Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 129
Lenda judia e Natália Correia

 

INDICATIVO

Neste programa vamos ouvir uma uma lenda judia e três sonetos de Natália Correia.

MÚSICA
A lenda intitula-se “A doença de Adão” e é mais um trabalho de tradução para português de Paulo Brabo, da compilação das lendas judias recolhidas das fontes originais do midrash pelo talmudista Louis Ginzberg.

MÚSICA

Depois de viver novecentos e trinta anos Adão foi tomado de uma enfermidade, e sentiu que seus dias estavam chegando ao fim. Ele chamou todos os seus descendentes e reuniu-os diante da porta da casa de adoração na qual oferecia suas orações a Deus, a fim de dar-lhes a sua última benção. Sua família ficou perplexa de encontrá-lo deitado em seu leito de enfermidade, pois não sabiam o que era dor e sofrimento. Sete anunciou sua disposição de ir até os portões do Paraíso e pedir a Deus que deixasse um de seus anjos trazer para Adão um de seus frutos. Adão, porém, explicou-lhes o que eram doença e dor, e que Deus os havia infligido sobre ele como punição pelo seu pecado.
Adão sofria brutalmente; a doença arrancava dele lágrimas e gemidos de dor. Chorando aos soluços, Eva disse:
– Adão, meu senhor, dê-me metade da sua enfermidade e eu a levarei sobre mim de bom grado. Não foi então por minha causa que isso lhe sobreveio? Por minha causa você sofre dor e angústia.
Adão, porém, explicou-lhes o que eram doença e dor.
Adão pediu a Eva que fosse com Sete aos portões do Paraíso implorar que Deus tivesse misericórdia dele; que mandasse seu anjo pegar um pouco do óleo que flui da árvore da sua misericórdia e entregasse aos seus mensageiros. O unguento lhe traria descanso, e mandaria embora a dor que o consumia. No seu caminho para o Paraíso, Sete foi atacado por um animal selvagem. Eva gritou para o agressor:
– Como ousa tocar a imagem de Deus?
A resposta veio imediatamente:
– A culpa é sua! Se não tivesse aberto a sua boca para comer do fruto proibido, minha boca não estaria agora aberta para destruir um ser humano.
Porém Sete repreendeu:

– Morda a sua língua! Deixe em paz a imagem de Deus até o dia do julgamento.
O animal abriu caminho para eles, dizendo:
– Vejam, deixo passar a imagem de Deus.
E esgueirou-se de volta para o seu esconderijo.
Chegados aos portões do Paraíso, Eva e Sete começaram a chorar amargamente, e com muitas lamentações imploraram a Deus que lhes desse do óleo da árvore da sua misericórdia. Por horas eles oraram assim. Finalmente apareceu o arcanjo Miguel, e disse-lhes que vinha na qualidade de mensageiro de Deus para informar que o pedido deles não podia ser concedido. Adão morreria dali a poucos dias, e como estava sujeito à morte, assim estariam os seus descendentes. Apenas por ocasião da ressurreição, e apenas para os piedosos, o óleo da vida seria fornecido, juntamente com toda a bem-aventurança e os deleites do Paraíso.
A morte é o destino de toda a nossa raça.
Retornando a Adão eles relataram o que havia acontecido, e Adão disse a Eva:
– Que grande desgraça você trouxe sobre nós ao despertar tamanha ira! Veja, a morte é o destino de toda a nossa raça! Chame os nossos filhos e os filhos de nossos filhos, e conte-lhes a forma como pecámos.
E enquanto Adão jazia prostrado em seu leito de dor, Eva contou-lhes a história da sua queda.

MÚSICA

Ouvimos, agora, três sonetos de Natália Correia. Estes três textos têm a particularidade de serem os poemas de Natália, escolhidos por Mário Soares, para figurarem entre os poemas da sua vida.

MÚSICA

Nada a fazer amor, eu sou do bando
Impermanente das aves friorentas;
E nos galhos dos anos desbotando
Já as folhas me ofuscam macilentas;

E vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
Rugas me humilham. Não mais em estilo brando
Ave estroina serei em mãos sedentas.

Pensa-me eterna que o eterno gera
Quem na amada o conjura. Além, mais alto,
Em ileso beiral, aí espera:

Andorinha indemne ao sobressalto
Do tempo, núncia de perene primavera.
Confia. Eu sou romântica. Não falto.

MÚSICA

Tanta foice isto é coice desconfio ...
Tanto de marx martelar já cansa.
Adrede é labirinto não me fio
no fio que o comício ao coro lança.

De tanto ruminar tanto Rossio
numa canga aguilhando tanta esperança.
Tanto poder ao povo com feitio
de espezinhá-lo depois da governança.

Tanta denúncia. É a pedagogia
da Revolução que o excremento avia
e não chegámos ao último terceto.

Recém-nascida apenas deste em cabra
Ó Liberdade! Não sei como isto acaba,
não sei como acabar este soneto.

MÚSICA

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen.

MÚSICA

O programa de hoje foi preenchido com uma lenda judia recolhida por
Louis Ginzberg e traduzida para português por Paulo Brabo. Até ao próximo programa.

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