O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO SEIS

 





Capítulo Seis –

SOB O SUOR DA ENGRENAGEM

Aos poucos, a Lisboa estival recuperava de uma daquelas tempestades eléctricas, que lhe punham o asfalto a fumegar e as sarjetas cheias de detritos.

Para as bandas de Monsanto anoitecia e, já perdendo a sua invisibilidade, Escudeiro Europa poisou-se a custo, abrupto, em pleno relvado no Estádio do Jamor, qual mausoléu deprimente e fantasmagórico.

Porém, Escudeiro Europa não tivera opção, precisando por instantes de um local solitário onde pudesse refrigerar a carcaça de titânio que se lhe colava ao corpo.

Estava envolvido num confronto arrasador, a que escapou, apenas, graças a tal subterfúgio provisório. O atroz casal adversário deveria pairar, por alto, tentando localizá-lo. Como um predador dividido, frustrado, em catarse – à caça da sua presa, ferida e indefesa.

Desta vez, quase lhe fora fatal. Um duro golpe de rapina atingiu a sua armadura cibernética, afectando pela parte óssea os circuitos integrados, até ao cerne da cartilagem.

Porém, naquele poente húmido e fulgurante, o guerreiro subjacente não tardaria a recuperar. Propício à lua cheia, o sangue fervilhava-lhe de azoto, o sémen refulgia-lhe em hemoglobina. Acicatando o estro mutante na ascese de uma desforra mística e visceral.

Para tanto, havia que dar largas à sua apoteose transformista, em plena náusea germinal que Escudeiro Europa apenas poderia consumar através duma indução linfática.

Padrão, diapasão. Seria efebo ou anfíbio? Nunca se ligara aos tais detalhes, quanto a Escudeiro Europa. Sem nome próprio, em autenticidade, não queria ser tratado como um sufixo alegórico... Generalizando, apenas galvanizava a sua pendência assexuada, além das discrepâncias entre músculo e silicone. Impessoal, quantas vezes dissipou-se e recompôs-se, robustecido em sonhos e sanhas de varinas e varões!

Assim, Escudeiro Europa agia ou fingia – num ansioso emaranhado entre tranças e transes, separando a lingueta hidráulica que conservava as partes instáveis da sua compleição: em gesta de mancebo – era então um dragão, rijo como raízes ao fixar o basilisco; em gesto de donzela – era então uma serpente, mole como areia ao fluir pela clepsidra...

Logo, urgia a Escudeiro Europa restabelecer o nexo humano e mecânico, escapando ao lusco-fusco do descampado monumental em que outrora, e desportivamente, se empertigara a glória do Estado Novo. Lograria, então, o seu desforço ingente para voltar à liça, triunfal, contra os contendores fatais, e sempre prestes a tramar.

O Duo Dilúvio, Auzenda Ausente & Abel Vertigem. Tarimbados na castraria, entre o tiro e o tirocínio. Abel era um abelhudo, mais conhecido pelo Mocho Macho. Torpe contorcionista, famigerou-se Auzenda como a Besta Seca.

Escudeiro Europa temia, sobretudo, uma avaria crónica que lhe perigasse o calculismo – quanto ao seu género compatível de parecer, para ser. Insigne, nunca percebera muito bem a fulanização replicante dos paladinos e dos valdevinos, que se consumiam em contrastadas existências ubíquas, alternativas. Em si, não – chamando-se, persistia integral numa remodelação sintética, pela qual a sua matriz mista catalisava, invariável, para o signo varão ou fêmea.

Esgroviada ao atasque, lá do alto, a Besta Seca emitiu, nesse instante, alguns silvos estridentes que claudicassem Escudeiro Europa. Nada feito – pois, entretanto, tal eminência parda alavancara-se da prostração – derivando já, graças ao seu condensador capilar e a desviantes cosméticos sensoriais, numa calmeirona vernácula. Daquelas que, solícitas, costumam passarinhar no pulmão alfacinha – e de onde, em emanações subliminares, tentava cindir o Duo Dilúvio, incitando a desfaçatez orgástica do indecente Mocho Macho.

Fendendo a relatividade alar, foi porém a Besta Seca que, aterrada, se lhe pôs à frente, surgindo de atrás duma acácia centenária. Latente, aos modos caprichosos de uma mulher-polícia:

– A menina tem licença para trilhar estes caminhos ínvios?

– Olhe lá como fala... – tentou distender-se, fazendo figas, a suposta interlocutora. – A vida, já em si, é tortuosa e, a minha, há muito que a ando a calcorrear!

– Pois sim, mas, pelos vistos, não arreia... Então, qual é a sua graça?

– Sabe como é... Depois duma chuvada como a de há bocado, estou mais húmida que com humor – desabafou, forçando uma gargalhada prazenteira à Auzenda Ausente, a pretensa paisana. Enquanto, sub-reptícia sob as voláteis vestes, premia um célula da sua intrínseca engrenagem que, geneticamente, lhe facultasse de imediato uma cédula de identidade.

E prosseguiu, de mão estendida, erguendo a voz:

– Tome, pois... Bem pode ver que sou maior e vacinada!

– Pode ser que sim... – ripostou, mal refeita, a outra. – Também, com um nome tão esquisito, até rodagem não lhe deve faltar!

Eis quando Abel Vertigem se acercou, também fardado a rigor mas prosaico de excitação. Só que Auzenda não deu vantagem, passando-lhe o passaporte que atestava uma tal Huna Europa.

– Engano-me muito, ou estamos perante um exemplar de emigração ilícita e profissão clandestina...

Chocarreiro, Abel contrariou-a:

– Ou vice-versa, quem sabe! Emigração clandestina... Ou profissão ilícita... Ora, deixa-te disso. Não te esqueças que a própria legalidade é, muitas vezes, duvidosa...

Depois, imperativo, devolvendo o documento à procedência:

– Tu, aí... Abala!

Por instantes, contemplou-os Huna com ostensiva defensiva. Porém, ao segundo segundo, segundo os parâmetros automáticos de Escudeiro Europa, evadia-se pelos seus pés em direcção ao Aqueduto das Águas Livres, enquanto ia remodelando a cápsula simbiótica.

Muito lá para trás, numa erecção frustrada, o Mocho Macho postou-se perante a Besta Seca, debicando a poção cebácea que se lhe aninhava na cabeça como inteligência.

Entre rezingada e resignada, ainda ali estacionava Auzenda Ausente, num chilique. Tão bem conhecia o parceiro, que esperava um iminente pinote de Abel Vertigem, a espernear pelo azedume.

Amo e amor, um contra-senso.

– Leste aquilo? Agora, até do Leste por cá atacam... – amainou o Mocho Macho, farto na frustração.

E, com a Besta Seca à cintura, assim rumaram, cabisbaixos, para o seu casulo infecto na Buraca.

O obtuso e o abstruso, um fiasco.

Escudeiro Europa oscilou, jactante, no topo do zimbório da Basílica da Estrela – onde, entretanto, se perfilara a espairecer, funâmbulo, espargindo emanações fosfóricas.

Afinal, podia ter sido pior. Poderia ter petrificado em gárgula no Jamor! E, embora ferreamente empedernido, sentiu um visco grosso escorrer-lhe entre as virilhas.


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