nos cante às escuras
até adormecermos.

MÚSICA

Ouvimos, no programa e hoje, cinco poemas de Fernando Pinto do Amaral. Ate ao próximo programa.

MÚSICA

Dois dedos de conversa

INDICATIVO

No próximo mês, Julho, o Estúdio Raposa fará três anos de emissões. É verdade, já lá vão três anos! Parece que foi ontem. É assim que se diz, não é?
Pouco dado a comemorações não vou, porém, deixar de assinalar a data. Exactamente no dia 6 de Julho era colocado on line o primeiro Palavras de Ouro. Podia ouvir-se nesse programa, que ainda está disponível, uma lenda e um poema de Berthold Brechet. Estrangeiros, portanto. Só no segundo número, transmitido a 12 de Julho, é que se fixou o modelo que ainda se mantém: divulgar apenas autores de língua portuguesa. Nesse Palavras e Ouro nº 2 ouvimos Edson Atahide e Fernando Pessoa. Pois numa simples comemoração, vamos ouvir, de novo, Fernando Pessoa e Edson Athaíde.
Quanto ao programa Lugar aos Outros, falaremos de comemorações, na sua próxima edição.

MÚSICA

Até ao próximo programa

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