Estúdio Raposa

Palavras de Ouro nº 153
Trindade Coelho

 


INDICATIVO

Este “Palavras de Ouro” com o número 153 será preenchido com as palavras douradas de Trindade Coelho.

MÚSICA

Trindade Coelho, natural de Mogadouro, a sua obra reflete a infância passada em Trás-os-Montes, num ambiente tradicionalista que ele fielmente retrata. O seu estilo natural, a simplicidade e candura de algumas das suas personagens, fazem de Trindade Coelho um dos mestres do conto rústico português de que hoje vamos ouvir um exemplo. Fiel a um ideário republicano, dedicou-se a uma intensa atividade pedagógica, na senda de João de Deus, tentando elucidar democraticamente o cidadão português.

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De seu nome completo José Francisco Trindade Coelho, nasceu em Mogadouro, como já dissémos, em 18 de Junho de 1861. Aí fez os primeiros estudos, nomeadamente na área de Latim, com o apoio de dois padres. No Porto, fez os estudos secundários. A terceira etapa era Coimbra, onde concluiu o curso de Direito. Embora os pais fossem ricos (a Mãe morreu ainda ele era jovem) a verdade é que ele chumbou no 1º ano do curso de Direito e o pai cortou-lhe a mesada, pelo que Trindade Coelho teve que arranjar forma de ultrapassar as dificuldades. Começou a dar explicações e a escrever em jornais. Entretanto casou e apareceu um filho, facto que mais complicou a sua vida, enquanto estudante. Chegou a ter um esgotamento.

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Nesse período, em Coimbra, Trindade Coelho escrevia nos jornais com o pseudónimo de Belistírio. Também fundou, nessa época, duas publicações: Porta Férrea e Panorama Contemporâneo. Após a conclusão do curso permaneceu em Coimbra, como advogado. Mas a clientela era pouca e ele enveredou pela carreira administrativa. Ingressa na magistratura e é colocado como Delegado do Procurador Régio, na comarca de Sabugal. Sabe-se que para obter esse lugar, foi precisa a «cunha» de Camilo Castelo Branco, que o admirava, literariamente. Nesse lugar foi Trindade Coelho um magistrado de elevadíssima craveira moral.

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Foi depois transferido para a comarca de Portalegre. Aí fundou dois jornais: Gazeta de Portalegre e Comércio de Portalegre. Entretanto granjeara fama e os políticos da época quiseram fazer dele um deputado. Como não podia candidatar-se pelo círculo onde trabalhava, foi transferido para Ovar. A última etapa profissional foi Lisboa, onde não teve tarefa fácil por causa do Ultimato Inglês, durante o qual ele teve que fiscalizar a imprensa da capital. Desgostado com as críticas que lhe faziam transferiu-se para Sintra, em 1895. Chegou a ir a África (Cabo Verde) defender 33 presos políticos. Ao fim de 3 meses regressou vitorioso, porque conseguiu libertar os presos, prendendo os acusadores.

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Trindade Coelho continuou a escrever nos jornais: Portugal, Novidades, Repórter e fundou a Revista Nova, onde publicou os Folhetos para o Povo. Era um homem inconformado. Nem a fama de magistrado, nem o prestígio de escritor, nem a felicidade conjugal conseguiam fazer de Trindade Coelho um cidadão feliz. À medida que avançava no tempo mais se desgostava com a vida, pelo que o desespero o levou ao suicídio em 9 de Junho com 47 anos de idade. Deixou uma obra variada e profunda, distribuída por quatro vertentes: jornalismo, caráter jurídico, intervenção cívica e literária. Como obras literárias deixou: Os Meus Amores publicado em 1891 com inúmeras re-edições e “In Illo Tempore” (livro de memórias de Coimbra, editado em 1902). Em 1961 comemorou-se o primeiro centenário do seu nascimento e nessa altura publicou-se “O Senhor Sete”, volume onde se reuniram os seus trabalhos dispersos. Há também a sua Autobiografia, por ele escrita, em 1902, - dirigida à sua tradutora alemã Louise Ey. Esta autobiografia, quase sempre aparece na parte final da edição de “Os meus amores”.

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O conto que vamos ouvir faz parte do livro “Os meus Amores”. Intitula-se “A Choca”, história de uma galinha choca exemplo claro da sua mestria no conto rústico.

