O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO DOIS

 





Capítulo Dois –

O VULCÃO DE VOLTA À LIÇA

Vulcão deteve-se em mais uma das suas formidáveis gargalhadas, à beira da combustão apoplética, logo absorvida pelo controlo sobre-humano e com a ajuda de saliva, que lhe permitiu refrigerar a garganta calcinada e humedecer os lábios. Tinha atingido, pois, os seus ínvios desígnios, ao inquietar o insuportável Infante Portugal – surpreendendo-o no seu quotidiano vulnerável, desfeiteando-o no próprio leito burguês em que se refugiava, sob a identidade de Rui Ruivo.

Onde Vulcão se acoitava, seria algo irrevelável – e, além dos fiéis serviçais, apenas consabido por uns quantos, poucos cérebros que lideravam a malvadez num Portugal volúvel, clandestino, os quais aliás se submetiam às caprichosas ordens do diabólico superintendente. E o Vulcão – cuja eventual personalidade comum era, isso para todos, uma incógnita – desfrutaria, mesmo, de excepcionais prerrogativas ao nível internacional da tentacular hierarquia criminal! O que lhe conferia ilimitados, ridículos privilégios – como haver convertido o seu vil covil num antro de luxo e luxúria...

Mais fantástico, porém, é que as proezas do Vulcão se processavam numa espécie de universo paralelo àquele mundo trivial, de rituais e de rotinas, em que vivia a maioria da gente vulgar, obcecada pela lógica de subsistência, determinada por uma cultura entre deveres e haveres, morais ou civis, sem ousar nos desafios em que tudo se põe em causa, para além da natureza ou da normalidade. Portanto, o reino do Vulcão, que abencerragens como o Infante ousavam invadir, ou ameaçar, projectava-se pelos confins de uma realidade imaterial, alternativa.

Desta vez, o exultante facínora lograra, pois, preceder um Infante Portugal inoportuno, antecipando qualquer arremetida com ele que o provocasse. Aliás, o que poderia ser? E, como retaliar-lhe? Subitamente, em vã perplexidade, o Vulcão sentiu-se incomodado e paradoxal.

Paradoxal, era compreensível. Porém, incomodado... Lesto, desconfiando, Vulcão olhou ao seu estranho redor – entre espirais de enxofre, néones de lava, mobiliário gótico e propícios acólitos – até se deparar, a uma distância furtiva, com o sorriso insolente da voluptuosa Vénus!

Constrangendo-se, em flagrante, a sua cúmplice mais íntima pareceu ficar petrificada. Mas logo, já refeita, Vénus ousou dirigir-se ao Vulcão:

– Mestre... E o que nos reserva, agora, a vossa bizarria?!

Vulcão olhou-a de alto a baixo – ou melhor, na horizontal, porque ela achava-se toda exposta numa camilha, desleixada e provocante...

– Mulher, mulher – balbuciou, com um esgar equívoco, o monstro da perfídia – não me confundas também tu, em virtude dos meus vícios! 

Vénus pôde conter-se. Entre uma abusada indulgência aos apetites esquisitos do Vulcão, e uma bisbilhotice preguiçosa com as demais no harém, o que mais lhe agradava era aquela latente pasmaceira enquanto favorita. À espreita, à espera. Mais que exibir-se ou o resguardar de privilégios, insubmissa à tradição, a insinuante cortesã investia, assim, numa eventual distinção à escala suprema do destino – ousando a sagração ou a fatalidade, qual agente de uma rara estirpe, mitificada em missões de alto risco.

Vulcão, ciente da irreverência temperamental de Vénus, preferiu descomprimir a situação. E a melhor maneira para não fragilizar a sua supremacia, afinal, seria salvaguardar a solenidade das distâncias... Por consequência, abstendo-se.

– Bom... Vou retirar-me! Recolherei aos meus aposentos particulares...

E, num rompante impulsivo, Vulcão abandonou aquele recinto mórbido, sensual, de almas penadas e ambições levianas. Depois, transposto um sinuoso reposteiro entre aparências vivas e naturezas mortas, já na antecâmara matricial, ganhava vulto o pintor Nero Faial que, decisivo, se desprendia dos sinais aleatórios. Era um artista ambíguo, sem mácula, que tanto gostava de captar alusões e emoções, capturando-as na ténue textura plástica com que extasiava aduladores fervorosos ou anónimos admiradores…

– Afinal, o que andamos aqui a fazer? – questionou-se Nero, falando alto para si próprio, enquanto se dirigia, acalorado, até ao banheiro.

Pelo caminho, ia pois retirando, à pressa mas com souplesse, aqueles trajos carnavalescos, os adereços e os vários apêndices da sua caracterização existencial. Afinal, nada melhor que um duche retemperador, para limpar as impurezas duma vivência tão alucinada, de fúrias e de flagelos, dúbia, em descida aos infernos entre o fausto cosmopolita e a desolação mais irrisória!

Pouco depois, Nero ressurgia em si mesmo, com uma líquida expectativa sobre o que lhe reservariam as horas próximas... Fora do tempo em que languescia na outra exuberância fátua, predestinada, nada apreciava mais do que entregar-se à sorte vária, à própria expressão do acaso, dissolvendo-se integralmente pela espuma dos dias.

Era alma de criador – fantasista, vulcânica. Como um vampiro do fogo, que se materializasse sem consciência pessoal. Ou apenas impersonando estigmas pictóricos das suas fulvas telas, sempre avidamente disputadas nas principais galerias de uma galáxia impressionista, petulante mas efémera.

Em abono da verdade, havia uma memória oculta, incrustada nos recônditos mais humilhados da sua filiação original: ser gerado por pai incógnito, a mãe era uma modesta modista em atelier de baixa costura, lá para os lados do Calhariz. Também, pouco interessaria, pois a criatura foi exposta na rua, e recolhida pela Santa Casa da Misericórdia. Porém, Nero Faial sabia de tudo, e apenas selou para si o invólucro da decepção, após investigar até aos primeiros sinais de haver nascido.

Aliás, e no seu íntimo, conservava uma rara experiência breve e nítida da adolescência, certa vez em que a vagabundagem solitária, pela Lisboa periférica lhe impusera, enfim, o descanso prazenteiro sob o alpendre de uma das hortas lá para Sete Rios. Algo de efusão estética, matricial. As patas dos pombos volteando, vistas debaixo e através daquele telheiro transparente, fosco, já calcinado pelo sol abrasador, pareciam estigmas impressionistas, móveis, a que alguma cagadela de ocasião conferisse uma pontuação psicadélica que, a partir de então, logo permanecesse em vão, e marcada para sempre.



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