Estúdio Raposa

Palavras 157
Natércia Freire

 


INDICATIVO

Hoje, o brilho da poesia de Natércia Freire. Foi poeta, contista, jornalista e mulher solitária. Escritora durante os anos em que o Estado Novo queria a mulher em casa. Ostracizada pela Revolução de Abril, Natércia Freire acabou por cair num silêncio imerecido. Deixa um legado poético que merece ser (re)descoberto.

MÚSICA

Natércia Freire nasceu em 1919, em Benavente, no Ribatejo e ainda criança muda-se com a família para Lisboa. Começa por dedicar-se à música, mas a poesia é a tentação a que acaba por não resistir.
Em 1932 acaba o liceu. Dois anos mais tarde conhece José Isidro dos Santos, com quem namora e acabará por casar.
Em 1938 marca a sua estreia na poesia, com a publicação de Castelos de Sonho. Segue-se-lhe Meu Caminho de Luz, muito bem recebido pelo público e pela crítica.

MÚSICA

Em 1940, Natércia Freire inicia a sua colaboração com a Emissora Nacional, com palestras mensais. No início da década de 40, talvez a mais pesada do consulado de Salazar, lançou ainda Estátua e Horizonte Fechado, este último também muito aclamado. Natércia ingressava assim no meio poético da altura, sendo íntima de alguns dos nomes mais destacados da poesia de então, como Carlos Queiroz, Cecília Meireles ou Egipto Gonçalves.
Enceta a colaboração com a revista Panorama e, em 1944, estreia-se como professora na Escola Primária da Póvoa de Santa Iria. Começa também a colaborar com as publicações Atlântico e Diário Popular.
Nos anos seguintes, a sua obra começa a ser reconhecida e a ganhar prémios. Natércia Freire vence por duas vezes o Prémio Antero de Quental, por Rio Infindável e Anel de Sete Pedras, publicados em 1947 e 1952, respectivamente.
Segue-se a entrada para o Diário de Notícias, a convite do Director Augusto Castro, pró-regime. Acabará por dirigir a secção Artes e Letras do periódico, da qual só sairá em 1974.

MÚSICA

Deposto o Estado Novo, Natércia é afastada da Emissora Nacional e acaba por deixar, pela sua iniciativa, o DN. A escritora e jornalista inicia assim um processo de isolamento social, profissional e pessoal que se manterá até ao fim da sua vida.
Não deixa, no entanto, de publicar e de colaborar com algumas publicações, como O Tempo ou O Século.
É já no início da década de 90 que é publicado o primeiro volume da sua Obra Poética, prefaciado por David Mourão-Ferreira, seu amigo.
Até ao final da sua vida veio a publicar algumas antologias poéticas e foi alvo de várias homenagens.
Morre aos 85 anos, do mesmo modo discreto por que pautou os últimos anos da sua existência e deixa uma obra sobre a qual o seu desaparecimento venha talvez a fazer incidir alguma atenção.

MÚSICA

Ouviremos de seguida e sem interrupção, seis poemas de Natércia Freire.

MÚSICA

Desapareceram os símbolos das cidades,
Os instrumentos dos símbolos ainda não desapareceram,

É possível que, de repente, de leste a oeste, de oriente a
ocidente,
Nas paredes, no ar, no solo, nos canteiros,
Nos velhos troncos de árvores,
Nos jogos de água viva,

Nas mudas bibliotecas, em livros esquecidos,
Nos palcos dos teatros, nas eléctricas luzes,
Nas orquestras sem pátria dos músicos planetas,

Se revelem sinais, locais de Ásias secretas,

Mas da cegueira à paz, vão ângulos de som.
Os vértices de amor, oscilam ténues fumos,

Os símbolos são homens, esventrados em explosões,
São Osíris dispersos. Deuses em negros versos,
Dos olhos sem retinas - que já todos desvelam,
Dos gestos essenciais - pelos quais todos choram,

Se compõe esta frente em marcha silenciosa,
De esotéricas vidas e histórias demolidas,

De superfícies brancas em sinfonias brancas,
De surdos e de loucos, orquestradas nas ondas.

Bronzes de águas abertas, nas cascatas libertas,
Dos países do Ar para os dias de Sombra.

Por visitar a Lua recebe-se a Loucura.
Por visitar a Luz, recebe-se a cegueira.

É preciso dormir como quem apodrece
E sossegar no pó, sem pena de ser só.

