Estúdio Raposa

Poesia Erótica
O Livro dos Beijos

 

INDICATIVO

Divulgando “Mil Vezes Mil Beijos - O livro dos beijos” uma edição da Minerva Coimbra com poesia de Jean Everaerts, trabalho com introdução, tradução do latim e notas de Carlos Martins de Jesus.

MÚSICA

Quando, em 1887, pela primeira vez os críticos de arte franceses apreciaram a escultura em mármore de Rodin que, mais tarde, receberia o nome simplista de "O Beijo", foi o choque a reacção mais imediata ao forte erotismo que a obra encerrava. O artista inspirara-se na paixão avassaladora de Francesca da Polenta pelo jovem Paolo, irmão mais novo do seu esposo, Giovanni Malatesta, narrada por Dante no Canto V da Divina Comédia, círculo segundo, dedicado aos luxuriosos. Dizia Francesca, nas palavras do poeta:
Quando lemos do desejado riso
a ser beijado por tão grande amante,
e este, que de mim seja indiviso,
a boca me beijou todo anelante. I
Francesca conta como a leitura de um romance de cavalaria, no momento em que Guinivera e Lançarote se beijavam, despertou em si um desejo que não mais pode conter-se, uma chama inextinguível que, qual lava de vulcão adormecido, teve enfim que ver a luz do dia. Assim se cometeu o adultério que levaria estes amantes do século XIII ao Inferno. No entanto, um olhar mais atento para a escultura de Rodin permite constatar que Francesca e Paolo não chegam a tocar os lábios. Talvez por isso o quadro, de estilo neoclássico, seja ainda mais erótico, mais sugestivo. O beijo que não chega a consumar-se, na obra em pedra, prenuncia, no entanto, um episódio em que dois corpos nus se fundem e confundem, sem pudores nem quaisquer moralismos. O beijo que é, nesse momento, a única razão da vida de quem o troca, é o mesmo que para eles seria motivo de condenação eterna. Mas também pelo beijo, no fundo, ganhariam a imortalidade.

MÚSICA

No início do século XVI, período caracterizado por um forte fascínio pelos textos clássicos, houve um poeta que, mais do que qualquer outro, dedicou ao tema do beijo grande parte da sua musa. Colhendo inspiração no latino Catulo, Jean Everaerts compôs todo um livro a que se deu, após a sua morte, o sugestivo nome de Basiorum Liber ("O Livro dos beijos"), onde cada poema elegíaco representa, intencionalmente, um beijo, uma modalidade de beijar, uma reflexão diferente sobre o tocar mais ou menos apaixonado, mais ou menos violento de dois lábios ardentes de paixão.

MÚSICA

As palavras que acabámos de ouvir foram escritas por Carlos Martins de Jesus na introdução da obra sobre o poeta Jean Everaets, de seu nome verdadeiro Janu Segundo.
E diz, ainda, Carlos Martins de Jesus:
Em Jean Everaerts, o beijo é o veículo para a paixão e para o amor, para o prazer sexual ou para a simples contemplação da amada.
A amada do poeta recebe o nome de Neera, o pseudónimo escolhido por este imitador da lírica latina. Na mitologia, Neera é uma ninfa amada por Hélios, surgindo depois, entre os latinos, em Virgílio, onde é a amada de um pastor e em Horácio, onde é uma simples puella sem grande visibilidade.
Vamos ouvir, sem interrupção, três poemas de Jean Everaerts em que o poeta se dirige à sua amada Neera.

MÚSICA

Enquanto por aqui e por ali em teus braços delicados
me apertas com força, e sobre mim deixas cair
todo o teu pescoço, o teu seio e o teu olhar sedutor,
penduras-te, ó Neera, nos meus ombros;
e ajustando aos meus lábios os lábios teus
atacas-me com uma mordidela, gemes quando te mordo
e a tua língua trémula fazes vibrar de uma ponta à outra,
e a minha língua, entre queixumes, de um lado e de outro sugas,
com o suave bafo do teu suspiro,
meigo, macio, húmido,
e o alento, ó Neera, da minha pobre vida,
quando sorves o meu bafo fraco,
ardente, torrado num excesso de fervura,
torrado no fogo de um coração desfalecido.
Esquivas-te depois às minhas chamas, ó Neera,
com o sopro de um peito que consome o meu fogo.
Ó brisa deliciosa da minha chama!
Aí afirmo: Amor é o deus dos deuses,
e deus algum é superior ao Amor.
Se há contudo alguém maior que o Amor,
tu, só tu, ó Neera, és maior.

MÚSICA

Que loucura, Ó Neera,
minha doida, te fez
assim atacar,
te fez assim atiçar a minha língua
com uma feroz mordidela?
Será que todas as aguçadas
flechas que de ti suporto sozinho,
por todo o meu peito,
te sabem ainda a pouco?
A não ser que com esses teus dentes lascivos
cometas algum crime
contra aquele membro nefando
com que tantas vezes, ao raiar do sol,
com que tantas vezes ao sol poente,
com que por longos dias
e amargas noites
eu cantava as tuas graças?
Esta é - não vês, Ó ignorante?
esta é aquela minha língua,
que os encaracolados cabelos,
que os cintilantes olhos,
que os seios cor de leite,
que o pescoço tão delicado
da minha adorável Neera
num doce verso levava às estrelas,
muito além das chamas de Júpiter,
para inveja do céu.
Ela que te chamava a minha saúde,
que te chamava a minha vida,
a flor da minha alma,
e te chamava meu amor,
e meu prazer,
e minha Díone,
e minha pomba,
minha branca rola,
para inveja de Vénus.
Por ventura é isso mesmo
que te agrada, na tua altivez:
desferir um golpe naquela
que por ferida alguma
- minha beleza - pode
inchar de tamanha raiva;
que para sempre esses teus olhos,
que para sempre esses teus lábios
e esses teus dentes de luxúria,
que me fizeram sofrer,
no meio do seu próprio sangue,
a balbuciar há-de cantar?
Ó, soberba força da beleza.

MÚSICA

Porque me ofertas esse teu labiozinho em fogo?
Não quero, não quero agora beijar-te, dura Neera,
mais dura do que a dureza do mármore.
Tanto caso farei eu desses teus beijos
inofensivos, ó minha soberba,
que com a verga enrijecida, em riste,
acabe por perfurar as minhas vestes e as tuas
e, enfurecido por um vão desejo,
me consuma, infeliz, com o meu pau em fogo?
Para onde foges? Espera, não me negues
esses olhos, nem esses lábios em fogo!
Agora sim quero beijar-te, minha ternura,
mais tema que a penugem de um ganso.

MÚSICA

Acabámos de ouvir poesia de Jean Everaerts, um poeta do sec. XVI, recolhida no livro editado pela Minerva Coimbra com introdução, tradução do latim e notas de Carlos Martins de Jesus.
Até ao próximo programa, onde, quem sabe, bem podemos voltar a falar de beijos.

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