O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO SETE

 





Capítulo Sete –

CONTRAFEITOS À CONTRIÇÃO

Entre a fúria e o fogo, esparge a malícia o seu impasse, tão incapaz de rancores como de remorsos... Assim cismava Jacinto Magno, fluía alta a noite, dando voltas na incómoda cama de bilros. Para um forreta em si próprio, a insónia era um desbaratar da impassibilidade, mesmo na própria impossibilidade dum alheamento.

Involuntário, Magno reportava em seu íntimo abstracto – além do abatimento ou da consciência, como se fosse a papel químico impresso no próprio espírito sempre latente – o inexorável soçobrar dum historial intemporal, quanto à vacilação da estética virtual em detrimento da aberração ética.

Aliás, que esperar numa nenhuma Lisboa, réstia de todos os fenómenos – se os perfeccionistas definhavam na indiferença, quando a consumição avassalava aos proscritos?

Sinais eventuais. Inconformista, por sua vez, o Infante Portugal sentia no ar uma nauseabunda rendição aos valores amotinados. Promíscuo, vagou entre trastes e turistas pelo Panteão Imperial, onde tendia a vaguear sempre que o carácter lhe vogava para um conformismo saudosista. Depois, imiscuiu-se na frigidez do mármore, sem rendição, impregnado pelo calafrio afoito ante os mais venturosos. Era como um folheto mortiço, com o qual se exalçasse a sempiterna cerimónia dos primitivos ressurrectos.

Tal carícia imaculada reiniciou-o – para a posteridade duma gesta gasta, para a menoridade dum desígnio insigne. Sublime e néscio. Lembrou-se, então. Enquanto Rui Ruivo, havia à sua espera uma agenda imperativa, carregada de vacuidades. Logo, de ali a meia hora, assistir à solene tomada de posse na Vereação do Município... Um predisposto a confrade de eleições supletivas, tinha que despachar-se!

Tanto à pressa, o nó da gravata podia mesmo esganá-lo – até porque Deodato Roble nunca se habituaria aos hábitos de que se revestiam tais prosápias. Heroicamente, preferia o seu fato de Fado. Humanamente, o facto de um colarinho aberto lhe facilitar a circulação de Fluidos, numa estiagem das traqueias, era a melhor postura para aquela mania do inato à vontade. Mas um alívio de nada lhe valia, entretanto, quando a pressa de circunstância o bulia, todo, a ponto de cismar na depressão.

Deodato acabou de aperaltar-se e, graças a um subtil processo de desmaterialização, atalhou caminho para o Terreiro do Paço, entre cujas colunas readquiriu a mais formal postura física e prosaica. E assim, em passo lesto, assumindo uma impermanência visível, chegou ao final do seu destino. Indiciando alegoricamente, pois que o trilho perambular dum mito que era ele em Fado tem mutações catárticas, altos e baixos, paranóia, porém nunca colapsa na inconsequência de veleidades terminais, nem sequer se interrompe em qualquer beco sem saída.

Como ali. A nata dos fantasmas públicos. Quais figuras mascaradas enxameavam de entrudo por todo o Salão Nobre – prosaicamente, reconhecendo-se e felicitando-se com uma frivolidade subjacente, que o cinismo engalanava à histeria bacoca, sob o privilégio da constância protocolar.

Génio ovante, boémio e fraldiqueiro, Deodato Roble deitava pois o Fado para trás das costas, enquanto ganhava peito, de braços abertos, com um sorriso cívico, em direcção aos circunstantes concelhios e demais vinculados à cerimónia. Entre tantos, algumas. Como que a limpar-se, o conspícuo Deodato depositou um breve beijo no rosto espicaçado de Ofélia Luna, a qual faiscou simulando uma encantada indiferença, e lesto observou o grupinho ao lado, em que vários varões rodeavam uma espécie de lambisgóia, intrigante para ele, e tiritando com ardor.

Jamais frígida, aliás, nunca Vénus reprimiria aquele entusiasmo natural, com que atraía todos os seres vivazes, em qualquer circunstância. É certo, expunha-se agora por provisória motivação, infiltrada, à cata de incautos, ilustres ou não tanto, fracos em cuja pedante pusilanimidade inculcasse o germe da imprudência, preparando pois terreno onde o omnívoro Vulcão havia de cultivar um ávido pandemónio de necessidades sem abstinências, de carências sem falácias, de ganâncias sem escrúpulos.

No mais, e para a favorita do Vulcão, aquilo levedava em fantochada mediática, em gandulice bestial, em gabarolismo proxeneta. Porém, nada que lhes beliscasse a pompa, a prosa ou a proeza – como Rui Ruivo validava a certa distância, fingindo atender a mais uma prelecção proverbial pelo bocejante Jacinto Magno, com vagos assentimentos de cabeça, enquanto reparava mesmo na tangência oblíqua que Ofélia monitorizava até Deodato, de costas para ambos e ávido de Vénus. Se ela continuasse assim, embora implícita na pulsão de Fada, iria repreendê-la nalgum próximo transe formal, como parceiros causídicos...

Vai de lá e sem cautelas, a golpes de ofendida vaidade, Ofélia acercou-se lenta até Vénus e Deodato, tentando suster-lhes o fluxo sensual e, irónica, atingir o fátuo Fado em vão – farta de saber que ele era um intocável!

– Só agora, já com o espectáculo prestes a começar...?

Logo, rápido em réplica, Deodato dirimiu tal insinuação à pontualidade, com a insolência original com que aprimorava o Fado:

- Ora, quando eu chego, é que o tempo principia…

O sussurro de gargalhadas pareceria blasonar tal panaceia. Presunções frívolas. Humanos artificiais. E, tudo isto, nos resquícios dum império trágico-marítimo de rastos, feito de rostos fortuitos, consagrado na barganha e bagunça, farto em especialidades e especiarias, forjado de impropérios e prosperidades, depauperado e demérito…

- És um falso, mas tens ardor... - preconizava mentalmente Vénus, ao assistir complacente, talvez por ser novata em tais rituais, a um carismático discurso de Nero Faial, na investidura como Curador da Fundação de Artes Narcisistas.

- Uma delícia... O saber do amor, o sabor de amar. O tempero da existência, a têmpera dos ideais... - e Nero Faial embargava-se na sua própria verve, enquanto de soslaio ia tentando aquilatar a Vénus, que resplandecia entre a circunspecta abstracção dos tantos mais.

Tê-lo-ia desmascarado? Saberia quem ele era? Intuiria a extrema provação em que traiçoeiro, por cio ou por ciúme, havia decidido testá-la? Instruindo-a, atraindo-a ao melhor clímax de seu protagonismo ambíguo? Incitando-a, expondo-a ao apetite colateral dos seus piores antagonistas?

Não, Vénus estaria confiante e, tão só, a esmerar-se na funesta candura de quem ama o amo, no desvelo de cumprir quaisquer ordens com que a instigasse, em prol de um desígnio soberano e infernal...

- Enfim, esforçam-se os neófitos e os prosélitos, embaçam-se os patetas e os peripatéticos! - rematou, disperso, Nero Faial.

Mas, se não houvesse um Mal maior, a Suprema Entidade da Perfídia? A ser assim, Vulcão sentia-se inquieto e estupefacto, pois nesse caso, órfão, o principal responsável no nome de quem urdira, em vão, as mais ignaras atrocidades, seria ele próprio, nefando e incólume – porventura, e cerrou os dentes, um monstro inimputável.

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