MÚSICA

Um dia partirei, muito cansada,
com as lembranças cingidas ao meu peito
e uma voz de saudade e de nortada.
 
(Levarei voz para gemer de espanto.
Levarei mãos para dizer adeus...
Olhos de espelho, e não olhos de pranto,
eu levarei. Os olhos serão meus?
 
Um dia partirei, talvez manhã.
Uma canção de amor virá das dunas.
 
De finas pernas, seguirei a margem
límpida, boa, enorme, no ribeiro
de água discreta a reflectir miragem,
braços de ramos, gestos de salgueiro.
 
Um dia partirei, muito diferente,
Enfim, aquela que jamais eu fora!
E os de cá hão-de achar que vou contente.

MÚSICA

Nos dias imaculados
Em que ninguém bate à porta,
Naqueles dias lavados
Em que sou anjo e sou morta,

Em que da luz dos desertos
Partem chamadas e gritos,
E à flor dos olhos abertos
Se adormecem infinitos...

Tudo a escorrer frio e ordem,
Horas certas e contadas,
Sem que os soluços me acordem
Mesmo a dar-me chicotadas.

E me rasguem pele e calma,
E me atirem para o fundo
- O fundo da minha alma,
O fundo do Fim do Mundo.

E de rojo, como dantes,
Me larguem pelos caminhos.
E me esmaguem os Gigantes
E me intimidem os ninhos.

E ao curso ingénuo dos rios
Me entreguem como uma folha,
Bem ressequida... e bem morta!
P'ra que ninguém me recolha.

Mudas viagens eu faça
Nas águas que ninguém olha.

MÚSICA

Livre, liberta em pedra.
Até onde couber
tudo o que é dor maior,
por dentro da harmonia jancente,
aguda, fria, atroz,
de cada dia.
 
Não importam feições,
curvas de seio e ancas,
pés erectos à luz
e brancas, brancas, brancas,
as mãos.
 
Importa a liberdade
de não ceder à vida
um segundo sequer.
 
Ser de pedra por fora
e só por dentro ser.
    - Falavas? Não ouvi.
    - Beijavas? Não senti.
Morreram? Ah, Morri, morri, morri!
Livre, liberta em pedra,
voltada para a luz
e para o mar azul
e para o mar revolto…
E fugir pela noite,
sem corpo, sem dinheiro,
para ler os meus santos,
e os meus aventureiros,
(para ser dos meus santos,
dos meus aventureiros),
filósofos e nautas,
de tantos nevoeiros.
 
Entre o peso das salas,
da música concreta,
de espantalhos de deuses,
que fará o Poeta?

MÚSICA

Podem todos rir de mim,
podem correr-me à pedrada,
podem espreitar-me à janela
e ter a porta fechada.

Com palavras de ilusão
não me convence ninguém.
Tudo o que guardo na mão
não tem vislumbres de além.

Não sou irmã das estrelas,
nem das pombas nem dos astros.
Tenho uma dor consciente
de bicho que sofre as pedras
e se desloca de rastos.

MÙSICA

Areia pisada,
areia dorida,
areia beijada,
areia batida,
areia doirada,
areia estendida,
areia rolada,
rolada na vida.
 
Frescura abraçada
ao mar que se vai,
e os braços crispados
pregados num ai.
E a areia rolada
nos olhos profundos,
e as matas de sombra
ao fundo dos mundos…
 
E o paço de pedra
Erguido no espaço
e as capelas tristes
que perco e abraço…
 
E o sonho do vento,
que gela e que deixa,
e a voz que ergo e calo
e é vida e é queixa…
 
Os degraus que subo
e são mais que cem,
e os cisnes vogando
nos lagos de além…
 
E as estradas brandas
onde correm fontes,
e as moças que sonham
sem verem os montes…
 
E os bancos abertos
aos corpos cansados,
e a chuva da tarde
nos parques molhados…
 
E os riscos de luz
que bordam o Céu,
e a cortina branca
que ao Sol me escondeu…
 
E os quartos alheios
que giram à roda,
e as vozes na estrada
que me tolhem toda…
 
E eu dentro de um sonho
suspensa e vibrante
- areia beijada num mar mais distante –
e rica e mais longa,
e presa e mais livre
- sem mal e sem vida…
 
Areia doirada,
areia estendida,
areia rolada,
rolada na vida!

MÚSICA

Ouvimos, no programa de hoje, uma pequena biografia de Natércia Freire que fui buscar à Internet e seis dos seus poemas.

INDICATIVO