Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 139
José Craveirinha

 

INDICATIVO

Este programa será preenchido com poesia do poeta moçambicano José Craveirinha, considerado o poeta maior de Moçambique. Em 1991, tornou-se o primeiro autor africano galardoado com o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa.

MÚSICA

"José Craveirinha" nasceu a 28 de Maio de 1922 em Maputo, e faleceu em 6 de Fevereiro de 2003. Os seus restos mortais repousam na cripta da Praça dos Heróis, na capital de Moçambique.
Foi jornalista durante muitos anos, tendo usado os pseudónimos de Mário Vieira, J.C., J. Cravo, Jesuíno Cravo, entre outros. Iniciou a sua carreira no jornal «O Brado Africano», e posteriormente trabalhou nos jornais «Notícias» e «Tribuna», colaborando com artigos sobre a cultura moçambicana.
José Craveirinha publicou a sua primeira obra – Xibugo - em 1964, um ano antes de ser preso por práticas revolucionárias contra o colonialismo. Considerado um dos mais importantes poetas moçambicanos, Craveirinha marcou uma época de luta contra a ocupação colonial.
Grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa, não tendo sido incluída nos livros que publicou em vida. Outra parte permanece inédita e constitui o seu volumoso espólio.
José Craveirinha nasceu e morreu poeta, tendo oferecido à língua portuguesa durante os seus 80 anos de vida um estilo literário sem precedentes.

MÚSICA

Escreveu sobre si próprio, José Craveirinha:
«Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Isto por parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai, fiquei José. Aonde? Na Av. do
Zihlahla, entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine.
Bairros de quem? Bairros de pobres.
Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato…
E a partir de cada nascimento, eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe preta.
Nasci ainda outra vez no jornal O Brado Africano. No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noémia de Sousa.
Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai, encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por parte de minha mãe, só resignação.
Uma luta incessante comigo próprio. Autodidata.
Minha grande aventura: ser pai. Depois, eu casado. Mas casado quando quis. E como quis.
Escrever poemas, o meu refúgio, o meu País também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse País, muitas vezes, altas horas da noite.»

MÚSICA

Vamos ouvir, sem interrupção, cinco poemas de José Craveirinha: A nossa casa, Eles foram lá, Canto do nosso amor sem fronteira, Fraternidade das Palavras e Grito Negro.

MÚSICA

Ambição
minha e da Maria
foi termos uma casa nossa
onde nos contarmos os cabelos brancos.

Sonho realizado.
Casa definitiva já temos.
Lote 42.
Talhão 71883.
Fachada pintada a cal.
Clássica arquitectura rectangular.
Uma via asfaltada com um único sentido.
Tudo sito no derradeiro bairrismo
que e' morar no bairro de Lhanguene.

Pelo menos envelhecer já não é problema.
O resto na altura mais propícia
surgirá por si.

Parece que está por pouco.
Na lista onde eu consto
É injusto que tarde
estarmos juntos.

MÚSICA


Vovó
amanhã não precisa
ir ao hospital.

Ontem eles foram lá
deram maningue tiros
partiram tudo, tudo
mataram doentes
mutilaram o senhor enfermeiro
e violaram a senhora parteira.

Outros doentes privilegiados
foram carregar na cabeça
farinha açucar e arroz
da cooperativa

Foram."

MÚSICA

Estamos juntos.
E moçambicanas mãos nossas
dão-se
e olhamos a paisagem e sorrimos.

Não sabemos de áreas de esterlino
de câmbios
vistos de fronteira
zonas de marco e dólar
portagem do Limpopo
canais de Suez e do Panamá.

Amamo-nos hoje numa praia das Honduras
estamos amanhã sob o céu azul da Birmânia
e na madrugada do dia dos teus anos
despertamos nos braços um do outro
baloiçando na rede da nossa casa na Nicarágua.

Ou
com os olhos incendiados
nos poentes do Mediterrâneo
recordamos as noites mornas da praia da Polana
e a beijos sorvo a tua boca no Senegal
e depois tingimos mutuamente
os lábios com as negras amoras de Jerusalém
ambos entristecidos ao galope dos pés humanos
sem ferraduras mas puxando riquexós.

Karingana ua Karingana

MÚSICA

O céu
é uma m´benga
onde todos os braços das mamanas
repisam os bagos de estrelas.

Amigos:
as palavras mesmo estranhas
se têm música verdadeira
só precisam de quem as toque
ao mesmo ritmo para serem
todas irmãs.

E eis que num espasmo
de harmonia como todas as coisas
palavras rongas e algarvias ganguissam
neste satanhoco papel
e recombinam em poema.

MÚSICA

Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
e fazes-me tua mina, patrão.
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz
mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!

MÚSICA

Ouvimos, neste programa, poesia do poeta moçambicano, José Craveirinha. Até ao próximo Palavras de Ouro.

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