Estúdio Raposa

Poesia Erótica 39
David Mourão-Ferreira

 

INDICATIVO

Pela segunda vez em Poesia Erótica, vamos ouvir poemas de autoria de David Mourão-Ferreira.

MÚSICA

Da primeira vez, exatamente no Poesia Erótica 9 (este tem o número 39) li poemas de David Mourão-Ferreira retirados do livro “Música de Cama”, editado pela Presença. Hesitei se o título deste programa deveria ser “Música de Cama 2” ou o nome do poeta. Decidi pelo nome do autor, que é afinal, quem pretendo referir embora, sempre numa perspetiva de divulgação, o editor tem de ser mencionado. Já foi e pronto, passemos adiante.

MÚSICA

Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Lisboa, onde desempenhou atividade docente, organizando e regendo, entre outras, a cadeira de Teoria da Literatura, David Mourão-Ferreira desempenhou um papel de relevo na vida cultural nacional, tendo sido Secretário de Estado da Cultura entre 1976 e 1979. A sua extensa bibliografia engloba uma considerável produção ensaística, com relevo para alguns títulos de crítica literária como Vinte Poetas Contemporâneos, Hospital das Letras ou Lâmpadas no Escuro. A obra ficcional foi várias vezes reconhecida com prémios literários para títulos como Gaivotas em Terra [1959], As Quatro Estações [1980] ou Um Amor Feliz [1986].

MÚSICA

David Mourão-Ferreira exigia ao poeta "autenticidade e um mínimo de consciência técnica, a criação em liberdade e, também, a diligência e capacidade de admirar, criticamente, os grandes poetas portugueses de gerações anteriores a 1950. Sem reservas ideológicas ou preconceitos de ordem estética", características a que acresciam, como exigências, segundo David MourãoFerreira, a reação contra a "imediatez da inspiração e contra o impuro aproveitamento da poesia para fins sociais", através do equilíbrio "entre os motivos e a técnica, entre os temas e as formas".

MÚSICA

Vamos ouvir, neste segundo programa dedicado a David Mourão-Ferreira, e ainda do seu livro “Música de Cama” editado pela Presença em 1994, dois anos da sua morte, vamos ouvir, dizia, cinco poemas. Títulos: Balada, Casa, Ternura, Presídio e Ladaínha horizontal.

MÚSICA

Depois do sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint'anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não ...
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado ...
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos ...
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!

MÚSICA

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão ...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.

MÚSICA

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada ...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio ...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo ...
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

MÚSICA

Nem todo o corpo é carne ... Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco ... ?

E o ventre, inconsistente como o lodo? ...
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor ... Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo ...

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono ...
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

MÚSICA

Como se fossem jangadas
desmanteladas,
vogam no mar da memória
as camas da minha vida ...
Tanta cama! Tanta história!
Tanta cama numa vida!
Grabatos, leitos, divãs,
a tarimba do quartel;
e no frio das manhãs
lívidas camas de hotel ..
Ei-Ias vogando as jangadas
desmanteladas,
todas cobertas de escamas
e do sal do mar da vida ...
Tanta cama! Tantas camas!
Tanta cama numa vida!
Já os lençóis amarrados
tocam no centro da Terra
(que o reino dos desesperados
fica no centro da Terra!)
e os cobertores empilhados
são monte que não se alcança!
Só as tábuas das jangadas
desmanteladas
boiam no mar da lembrança
e no remorso da vida ...
Homem sou. Já fui criança.
Tanta cama numa vida!
Nem vão ao fundo as de ferro,
nem ao céu as de dossel. ..
Lembro-vos, camas de ferro
de internato e de bordel,
gaiolas da adolescência,
ginásios do amor venal!
Barras fixas. Imprudência.
Sem rede, o salto mortal
pra fora da adolescência ...
E confundem-se as jangadas
desmanteladas
no mar da reminiscência ...
Onde estás, ó minha vida?
Sono. Volúpia. Doença.
Tanta cama numa vida!
E recordo-vos, tão vagas,
vós que viestes depois,
ó camas transfiguradas
das furtivas ligações!
Camas dos fins-de-semana,
beliches da beira-mar ...
Oh! que arrojadas gincanas
sobre os altos espaldares!
E as camas das noites brancas,
tão brancas!, tão tumulares!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Ó fragílimas jangadas,
desmanteladas ... !
E nelas há quem se arrisque
sobre os pélagos da vida!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Tanta cama numa vida!
E o amor? Tálamo, templo,
conjugação conjugal ..
O amor: tálamo, templo
- ilha num mar tropical.
Mas ao redor, insistentes,
bramam as ondas do mar,
do mar da memória ardente,
eternamente a bramar ...
Já no frio dos lençóis
há prelúdios da mortalha;
e, nas camas, sugestões
fúnebres, torvas, pesadas ...
- Sede, por fim, ó jangadas
desmanteladas,
a ponte do esquecimento
prà outra margem da Vida!
Sede flecha, monumento,
ponte aérea sobre o Tempo,
redentora madrugada!
Se o não fordes, sereis nada,
jangadas
desmanteladas,
todas roídas de escamas
da margem de cá da Vida ...
Pobres camas! Tristes camas!
Tanta cama numa vida!

MÚSICA

Ouvimos neste poesia Erótica 39, poesia de David Mourão-Ferreira, retirada do seu livro “Música de Cama” editado pela Presença.

MÚSICA

Dois dedos de conversa

INDICATIVO

A saga continua. Quem acompanha habitualmente estes programas sabe o que se passou. Para quem há muito que não ouve o Estúdio Raposa, em duas palavras eu conto: o conteúdo do Estúdio Raposa, os seus sons, estão a serem vendidos, sem qualquer autorização, por, pelo menos, duas empresas sediadas na China, como ringtones, isto é, toques de telemóvel. Nesta venda não autorizada, logo ilegal e que configura o roubo de propriedade artística, colaboram como recebedores das quantias envolvidas, as empresas portuguesas Vodafone, TMN e Optimus. Contactada a GDA esta entidade que trata dos direitos conexos, ofereceu-se para liderar o processo de suspensão de tais vendas.
Nesse sentido serão contactadas as empresas portuguesas referidas, já que, em relação a sites localizados na China nada há a fazer dado o conhecido desrespeito, neste país, pelos direitos dos autores e intérpretes de obras artísticas.
Logo que tenha mais notícias procurarei divulga-las para que os autores lidos neste programa, sobretudo os que disponibilizaram o seu trabalho no Lugar aos Outros, eles também roubados nos seus direitos, fiquem a conhecer o andamento deste processo.

MÚSICA

Até ao próximo programa.

INDICATIVO