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Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de oiro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.
Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação, que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas fora o mesmo que nada – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se fosse um estigma tanto ou mais que a própria doença...
Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.
Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar – e não tardaria que o milho do recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...
Só ela, doente, quase já nem sabia o que era comer; e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma pérola.
Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir – quanto mais para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantos rivais, ralhos, intrigas, combates – como tudo isso ia longe, agora!
Nos bebedouros, ela mesmo se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda – adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...
Certo galo, sobretudo, agora já velho – e, como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!
Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela – e, sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...
De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.
Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!
...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando...
À boca da noite, as galinhas todas haviam-se já recolhido; e alguém, de fora, tapara com uma pedra o buraco do poleiro.
Esse alguém fora ainda vê-la um instante enquanto as outras comiam, mas retirara-se muito triste; e agora, na quase escuridão do poleiro, pouco a pouco se estabelecera o silêncio, e por fim já se não via nada.
Decorria o tempo, mas dormir não podia, a Choca; e, opressa da gosmeira tenaz, afligia-a, mais do que a doença, ora a imobilidade a que se votava por amor dos seus pequeninos, ora esses abalos irreprimíveis de todo o corpo, quando algum acesso mais forte a sacudia.
Estava então muito doente, a Choca, e ia talvez morrer! E todavia ela fora toda a sua vida muito prestante, para merecer à sorte um sofrimento daqueles; – e esse mesmo nome de Choca, muito parecido, afinal, com uma alcunha, vinha-lhe das muitas ninhadas que havia chocado, cada uma das quais e não tinham conta! – lhe havia custado uma doença. Febre que era mesmo lume, nessas três semanas de choco, tantas vezes repetidas; e depois, nas convalescenças esses mil cuidados com os seus pequeninos, para os alimentar, para os guardar, para os ensinar...
Episódios, alguns tinha a sua biografia, e certos deles muito heroicos; e aflições então não tinham conta! Certo ovo de pata que ela chocara, deitara um monstro cá para fora; e aquela vez que o viu entrar numa ribeira tremendo por ele como por um filho, posto que lhe segredasse a natureza que o não era –, a aflição ia-a matando, com a ideia de que se lhe afogava! Depois, quando o viu boiar, que alegria!
Outro se lhe afogara, de outra vez, mas esse era bem seu filho. Descuido, fora-se a beber à pia e lá ficara; e ela, entretida com os mais, quando deu pela falta e o procurou, e quando o procurou e o achou morto, ia endoidecendo com a aflição!
Querelas com as vizinhas eram a toda a hora, se concorriam ao que esgravatava, para ela e para os seus; – e agora, prestes talvez a expirar, pesava-lhe na memória uma grande culpa: essa bicada feroz com que matara um pintainho estranho, de uma vez que o pobrezinho, que tinha a mãe também doente, viera, humilde, debicar-lhe no peito à cata de um grão, ali guardado, como num celeiro, para os que eram dela! Disso pediria ela perdão a Deus; e isso mesmo, em verdade, não fora por querer, e remira-o, pela vida adiante, com muita obra de caridade.
De resto, cumprira na sua vida todos os seus deveres, e muitas vezes, muitas, deixara de comer, inclusivamente, para que os seus não tivessem fome. Se se lhe extraviavam, procurava-os e aquele que uma vez não apareceu, mais a enfrenesiara, para toda a vida, no ódio aos gatos, que tratara sempre, desde esse dia, como inimigos – e disso não se arrependia.
Chuvadas que no campo havia apanhado, dir-se-ia até que sabiam bem, com os seus filhos abrigados debaixo das asas; – e se eriçava as penas e arrastava as asas, à vista de certos cães, viera-lhe isso do que ouvira de alguns, que eram traiçoeiros e comilões – mas vivera em paz com a maioria.
Em suma, para defender os seus filhinhos nunca fugira, nem mesmo do homem, e a alguns se atirara com bico e unhas; – e pelo que tocava às raposas, muitas a haviam conhecido, mas de longe...
Mas o que não melhorava, coitada, era a sua gosma!
Cansada já de sofrer, ainda por cima sentia-se pior, com o frio da noite! Não tardariam os galos a cantar – e sentia que o ronrom da gosma, e os acessos que tinha às vezes, e que pareciam tosse, não tinham deixado pregar olho, lá cima, ao companheiro... Má noite, também, para os seus pequeninos; mas os inocentes, cansados e mal-comidos, ainda bem que iludiam a fome com o sono que era fadiga...
Entretanto, pela noite velha, entrou com ela um tremor de frio. A gosma sufocava-a; – e ela já sentia, um daqui, outro dali, mexerem-se inquietos os seus pequeninos. Ainda não luzia o buraco; mas lá fora, disseminados, ouviam-se já cantar os galos. – «Que é da sua força? que é da sua alegria, que já para ela não tinha encantos, essa alvorada?...» – Coitada, o frio apertava com ela; e uns debaixo duma asa, e outros doutra, alguns já desabrigados, sentia os filhinhos tremerem com frio, muito inquietos, na escuridão ainda cerrada...
– Ah, se ao menos o dia nascesse!
Mas eis que certas intermitências dos sentidos sobrevinham à pobre Choca! Não dormia, decerto, aquilo não era sono; mas a memória já se lhe apagava; esvaía-se-lhe a luz do instinto; e daí a pouco já não sentia nada. – Inerte instantes depois; e por fim (cantou agora o galo no seu poleiro!) veio-lhe um espasmo e caiu na morte...
A esse tempo aclarara a manhã; – e sobre o corpo tépido da mãe, que na própria morte ficara dócil, enovelavam-se agora, piando, os pobres dos pintainhos!

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Acabámos de ouvir o programa “Palavras de Ouro” dedicado a Trindade Coelho.

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