INDICATIVO 
								
								Vamos ouvir poesia do autor surrealista português, Mário-Henrique Leiria, que nasceu em Lisboa em 1923 e faleceu em Cascais com 57 anos,
								
								MÚSICA
									
								Mário-Henrique Leiria foi aluno da Escola Superior de Belas Artes,
									Participou nas actividades do Grupo Surrealista de Lisboa, entre 1949 e 1951 e em 1961, depois de ser preso pela PIDE, instala-se no Brasil onde desenvolve várias actividades, como a de encenador e de director literário da Editora Samambaia. Voltou a Portugal em 1970. Publicou Contos do Gin-Tonic (1973), Novos Contos do Gin (1974), Imagem Devolvida, Conto de Natal para Crianças (1975) Casos de Direito Galáctico (1975), O Mundo Inquietante de Josela - fragmentos (1975) e Lisboa ao Voo do Pássaro (1979). Chefiou a redacção de O Coiso, suplemento semanal do diário A República. Aderiu em 1976 ao PRP - Partido Revolucionário do Proletariado. Alguns textos seus, escritos em colaboração, foram recolhidos na Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961), organizada por Mário Cesariny.
								
								MÚSICA
									
								No seu site, intitulado Vidas Lisófonas, que contém belíssimas crónicas sobre vários autores portugueses, Fernando Correia da Silva, escreve a  certa altura, na sua crónica sobre Mário-Henrique Leiria:
									“Com Rui Lemus, Carlos Barradas, Couto e Santos e uns tantos outros, congeminas e a 7 de Março de 1975 és o chefe de redacção de O COISO, novo suplemento semanal do diário A REPÚBLICA. Provocação e humor negro a acelerar nas curvas, entrevistas apócrifas com Spínola, Kissinger, Hitler, Pinochet, Salazar, Marcelo Caetano, etc. e  fotomontagens a ilustrá-las; por exemplo, Kissinger a dançar empunhando uma foice e um martelo; ou o Spínola convertido em musculoso “cabo de mar” na praia de Copacabana... Mas a irreverência incomoda muitos dos jornalistas teus colegas. Nem sequer os comunistas a aparam lá muito bem, porque estás sempre a gozar com tudo e com todos, até com os chapéus, os gorros, os bonés, os barretes e as carapuças do camarada Brejnev... 
									Na Redacção, por entre gargalhadas, quem frontalmente te apoia é o Fernando Assis Pacheco, também o Álvaro Belo Marques e poucos mais. Um dia preparas-te para publicar na primeira página de O COISO  uma violenta caricatura não só à boina, mas também à cabeça do Raul Rego, o director d’A REPÚBLICA. Caricatura congelada pela direcção do jornal e eis a gota que faz transbordar a hostilidade entre o radicalismo m-l dos operários gráficos e o socialismo bem comportado da administração e da maioria dos redactores. Extremam-se posições. Na rua, frente ao jornal, enfrentam-se piquetes ora aplaudidos, ora vaiados pelo público que, de hora a hora, vai mudando conforme as mobilizações partidárias. A REPÚBLICA acaba por ser suspensa, fechada mesmo em 19 de Maio de 1975. Também O COISO, está-se a ver. Do suplemento lançaste 11 números. O último foi em 16 de Maio de 1975.
									A fome começa a rondar-te porque os direitos autorais dos teus Contos e Novos Contos do Gin chegam sempre tarde e a más horas ao teu bolso.
								
								MÚSICA 
									
								Para te ajudar a ultrapassar as dificuldades financeiras, uma jornalista reúne uns tantos amigos para, em conjunto, te comprarem mantimentos. Quando eles batem à tua porta, atiras as provisões pela escada abaixo e tratas de insultá-los. Não aceitas esmolas, de ninguém!
									Sim, aquela escada da mesma e velha vivenda em Carcavelos. Ali moras agora com a tua mãe e uma tia, duas velhotas que já rondam os 90 anos. Também com o Vodka, um cão-linguiça todo preto e encorpado, em cujo pescoço de vez em quando armas um laçarote encarnado, pois os canitos também têm direito à Revolução. Porém o Vodka não está muito interessado em revoluções, prefere abocanhar e fugir com as tuas peúgas. Corres, ou tentas correr atrás dele. Levantas a bengala, erras o alvo e acertas a porrada mas é nos costados da tua tia. Lá vai a velha de charola para o hospital de Cascais. Por cima do cancro que a devora, tem agora uma costela partida... Um sarilho!
								
