O INFANTE PORTUGAL
Primeira Jornada

CAPÍTULO UM

 





Capítulo Um –

CONTRA AS FORÇAS DO DEMO

Nessa manhã, bem cedo, já fazia um calor tórrido, e Lisboa custava a despertar. Não muito longe dali, no requintado Condomínio Alípio Ayres onde residia, a poucos quilómetros de Cascais, Rui Ruivo sentia o corpo amortalhado num lençol de suor, sem ânimo para se erguer do torpor de seu leito solitário e incaracterístico.

Porém, algum dever parecia tomar-lhe a vontade, cativá-lo, espevitado por um apelo ainda mais premente que o próprio desígnio humano, ou uma qualquer obrigação profissional. Rui Ruivo readquiriu, pois, a sua consciência primordial. Sobretudo, e numa tradição de valorosos Condestáveis, ele era – hoje em dia – o Infante Portugal!

No entanto, entre as contingências da sua identidade secreta e os compromissos de figura pública, Rui Ruivo debatia-se, intimamente, quanto à transcendência dos desafios da justiça – sondando o abismo social como advogado de sucesso, ou apenas contrafeito no hipnótico elã dum paladino paradoxal.

Sem horas para si mesmo, nessa dualidade, Rui Ruivo era pois um indivíduo complexo, incompleto, que arrostava a sua sombria expiação entre as luzes e as trevas. Quase sempre insone, ou então com pesadelos, os meios como causídico ou os termos de um clímax, enquanto Infante Portugal, significavam sempre, para ele, a horrível angústia em repouso do guerreiro…

Então, seguindo um aprimorado sexto sentido pessoal, o telemóvel Magma, último modelo, estremeceu em toque silencioso. Com um gesto brando, Rui Ruivo ligou o sofisticado sistema para registo de comunicações, e atendeu com voz circunstancial. Do outro lado, ninguém correspondeu à sua saudação expectante. Porém, ouviam-se de lá estranhos ruídos, como se compenetrassem uma tempestade magnética.

Já com todo o prodigioso arsenal de percepções suspeitosas em tensão, Rui Ruivo insistiu, colocando um tom neutro de voz:

– Está... Pode repetir quem fala?

Ao ouvido de Rui Ruivo soou, enfim, o antipático som metálico duma gargalhada sinistra, rematada pelas seguintes palavras:

– Porquê, Infante?... Estás a perder qualidades? Acaso não desvendas, como dantes, os teus excelentíssimos adversários?

Como assim?! Alguém que conhecia o seu vínculo anónimo, enquanto justiceiro público? Que ousadia! Ou melhor – embora confinado a uma conversa restrita, quem seria aquele sinistro denunciante? Para saber, nada como prestar-lhe confiança...

Subrepticiamente, Rui Ruivo optou por fazer-se entendido, propenso e, no entanto, vago:

– Só poderias ter tu... Porque não me deixas em paz?

Em cheio! A resposta vinda do outro lado garantiu ao Infante Portugal, de imediato, pôr-se em guarda quanto às perversas calamidades que estariam para se precipitar:

– Com todos os demónios... Quanta insolência! Hás-de pagar, a ferro e fogo, cada uma dessas tuas palavras frívolas...

Rui Ruivo não estava com paciência para mais. Brusco, interrompeu a comunicação, acabando de levantar-se. Olhou ao espelho, e viu apenas o recorte da sua turva imagem. Estava tão crispado, que era capaz, com uma mera onda de choque, de estilhaçar aquele reflexo obsidiante. Aliás, tinha a certeza que, em cada um dos fragmentos, poderia reconhecer os piores inimigos. E, de todos, o infame Vulcão sobressaía como o mais contumaz!

Entre as lavas e as cinzas em cada confronto que antes travaram, páreos, sempre ele renascera terrível ou volúvel, com a sua formidável magma anímica – impossível de se prever, sendo uma fúria ora lúcida, ora lúdica, para atingir os tão funestos desígnios. Palhaço trágico, contendor grotesco, o Vulcão assumia, pois, uma ameaça incómoda, cuja desfaçatez nunca lhe facultaria um alívio jubiloso...

Com o Verão em sua máxima vitalidade, Rui Ruivo abandonara já bastante tarde, na noite passada, o seu escritório num discreto palacete da Rua de Rufino Picão e Chagas, quase ao virar para o Largo de Camões – após discutir, com Ofélia Luna, alguns pormenores sobre a marcação de férias. Não era tanto uma rotina profissional que os preocupava – mas, tacitamente, o assegurar da segurança à Lisboa cada vez mais bizarra e criminal... Pois a bela assistente repartia-se também, e sem que reciprocamente o desvendassem entre si, como uma denodada vigilante de nome Fada!

Solteiro inveterado e por intervenção apologética, Rui Ruivo apreciava as mulheres, mas a transcendência dela como Fada constrangia-o, embora se respeitassem naquela cumplicidade inevitável enquanto raça de paladinos. Por sua vez, Ofélia Luna admirava o homem de leis, enternecia-se com o lutador, porém o seu coração batia em máxima aceleração era quando entrava em ritual o Fado – um outro batalhador da noite, sempre donairoso e neurasténico que, à luz do dia, se prestigiava no intelectual de nome Deodato Roble.

Em certo crepúsculo, durante uma quimérica mutação na qual juntos se galvanizaram, Ofélia Luna ganhou até coragem para lhe propor que se juntassem, e bem coerentemente.

Cínico, o Fado arriscou:

– Para sempre, um final feliz?

Logo desolada, e com melancolia, respondeu-lhe a Fada:

– Não... Podemos sempre ser felizes, mas não podemos ser sempre felizes.


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