Estúdio Raposa

Poesia 37
Do Século de Ouro Espanhol

 

INDICATIVO

Como não poderia deixar de ser o Século de Ouro Espanhol correspondente aos reinados de Carlos V e Filipe II (a acabou por ser I de Portugal) foi um período que se estende da segunda metade do século XVI e século XVII, e onde, em paralelo com o poder político, as artes, e em especial a literatura floresceu e tomou grande altura.
Neste programa ouviremos poesia erótica desse período.

MÚSICA

Encontrei há algum tempo, com ar perdido, (se é que um livro pode ter esse ar) encontrei um livrinho, dizia, com um título que me fez comprá-lo mesmo sem o abrir. Pudera, intitulava-se “Poesia Erótica”. Trata-se de uma edição brasileira da “Companhia de Bolso” onde podemos ler poesia erótica que vai dos gregos aos surrealistas. Pelo meio, a poesia erótica do Século de Ouro Espanhol e é dele que vamos ouvir cinco poemas, todos, de autores desconhecidos.
Os poemas deste livro são traduzidos por José Paulo Paes, investigador, tradutor, ensaísta e poeta, natural de S. Paulo e já falecido.
João Paulo Paes escreve um notável ensaio sobre poesia erótica que surge como prefácio deste livro e é dele que retiro algumas passagens.

MÚSICA

Escreve José Paulo Paes:
No prefácio que escreveu para uma antologia de versos eróticos de autores de diversas épocas, o poeta Richard Eberhart começa perguntando-se por que alguém se disporia a perder o seu tempo com essa modalidade "menor" de poesia quando o poderia usar mais vantajosamente para ler ou reler a "grande" poesia do passado e do presente. Logo adiante, responde ele próprio a tal pergunta crucial com duas outras perguntas. O sentido da primeira - será que a poesia serve para excitar? - é reforçado pelo sentido da segunda: em vez de ler poesia erótica não seria melhor ir diretamente à carne?
Usando o mesmo método socrático de responder uma pergunta com outra, poder-se-ia aventar, dentro dessa ordem de ideias, se não seria melhor ir diretamente para a guerra em vez de ler um poema épico, ou cometer diretamente um crime em vez de ler um romance policial. Pois o que parece estar em jogo aqui, segundo dá a entender a importuna locução "em vez de", é uma confusão entre o imaginário e o real. Pelo simples fato de ser uma representação da vida, a literatura não se confunde absolutamente com esta nem lhe pode fazer as vezes. Trata-se, antes, de um prolongamento, de um complemento dela, mesmo porque já se disse que a arte existe porque a vida não basta. Assim como ler não substitui o viver, tampouco a experiência sexual literariamente representada ou figurada pode proporcionar o mesmo tipo de satisfação que a experiência da carne; nem seria esse o seu intuito. Supor que um poema erótico digno do nome de poema vise tão-só a excitar sexualmente os seus leitores equivale a confundi-lo com pornografia pura e simples cujos efeitos imediatos de excitação sexual é tudo quanto, no seu comercialismo rasteiro. O que se não quer que aconteça com poesia erótica.

MÚSICA

Deixemos a discussão sobre erotismo e pornografia aos entendidos e passemos a ouvir, sem interrupção, cinco poemas escritos por anónimos no tempo de ouro de Cervantes, Lope de Vega, Garcilaso, Quevedo e Luis de Argote y Gongora, entre tantos outros.

MÚSICA

Consentiu certa dama na porfia
insistente do seu enamorado.
Julgou, por seu nariz, estar provado
que ele outro tanto alhures possuía.

Mas enganou-se nessa profecia:
bem pouco o dele, e o dela demasiado,
de sorte que ele, em sítio tão folgado,
não sabia se entrava ou se saía.

Disse-lhe a dama perturbada e triste:
"Vosso nariz pregou-me uma partida."
Ao que ele respondeu com brejeirice:

"Que um defeito que tal não vos contriste;
se pelo nariz meu fostes traída,
o vosso, dama, só verdade disse."

MÚSICA

Entre delgada e gorda é a figura
que a dama deve ter quando formosa;
e a meio da negrura e da brancura
se põe a cor de todas mais graciosa;
a meio da dureza e da brandura
faz-se a carne da fêmea mais gostosa.
Enfim há de ter tudo pelo meio,
pois o melhor de tudo está no meio.

MÚSICA

À beira d'água estando certo dia,
descuidada, uma dama primorosa,
de mirar seu inferno desejosa
e vendo-se ali só, sem companhia,

a saia ergueu, que vê-lo lhe impedia
e, feliz de ver coisa tão preciosa,
disse, com doce voz de quem se goza,
e que de dentro d'alma lhe saía:

"Por vós eu sou de tantos requestada,
por vós me dão colares e pulseira,
sapatos, saia e manto para o frio.

"Um beijo quero dar-vos" e baixada
para o dar escorregou na beira
e de cabeça despencou no rio.

MÚSICA

Por terem argolas,
me pediu Teresa
sacar com presteza
meu cajado e bolas.

Tirei de bom grado
cajado e gabão.

Se me vissem, João,
jogar com cajado!
Libertou-se Inês
da roupa e do afogo,
começou o Jogo
de um e dois e três.

Dois pontos então fiz,
de enamorado.
Se me vissem,
João, jogar com cajado!

MÚSICA

Porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.

Enquanto, mãe, eu dormia,
do que muito me arrependo,
senti a mão dele que ia
a camisola me erguendo;
se bem que agora me ria,
lembrá-lo me dá temor,
porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.

Tão logo, como vos digo,
adormecida me viu,
pôs-se a apalpar, sob o umbigo,
o com que Deus me supriu;
quereis que, por meu castigo,
ainda lhe tenha amor?
Porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.

E pouco depois lá vinha
a sua perna atrevida
introduzir-se entre as minhas
para me abrir a guarida;
juro que nunca na vida
padeci tamanha dor
porque me beijou Perico
porque me beijou o traidor

E quanto mais se agitava,
mais ficavam deleitosos,
dois mil gozos que me dava
como açúcares cremosos.
Deu-me beijos tão gostosos
que deles guardo o sabor,
porque me beijou Perico,
porque me beijou o traidor.

MÚSICA

Ouvimos, neste programa cinco poemas que nasceram no Século de Ouro Espanhol.
Até ao próximo programa.

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