O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO NOVE

 





Capítulo Nove –

TANDEM OU O TRIO TERMINAL

Aterrados, Mosca Torta, Nesga Negra e Torra Ossos expunham-se em flagrante, atravancando a antiga Rua da Inveja, actual Beco dos Lusíadas. Sem reagir, estáticos. Olhando para o outro, formidável. Não, nem queriam arriscar a pele, e bem pois o energúmeno, defronte, gostava de esfolar as suas vítimas. Era um assassino elementar, perene, que estava impregnado com a morte, que conhecia as máscaras de cores da escuridão mais retinta, próprias dos furtivos matadores das sombras.

Os três compinchas em zaragatas e ramboiadas, a deixar de pantanas a Lisboa burguesa, passadiça, recatada, sentiam-se agora fora de si e extraídos da sua laia. Embora em casa, em causa. Numa actualidade outra, que os atordoava, e além disso tolhidos pelo medo. De uma existência comum, tornaram-se os transferidos. Ora podiam, mesmo, ali postos, assim, estar prestes à aniquilação, perante aquela estapafúrdia emanação que ao encará-los, opressiva, logo intuíram nefanda e fatídica. Muito mais do que eles. Suspensos.

Sanha e insanidade. Formavam um trio arcaico, de tipos estúrdios que faziam chufas e chimpavam com o que tinham à mão. Por costume, ao desaforo. Gozando ao achincalhar as leis do reino. Mas a história alterara-se. Subitamente. Sem saberem como. Arrastando-os para o desaire. Atarantando-os numa iminência alternativa. E pronto.

Portanto, aquele ali era um indecente, um frívolo funesto, depravado interminável. Nos bolsos, andava sempre cheio de pedras, com as quais, ao longo dos séculos, escarocou, crepitou e lapidou todas as mulheres possíveis, de lágrimas lavadas, passíveis, turvas, barregãs ou estigmatizadas… Aquelas que sobravam de açoitadas, fustigadas, no rol da inclemência sexual, da intolerância ôntica.

Além da sua punção aos homens – dos empalados, dos açaimados, dos martirizados, dos chibatados, dos degolados, dos violados, dos aflitos, dos castrados, dos vazados, dos amputados, aos varridos num vil desígnio mórbido, perverso, em que tudo foi reflectido, pensado, prensado e impresso... Como estilizavam os relicários da dor, como consta nos sacrílegos cardápios do horror – e que ele, Dórdio Vasques, aliás o Malsão protagonista, assumia num fanático gozo eterno.

Súbito, Malsão imitou um ligeiro estremecimento, provocando a desvairada debandada dos três à sua frente, qual cáfila de fantoches desarticulados. Porém, o abominável queria-os arrebanhados, embora ineptos, lançando um silvo gutural que de novo os prostrou em letargia infindável, sobrenatural...

Como se chegara àquele aparatoso tormento de trespasse, desaposse, antagonismo e rendição?

Tudo, por causa dos talantes talentos do impressionante Dórdio Vasques. Qual diafragma catártico, revirando os olhos no sentido dos ponteiros do relógio – era assim que Malsão viajava ou transferia no imaginário. Em giro inverso, havia o mundo de cabeça para baixo – sobre o qual também abismou as alturas ou elevou-se às profundezas.

Contudo, quem de artimanhas tais se desprendia no quimérico trapézio entre máximo e vácuo, era também propício à sua própria e ténue incontinência.

Assim, assaz ufano a consolidar, em tensão, aquele esparso predomínio, foi Malsão desafiado por um fenómeno translúcido e tonitruante – abrupta sarrafaçadura de folga e amolecimento, fendendo a brecha infinitesimal em que sempre descamba a pacatez alfacinha.

E, do Nada cósmico, assenhoreou-se Vasco Górdio – repressor dos ofensivos, opressor dos deprimidos. Sem qualquer almejo filantrópico, simplesmente o Benquisto! Um intempestivo vigilante fino, cálido, mais virado para as ideologias e as mentalidades.

Sem o temer, rejeitou-o o Malsão:

- Isto não é contigo… Tu és um nascituro. Vai-te daqui, Benquisto!

Logo, Vasco Górdio o contrariou, afirmando-se como paladim dotado,  diplomado, peremptório, ao esgrimir com o tremendo dom da palavra:

- E tu, Malsão, não existes, tu és um não nascido!

Ferindo a lassidão em que estavam circunscritos, os três tratantes fora de prazo, e pois secundários nos conformes, já só pensavam em safar-se, sem saber bem como e para onde.

Numa espécie de inconsciente colectivo, saiu em impaciente alarde coral a Mosca Torta, Nesga Negra e Torra Ossos:

– Ai, se continuarmos nesta trapalhada, nenhum de nós é que chega a velho...

Loucura? Lucidez? Imprecação? Precaução?

Em colossal impasse… Os proscritos sob os prepotentes. A estagnação da conivência ante a usura da vaidade. Provinham da imprecisão climatérica por que se distinguiam servidores e traidores da pátria. Assim vacilava um espesso espaço, da vaga colorida entre sangue e carne, à zona cinzenta apenas poeiras e resíduos.

Foi então que, fulgindo em magnífica turbulência, o Infante Portugal se intrometeu, furibundo e espantoso:

– Mas, o que é que se passa aqui – no meu país, na minha cidade?!

Malsão, Benquisto. Um temporal de paradoxos, um paroxismo temporal. Heteróclitos acólitos, surpreendidos sem remate e sem rebate, brandos e mansos evaporou-se um, o outro deu de si. Ou desvaneceram-se por si sós, ou unos por motu proprio?

Logo, um banho de calma invadiu aquele cenário estéril e sedento.

Para o Infante tratar, menos irado, chegara a altura de Mosca Torta, Nesga Negra e Torra Ossos:

- Quanto a vocês, remetam-se à vossa insignificância!

E logo se esvaíram – mais pareciam uma trilogia da asneira, recambiados para a balbúrdia do Século XIX, de onde nunca deviam ter saído.

Diversão, adversidade. Jamais haveria noção por quais prodígios o Infante Portugal se imiscuíra inflexível e arrebatara triunfal.

Adversão, diversidade. E quanto à bruxuleante reunião de inversos siameses… Quais seriam os reais intentos do Malsão? E o Benquisto, porque se teria oposto?

Talvez nunca se soubesse. Além de que, por essa ofensiva fenda onírica, visionária, havia fatalmente de irromper o ímpeto glorioso do Infante Portugal… Aliás, na prática, o caso estava arrumado – outros rumos o esperavam, mais civilizados, sob a premência formal de Rui Ruivo.

Entardecia, ameaçando chuva. Já homem feito, altaneiro, pensou ele ao afastar-se – em termos bizantinos, tudo fora apenas mais um nefando capítulo da tragédia lusitana lírica e líquida, quimérica e folclórica.

Com uns pingos, o céu de Lisboa parecia concordar. Estendeu-lhe o seu manto da noite e, pelo menos uma vez, um dia não houve madrugada.

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