O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO OITO

 





Capítulo Oito –

A INSUBMISSA RESSURREIÇÃO

Fanático do astrolábio, era José Adamastor estrábico e chamavam-lhe Mostrengo pois que, durante o inverno, obsceno, gostava de entupir com estrume as sarjetas da Rua dos Descobridores. Sabotagem mítica? Serviço cívico?

Há tempos, estava enfeitiçado pela ingénua e esbelta Nordestina Serralho, uma pícara lírica brasileira que imaginaria o paraíso como um encanto alar, com cada pássaro a pôr por dia um ovo novo... Uma ave, nave que flutuasse o canto, qual quotidiano renascido e sinfónico.

Com souplesse, Nordestina tolerou o indevido indivíduo, que a aplaudia com furor de camarote reservado no Teatro de São Moniz, rondava-lhe camarim e, depois, ia gabarolar-se de a ter cativa – durante as tertúlias infinitas, boémias, noite adentro no Moutinho da Achada. Até que certa vez, já farto, um dos circunstantes, Jacinto Magno foi visitá-la e avisou a artista, que quase ficou sem pio.

Por fim, e depois de muito matutar, Nordestina decidiu tolher remoques, servindo-se de influências.

Rui Ruivo recebeu-a nessa mesma tarde, em seu escritório do Bairro Alto. Escutou como profissional, no limbo melómano da sua líbido, e lívido reflectiu à opípara diva:

- Em rigor, nada se pode contrapor... O coração não tem leis!

- Está querendo dizer-me que devo acatar tal desaforo...? - e a voz crepitou da fogosa Nordestina, embargada pela decepção.

- Pelo contrário! - sossegou-a Rui Ruivo, sorrindo, inconvincente. - Aja, sem reagir. Esmague-o com toda a altivez da sua indiferença e, em breve, a petulância do Adamastor há-de amainar!

Longos minutos após ela se despedir, atónita e sem jeito, ainda Rui Ruivo sorria, saboreando a liquidez do seu escárnio marítimo. Enquanto ia, secamente, amarrotando o cartão de visita que apresentara Nordestina Serralho – com o nome timbrado de Huno Europa, a solicitar-lhe os melhores préstimos...

Que raio, como se conheciam eles – a pura telúrica a o turvo tártaro? Seria um motivo para o Infante Portugal investigar – se não tivesse a processar outros desígnios, à procela de outros mares e marés!

Aliás, o Infante sempre tivera as maiores perplexidades quanto à vácua personalidade que se eximia como Huna ou Huno Europa – e porém, como Rui Ruivo, bem sabia que a legitimidade para nomear justiça se confinava à assunção, explícita, de quem prevaricasse... Ora de Europa, ele ou ela, tudo se presumia, inevitável e formalmente, pela subtil identidade duma diletância fátua!

Nordestina imiscuíra-se com Huno durante aquelas mirabulantes vernissages que atraíam meio mundo à Sociedade Lusíada de Belas-Artes, e da pior maneira – quando desastrada, e numa gargalhada cristalina, derramou meio cálice de champanhe sobre alguém a seu lado. Ao virar-se, para um pedido de desculpas, logo percebeu que tinha à sua frente um rascunho do que poderia ser.

- Desculpai… Não fiz por mal…

Escudeiro Europa – que não foi ungido com os óleos matriciais, e estava  aliás afectado por uma fuga de gel na junção retráctil – lívido, parecia andrógino no surreal esforço para se manter sob o incógnito heróico. E assim, à beira duma colossal disfunção sob a qual ficaria levitando, ígneo, antes permaneceu, mesmo de rastos, entretido pelo trinar em surdina daquela, e a partir de então, sua correspondente acidental.

Harmonias e desequilíbrios... A arma, sim, a alma, não.

Do literal ao figurativo, o certo é que em José Adamastor, embora de pouco tino, prevaleceria um sujeito pacato. E acabou zarpando para outras margens de encantamento. Sem nunca deixar de arrostar, qual coriáceo estorvo, do litoral ao figurão. Com um sucesso torpe, entre lástimas e lamúrias... A par e passo, no fundo tropeçava. Guinou a tiro. Tirando as brancas meias, era um forte sem ameias, com a frouxidão dos pés de chumbo.

Nessa altura, a alvura de Lisboa toda se suspendia sobre as pestanas do assombrado Nero Faial – instável estrela oficial, experimentando-se como novel empossado num recanto de requinte do seu gabinete da Fundação de Artes Narcisistas, alcandorado em plena Lapa. Pois, se até aos mais soturnos a lucidez nega-se, pela nesga do olhar, à enviesada visão dum compasso relacional…

Tal Nero Faial intimamente conjugava, intermitente entre uma fractura anti-ética como Vulcão, e a recorrência sensual do assédio de Plevna Kostoglotov, aliás Oktobraia, com a ignara provação que forjara à predilecta Vénus, ainda a abrasá-lo.

Então, Vénus… Estaria ela amuada? E quanto à calórica Plevna… Teria ela arrefecido?

Para Vulcão, havia dúvidas do Vénus operandi, mas Nero Faial esbanjava certezas sobre a fervura de Oktobraia. A pilhagem mútua em que se rastrearam nos últimos tempos, entre as manhas e os miados, era uma doidice garrida de provocação e prevaricação.

Ele, refractário iconoclasta, aviando-lhe num tratamento circunflexo a receita do costume:

– Você não tem juízo, muito menos memórias...

– Fui saqueada disso, também... É culpa minha? – choramingando, trocista e falsa, enquanto dela emanavam relâmpagos e clarões.

Nem blindagem emocional, nem clivagem marcial. Apenas um limbo de exílio, de existências incontinentes, múltiplas, amotinadas e adulteradas na balbúrdia abissal do Céu à Terra.

Corpos incorruptos… Seres que se transformavam numa pantominice patética, poética – como os descrever assim, escrever a sua história? Eis uma empresa ingente, de melindre utópico e de miséria romanesca, apenas acessível a um historiador prestigiado a prestidigitar tanto a cábula como a cabala...

Com que voz? Nada que embargasse – nada que abraçasse aqueles tais no enxovalho duma verve silente, nem que, para contar, mesmo os embaraçasse qual xarope de malvas ou de urtigas. Ora, problemas de raiz, cantos de asa cortada, nunca se resolveriam pela abdução em panaceia, ou pela mera prescrição dos rebuçados de mentol.

Nisso, a pigarrear, matutava Jacinto Magno – após noites recentes mal dormidas que, insistentemente, o vinham desassossegando para uma inspiração inquieta, megalómana – até germinar em projecto formidável: dar corpo a novo épico lírico, virtual, de feição clássica, porém virado para o futuro.

Intitulado Os Atlântidas, e havia de consumá-lo – nem que, para tarefa tamanha, tivesse que pôr em causa todo o seu prestígio, desabrochar num renascido autor!

O pior, era a incipiente verve rítmica, que por vezes o tramava – algo que parecia inadmissível a um especialista do léxico neutro, a um veterano da prosa artificcional...

Quem lhe valia, então, era a amiga de sempre e primeira confidente, Rosa dos Ventos – outrora actriz residente e retirada do Teatro Nacional, que entretanto se entretinha a fazer luxuriantes figurações em fitas publicitárias sobre o laxante Colex.

Rosa interrompeu-o, compadecida, quando Magno cofiava o cabelo ralo, olhando com desconfiança os seus incongruentes papéis dispersos, à mesa do Café Nicola.

– Estás bem?

– Estou… Preciso de encontrar uma palavra que rime com mundo…

– Que tal imundo?

– Caramba... Isso é profundo!

– Ora, aí a tens…


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