Estúdio Raposa

"Vinte Poemas de Amor" - Parte II
de
Pablo Neruda

 


RECORDO-TE COMO ERAS...

Recordo-te como eras no outono passado.
Eras a boina cinzenta e o coração em calma.
Nos teus olhos lutavam as chamas do crepúsculo.
E as folhas caíam na água da tua alma.
Fincada nos meus braços como uma trepadeira,
as folhas recolhiam a tua voz lenta e em calma.
Fogueira de estupor onde a minha sede ardia.
Doce jacinto azul torcido sobre a minha alma.
Sinto viajar os teus olhos e é distante o outono:
boina cinzenta, voz de pássaro e coração de casa para
onde emigravam os meus profundos desejos
e caíam os meus beijos alegres como brasas.
Céu visto de um navio. Campo visto dos montes:
a lembrança é de luz, de fumo, de lago em calma!
Para lá dos teus olhos ardiam os crepúsculos.
Folhas secas de outono giravam na tua alma.


INCLINADO NAS TARDES...

Inclinado nas tardes lanço as minhas tristes redes
aos teus olhos oceânicos.
Ali se estira e arde na mais alta fogueira a minha solidão que esbraceja como um náufrago.
Faço rubros sinais sobre os teus olhos ausentes
que ondeiam como o mar à beira dum farol.
Somente guardas trevas, fêmea distante e minha,
do teu olhar emerge às vezes o litoral do espanto.
Inclinado nas tardes deito as minhas tristes redes
a esse mar que sacode os teus olhos oceânicos.
Os pássaros nocturnos debicam as primeiras estrelas
que cintilam como a minha alma quando te amo.
Galopa a noite na sua égua sombria
derramando espigas azuis por sobre o campo.


ABELHA BRANCA ZUMBES...

Abelha branca zumbes, ébria de mel, na minha
alma e enrolas-te em lentas espirais de fumo.
Eu sou o desesperado, a palavra sem ecos, aquele que perdeu tudo, e teve um dia tudo.
Última amarra, range em ti a minha ansiedade última. Na minha terra deserta és a última rosa.
Ah silenciosa!
Fecha os teus olhos profundos. Ali esvoaça a noite.
Ah desnuda o teu corpo de estátua temerosa.
Tens uns olhos profundos onde a noite adeja. Frescos braços de flor e regaço de rosa.
Parecem-se os teus seios com os caracóis brancos.
Veio dormir no teu ventre uma borboleta de sombra.
Ah silenciosa!
É esta a solidão de que tu estás ausente. Chove. O vento do mar caça errantes gaivotas.
A água anda descalça pelas ruas molhadas. Daquela árvore se queixam, como doentes, as folhas.
Abelha branca, ausente, ainda zumbes na minha alma.
Tu revives no tempo, fina e silenciosa.
Ah silenciosa!


ÉBRIO DE TEREBINTINA...

Ébrio de terebintina e longos beijos,
estival, o veleiro das rosas eu dirijo,
dobrado para a morte do finíssimo dia,
cimentado no sólido frenesi marinho.
Pálido e amarrado à minha água devorante
passo no azedo cheiro do clima descoberto,
vestido ainda de cinzento e sons amargos,
e uma cimeira triste de abandonada espuma.
Vou, duro de paixões, montado na minha onda única,
lunar, solar, ardente e frio, repentino,
adormecido na garganta das afortunadas
ilhas brancas e doces como nádegas frescas.
Treme na húmida noite o meu vestido de beijos
loucamente carregado de eléctricas gestões,
de modo heróico dividido em sonhos
e embriagadoras rosas exercitando-se em mim.
Contra a corrente, no meio das ondas externas,
o teu paralelo corpo aperta-se nos meus braços
como um peixe infinitamente agarrado à minha alma
rápido e lento na energia subceleste.


TAMBÉM ESTE CREPÚSCULO...

Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.
Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.
Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.
Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.
Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?
Caiu o livro em que sempre pegamos ao
[crepúsculo e como um cão ferido rodou a minha capa aos pés.
Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.