								MÚSICA 
									
								Muitas vezes vou bater à tua porta a convidar-te a dar uma volta de carro. Aceitas sempre. De Carcavelos vamos à praia do Guincho e depois subimos à Serra de Sintra. Gostas muito de ir até ao Cabo da Roca. 
									Será por causa da paisagem agreste, ou por ser ali a ponta mais ocidental da Europa? Sabe-se lá o que se passa pelos teus miolos…
									Em Janeiro de 1980 és internado no hospital de Cascais. Um lampejo, a Fipsy, a Isabel e, sem dares cavaco aos amigos, passas-te. És um chato!
									Bem, acho que já acabei a evocação da tua vida e da tua obra, vou botar aqui um ponto final.
									Espera, espera aí um instante que está a chegar um fax. Não me surpreende: é do São Pedro a lamentar-se que não desistes de converter o Império do Céu em República Popular do Purgatório.
								
								MÚSICA
									
								Vamos ouvir cinco poemas de Mário-Henrique Leiria. À cata do vento, Cegarrega para crianças, Origem dos sonhos esquecidos, Triângulo cabalístico e Gim sem Tónica
								
								MÚSICA
									
								o cata-vento 
									tem obrigações legais 
									deve 
									catar o vento 
									portanto 
									quando o vento passa 
									Diz-lhe logo atento 
									espera aí 
									preciso de te catar 
									mas o vento 
									sempre a passar 
									tem outras coisas 
									em que pensar 
									não está para ser 
									catado no ar 
									e vai passando 
									desatento 
									ao cata-vento 
									sem se importar 
									com o tristonho 
									catador de vento 
									obrigado legalmente 
									a catar o vento 
									então 
									o cata-vento 
									Senta-se no telhado 
									aporrinhado 
									e sem vento 
									para legalizar 
									o seu direito 
									de ser elemento 
									respeitado 
									pelos elementos 
									sentado no telhado 
									Queixa-se 
									isto não é vida 
								
								MÚSICA
								A Velha dormindo 
									o rato roendo 
									a Velha zumbindo 
									o rato correndo 
									a Velha rosnando 
									o rato rapando 
									a Velha acordando 
									o rato calando 
									a Velha em sentido 
									o rato escondido 
									a Velha marchando 
									o rato mirando 
									a Velha dizendo 
									o rato escutando 
									a Velha ordenando 
									o rato fazendo 
									a Velha correndo 
									o rato fugindo 
									a Velha caindo 
									o rato parando 
									a Velha olhando 
									o rato esperando 
									a Velha tremendo 
									o rato avançando 
									a Velha gritando 
									o rato comendo 
								MÚSICA
								Entre a bicicleta e a laranja
									vai a distância de uma camisa branca
									
									Entre o pássaro e a bandeira
									vai a distância dum relógio solar
									
									Entre a janela e o canto do lobo
									vai a distância  dum lago desesperado
									
									Entre mim e a bola de bilhar
									vai a distância dum sexo fulgurante
									
									Qualquer pedaço de floresta ou tempestade
									pode ser a distância
									entre os teus braços fechados em si mesmos
									e a noite encontrada para além do grito das panteras
									
									qualquer grito de pantera
									pode ser a distância
									entre os teus passos
									e o caminho em que eles se desfazem lentamente
									
									Qualquer caminho
									pode ser a distância
									entre tu e eu
									
									Qualquer distância
									entre tu e eu
									é a única e magnífica existência
									do nosso amor que se devora sorrindo
								
								MÚSICA
								Eu sei que as túlipas
									são os olhos de todos os aviões perdidos
									
									Eu sei que as cidades
									são os esqueletos das aves de rapina
									
									Eu sei que os candeeiros ardendo de noite
									são os pulmões dos peixes-voadores
									
									Eu sei que o mistério
									é uma dentadura abandonada
									
									Eu sei que a loucura
									é um braço solitário sorrindo eternamente
									
									Eu sei que os meus olhos
									são as tuas pernas frementes
									
									Eu sei que os teus cabelos
									são o meu acendedor de pirilampos
									
									Eu sei que a tua boca
									é o meu uivo solar
									
									Eu sei que o teu peito e o teu sexo
									são a minha água profundamente azul
									onde se encontram todos os fantasmas
									já perdidos há séculos.
								MÚSICA
								Uma garrafa de gin estava 
									a preocupar 
									o pescador 
									a garoupa e o rodovalho 
									não tinham aparecido 
									pró jantar 
									que fazer? 
									telefonou ao ministro 
									da Pesca e do Trabalho 
									mas o ministro 
									estava a trabalhar 
									na cama 
									com a mulher 
									foi então 
									que a garrafa de gin 
									sugeriu discretamente 
									porque não 
									telefonar ao presidente? 
									telefonaram 
									o presidente da nação 
									estava em acção 
									na cama 
									com a mulher 
									nessa altura 
									até que enfim 
									encontraram a solução 
									o pescador 
									foi para a cama 
									com a garrafa de gin 
								MÚSICA 
									
								Ouvimos, no programa de hoje, excertos da crónica de Fernando Correia da Silva, no seu site Vidas Lusófonas (Procura no Google), sobre Mário-Henrique Leiria, autor surrealista português, Dele, ouvimos cinco poemas. Até ao próximo programa.
								
								INDICATIVO