Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 154
Al Berto

 


INDICATIVO

Neste programa vamos ouvir poesia de Al Berto

MÚSICA

Al Berto, de seu nome completo Alberto Raposa Pidwell Tavares nasceu em Coimbra a 11 de Janeiro de 1948 e morreu em Lisboa, com 49 anos.
Nascido no seio de uma família da alta burguesia (origem inglesa por parte da avó paterna). Um ano depois foi para o Alentejo, é em Sines onde passa toda a infância e adolescência até que a família decide enviá-lo para a Escola António Arroio, em Lisboa.
Mas em 1967 vai estudar pintura na Bélgica, em Bruxelas.
Após concluir o curso, decide abandonar a pintura em 1971 e dedicar-se exclusivamente à escrita. Regressa a Portugal a 17 de Novembro de 1974 e aí escreve o primeiro livro inteiramente na língua portuguesa: “À Procura do Vento num Jardim de Agusto”.
“O Medo”, uma antologia do seu trabalho desde 1974 a 1986, é editado pela primeira vez em 1987. Este veio a tornar-se no trabalho mais importante da sua obra e o seu definitivo testemunho artístico, sendo adicionados em posteriores edições novos escritos do autor, mesmo após a sua morte. Deixou ainda textos incompletos para uma ópera, para um livro de fotografia sobre Portugal e uma «falsa autobiografia», como o próprio autor a intitulava.
MÚSICA

A expressão poética assumida por Al Berto distingue-se de qualquer outra experiência contemporânea pela agressividade (lexical, metafórica, da construção do discurso) com que responde à disforia que cerca todos os passos do homem num universo que lhe é hostil. Trazendo à memória as experiências poéticas de Michaux ou de Rimbaud, é no seu próprio sofrimento, na sua violenta exaltação, na capacidade de o tornar insuportavelmente presente (nas imagens de uma cidade putrefacta, na obsidiante recorrência da morte e do mal, sob todas as suas formas), que a palavra encontra um poder exorcizante, combatendo o mal com o mal.

MÚSICA

É neste sentido que Ramos Rosa , a propósito da poesia de Al Berto, fala de uma "poesia da violência do mundo e da realidade insuportável". "A opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral", mas "à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta.
Com essa liberdade procura por todos os meios o seu espaço vital", sublinhando ainda a forma como esta espécie de "grito de fragilidade extrema e irredutível do ser humano, do seu desamparado infinito, da sua revolta absoluta e sem esperança" se consubstancia, ao nível do estilo, num ritmo "ofegante, precipitado, como um assalto contínuo feito de palavras tão violentas como instrumentos de guerra".
No domínio editorial, a actividade de Al Berto pautou-se pela isenção e por uma certa ousadia relativamente às políticas comerciais livreiras dominantes.

MÚSICA

Vamos ouvir cinco poemas de Al Berto

MÚSICA

dizem que em sua boca se realiza a flor
outros afirmam:
a sua invisibilidade é aparente
mas nunca toquei deus nesta escama de peixe
onde podemos compreender todos os oceanos
nunca tive a visão de sua bondosa mão

o certo

é que por vezes morremos magros até ao osso
sem amparo e sem deus
apenas um rosto muito belo surge etéreo
na vasta insónia que nos isolou do mundo

e sorri

dizendo que nos amou algumas vezes
mas não é o rosto de deus
nem o teu nem aquele outro
que durante anos permaneceu ausente
e o tempo revelou não ser o meu.

MÚSICA

dizem que a paixão o conheceu
mas hoje vive escondido nuns óculos escuros
senta-se no estremecer da noite enumera
o que lhe sobejou do adolescente rosto
turvo pela ligeira náusea da velhice

conhece a solidão de quem permanece acordado
quase sempre estendido ao lado do sono
pressente o suave esvoaçar da idade
ergue-se para o espelho
que lhe devolve um sorriso tamanho do medo

dizem que vive na transparência do sonho
à beira-mar envelheceu vagarosamente
sem que nenhuma ternura nenhuma alegria
nunhum ofício cantante
o tenha convencido a permanecer entre os vivos

MÚSICA

e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia

MÚSICA

há-de flutuar uma cidade no crepúscolo da vida
pensava eu... como seriam felizes as mulheres
à beira mar debruçadas para a luz caiada
remendando o pano das velas espiando o mar
e a longitude do amor embarcado

por vezes
uma gaivota pousava nas águas
outras era o sol que cegava
e um dardo de sangue alastrava pelo linho da noite
os dias lentíssimos... sem ninguém

e nunca me disseram o nome daquele oceano
esperei sentada à porta... dantes escrevia cartas
punha-me a olhar a risca de mar ao fundo da rua
assim envelheci... acreditando que algum homem ao passar
se espantasse com a minha solidão

(anos mais tarde, recordo agora, cresceu-me uma pérola no coração.

mas estou só, muito só, não tenho a quem a deixar.)

um dia houve
que nunca mais avistei cidades crepusculares
e os barcos deixaram de fazer escala à minha porta
inclino-me de novo para o pano deste século
recomeço a bordar ou a dormir
tanto faz
sempre tive dúvidas que alguma vez me visite a felicidade

MÚSICA

noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas - noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje

nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool - pernoita-se

onde se pode - num vocabulário reduzido e
obcessivo - até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos e repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva - vamos pela febre
dos cedros acima - até que tocamos o místico
arbusto estelar

e

o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial

MÚSICA

Acabámos de ouvir um palavras de Ouro com poesia de Al Berto.

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