Estúdio Raposa

Palavras 158
Adolfo Casais Monteiro

 

INDICATIVO

Ouviremos Palavras de Ouro neste programa com a poesia de Adolfo Casais Monteiro.

MÚSICA

Adolfo Victor Casais Monteiro nasceu no Porto em 1908 e morreu em São Paulo em 1972.
A sua juventude foi típica de um filho da burguesia portuense ilustrada e liberal, cedo revelando propensão artística. É ainda durante a sua licenciatura, na Faculdade de Letras do Porto, em Ciências Históricas e Filosóficas, num meio influenciado por Leonardo Coimbra, que se estreia nas Letras com os poemas de Confusão em 1929. Embora nunca ostente a sua formação em Filosofia, ela será indelével em dois aspetos: o interesse pela conceptualização e pela Linguagem, e o norte orientador da liberdade.

MÚSICA

Depois de ter obtido qualificação pedagógica em Coimbra, começa a ensinar no Porto em 1934 no Liceu Rodrigues de Freitas. Casa-se com Alice Pereira Gomes, irmã de Soeiro Pereira Gomes, de quem só se separa um ano após partir para o Brasil, duas décadas mais tarde. No final dos anos 30 e na década seguinte foi demitido do ensino pela ditadura e preso sete vezes, vivendo uma vida profissional atribulada por motivos políticos, mantendo a sua atividade de poeta e crítico através de trabalhos de tradução e edição. Sob anonimato, coordena o semanário Mundo Literário. Não menos relevante é a sua ligação com Fernando Pessoa, que data dos dias em que dirigirá a Presença. Logo em 1942 organizara e prefaciara uma antologia poética de Pessoa, que conhecerá sucessivas re-edições e influenciará sucessivas gerações de leitores. Essa atividade iniciada na crítica e correspondência com o próprio Pessoa na década de 1930 e prosseguida editorialmente na década seguinte, terá no início de 1950 expressão em Francês, traduzindo «Tabacaria» com Pierre Hourcade.
Grande parte do trabalho destas duas décadas encontra-se na reunião de ensaios O Romance e os Seus Problemas de 50; edição modificada no Brasil, mais tarde, como O Romance: Teoria e Crítica. É também sua a fixação do texto primitivo e versão em português moderno da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (2 vols., Lisboa e Rio de Janeiro, 1952/3).

MÚSICA

Em 1954, ano em que parte para o Brasil para participar num congresso mas já com a intenção de aí ficar e enviar uma «carta de chamada» para a mulher e o filho, João Paulo Monteiro, que se lhe juntará em 1963, publica Voo sem Pássaro Dentro (poesia) e vê uma antologia de poema seus surgir em castelhano.
No Brasil mantém atividade poética. Surgirá em 1969, como original nas Poesias Completas, O Estrangeiro Definitivo, além de continuar a organizar antologias, com destaque para A Poesia da Presença em 1959, no Brasil e 1972 em Portugal, re-editada aqui em 2003. Contudo, é sobretudo à crítica e à teoria literária que se dedica. Colaborador habitual de órgãos de comunicação social influentes como O Globo e O Estado de São Paulo, publica regularmente crítica literária que incide equitativamente sobre autores brasileiros, portugueses e escritores de outras línguas.
Tendo ensinado em várias universidades brasileiras, fixa-se em 1962 na Universidade de São Paulo, lecionando Teoria da Literatura, o que lhe permite elaborar aspetos conceptuais da crítica a que dava atenção desde a sua estreia ensaística em 1933.

MÚSICA

Manteve sempre em vista a atividade artística e literária em Portugal onde nunca voltou, como as dedicatórias dos poemas dos últimos livros deixam perceber. Depois de décadas sem que a Censura permitisse, sequer, a publicação do seu nome, em 1969 a Portugália Editora lança o volume Poesias Completas, marcando a receção da sua Obra pela geração que fará o 25 de Abril. Morreu em S. Pualo em 1972 a 24 de Julho.
Será entre essa receção imediata (à falta de melhor termo) que outras obras surgiram, por iniciativa de seu filho e nora, Maria Beatriz Nizza da Silva, no imediato pós-revolução, como O país do absurdo (textos políticos, edição República em 1974 e A Poesia Portuguesa Contemporânea editada pela Sá da Costa em 1977. Progressivamente, as Obras Completas de Adolfo Casais Monteiro começam a ser (re)publicadas na Imprensa Nacional.

MÚSICA

Vamos ouvir, sem interrupção, cinco poemas de Adolfo Casais Monteiro

MÚSICA

FADO

Música triste
desenganado
canto nocturno
a pouco e pouco
vai penetrando
meu coração
Nocturna prece
ou pesadelo
não sei que sombra
aquele canto
em mim deixou.
Febre ou cansaço?
Não sei! Nem quero.
lúgubre pranto
de roucas vozes
não tem beleza
- só emoção.
É como um eco
de noites mortas
de vidas gastas
ao deus dará.
Mas eu o recebo
dentro de mim.
Entendo. Choro.
Eu o recebo
Como um irmão.

MÚSICA

Eu Falo das Casas e dos Homens

Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais.. .
Não me venham dizer que estava materialmente
previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas
das vítimas.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou em profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito instituição,
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
sim, por um momento seremos a dor de tudo isto. . .
Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangüe e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...

MÚSICA

VEM, VENTO, VARRE
A José Rodrigues Miguéis

Vem, vento, varre
sonhos e mortos.
Vem, vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só cobardia.

Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.

Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem, vento, varre!

MÚSICA

Ode ao Tejo e à Memória de Álvaro de Campos

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa -
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei, e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.
Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando
Pessoa se sentava,
contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.
Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória,
e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar!

MÚSICA

O fim da noite

A nossa história é simples: somos
neste momento todo o amor na terra
e nada mais importa, senão
o que sou, verdade em ti,
o que és, verdade em mim.
Por isso este poema talvez não seja
mais que um silêncio pela noite,
nem verso, nem prosa, só
uma oração ao deus desconhecido.

Não é talvez senão o teu olhar,
e tua esquiva mágoa,
o teu riso e tuas lágrimas.
E o apelo dentro de mim
ao milagre de nos querermos,
com a mágoa e com o riso,
- e teu olhar que vê em mim.

Não sei pedir, sei só esperar.
Mas já houve o milagre. Estava
agora comigo ao longo das ruas, que antes
eram só casas de pálpebras cerradas.
Estava no silêncio, que antes
era mortal.

E tu, sem eu saber, estavas comigo.
E sem eu saber de súbito na treva
buliram asas
e sem eu saber era já dia.

MÚSICA

Ouvimos neste “Palavras de Ouro” cinco poemas e uma curta biografia de Adolfo Casais Monteiro.

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