História 47
O Poço do Vaz Varela

 

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A história que vamos ouvir é mais lenda do que história. Ou melhor, é mesmo uma lenda. Foi recolhida por Fernanda Frazão e publicada na bela edição dos Amigos do Livro intitulada Lendas Portuguesas. O nome da lenda: O Poço do Vaz Varela.
MÚSICA

O poço do Vaz Varela fica à saída de Tavira, na velha estrada para Vila Real de Santo António, junto à cerca do antigo convento dos frades do Carmo.
Muitas pessoas, desde a mais remota antiguidade até hoje, têm transmitido numa tradição sempre constante as suas visões de Fátima, a moura encantada, encostada ao gargalo do poço. Todos os relatos concordam em que essas visões se passaram ou ao meio-dia em ponto ou à meia-noite em pino. Segundo consta, a moura costuma pedir a quem passa perto que a desencante, prometendo em troca grandes riquezas. Aqueles que condoídos se têm prestado a acompanhá-la ao palácio encantado, mal avistaram o dragão que com ela habita, pediram em altos gritos para dali sair. E a moura, de coração desesperado, sempre assim fez porque jamais reteve alguém contrafeito em sua morada. Os visitantes que nada contaram do que por lá viram viveram muito tempo, mas os que se atreveram a revelar o segredo, em pouco tempo se passaram para a outra vida.
Fátima, que não gosta de ver gente a rondar o poço, cada vez que por aí passa alguém prega-lhe uma partida, nem sempre inocente, e isso tem levado as pessoas a criarem-lhe animosidade.
Acontece com Fátima o que não acontece com outras mouras, ou seja, saber-se a razão do seu encantamento. Segundo a lenda, passou-se tudo como vou contar.
Estava-se no ano de 1249 e tinha já começado a conquista dos Algarves. D. Paio Peres Correia havia retirado o cerco a Tavira em virtude de umas tréguas de trinta dias que assinara com o governador de então, chamado Abdalad.
Este Abdalad era tido como homem muito sabedor de encantamentos e vivia no palácio com uma filha de dezoito anos chamada Fátima. A moça era a luz dos seus olhos e a alegria da sua alma e consta que era linda como a mais formosa mulher do paraíso de Mafoma e mais formosa do que as mais lindas rosas do seu jardim de sete fontes.
Entretanto, os mouros tinham rompido as tréguas, pois haviam morto à traição sete cavaleiros cristãos que tinham ido em montaria para os lados de Antas. O governador, prevendo um ataque decisivo de D. Paio Peres, ordenara e preparara a fuga das gentes e das riquezas por dois caminhos: pelo rio Gilão, onde estavam algumas galeras, e pelo caminho secreto por debaixo do castelo, que ia dar à fonte hoje chamada Fonte da Praça e que nesse tempo estava desimpedida.
Abdalad, porém, no momento da fuga enfrentou espantado a recusa de Fátima em partir. Dizia ela, chorando, que se negava a deixar a terra que guardava os ossos de sua mãe. Ante a sua recusa teimosa, o governador, temendo que ela caísse nas mãos dos perros infiéis, resolveu encantá-la por mil e um anos.
Com essa finalidade dirigiram-se ambos, dois dias antes da conquista da cidade, era meio-dia em pino, ao poço do Vaz Varela. O governador, debruçando-se para dentro do poço, disse, então, o seguinte encantamento:
- Louvado seja somente Deus! Não há força nem poder senão em Deus, o alado, o grande! Só Deus é grande e Maomé o seu profeta, sábio e santo profeta, servo de Deus que se resigna à sua vontade e a Ele confia o seu ser e mistérios. A eles encomendo a minha filha Fátima Abdalad com o seu encantamento por mil e um anos. Que ela não se desencante sem passar os mil e um anos, salvo se alguma alma de ouro e coração de pomba se deixar engolir pelo dragão de escamas de prata e vomitada seja passados três dias e, uma vez borrifada com sangue de galinha preta, o anjo Gabriel a faça voltar à vida. Que ele mesmo acompanhe, então, a minha filha Fátima Abdalad à minha morada ou à porta de meus filhos e parentes junto da porta da sagrada cidade de Fez! Que nunca à minha filha faltem os víveres, o ouro, a prata e as pedrarias no seu palácio encantado. Que ela seja como o sol do mundo quando espalha os seus raios e, encantada neste poço, guarde em esteira de palmeira figos de ouro que oferecerá, bem como as outras riquezas, à pessoa que a desencante.
Que no tempo das chuvas e das friezas a acompanhe sempre o sono. E por último que seja sempre jovem e mais doce que o cantar das rolas enquanto alimentam os seus filhinhos.
Grande e santo profeta, recebe a menina dos meus olhos, a vista da minha vista, a minha querida Fátima Abdalad em tua santa guarda e entrega-a ao anjo Gabriel para que a conserve encantada por mil e um anos. Assim te encomendo, ó meu Senhor e Amo, a minha filha! Louvado seja somente Deus, não há força nem poder senão em Deus, o grande, o elevado! Só Deus é grande e Maomé o seu profeta!
Depois desta lengalenga, o governador fez sinais cabalísticos sobre o poço e sobre a filha, acompanhando o gesto com estranhas palavras pronunciadas com uma entoação muito dolente e triste. E lançando ao pescoço da menina o santo signo samão, arremessou-a ao poço, quando já no céu se viam a lua e as estrelas. Era meia-noite quando o mouro secou as lágrimas que ali chorou pela filha que encantara por mil e um anos, ou até que alguém, algum dia, se sujeite aos preceitos da tradição.

MÚSICA
Acabámos de ouvir uma lenda intitulada O Poço do Vaz Varela e foi recolhida por Fernanda Frazão.
Até à próxima história

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