Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 138
Miguel Torga

 

INDICATIVO

Uma das mais populares obras de Miguel Torga no Palavras de Ouro de hoje: “Bichos”.

MÚSICA

Pode ler-se na Wikipédia, sobre Miguel Torga, o seguinte:
Filho de gente humilde, do campo, do concelho de Sabrosa , no Alto Douro), em 1917, com dez anos, vai para uma casa apalaçada do Porto, habitada por parentes da família. Fardado de branco servia de porteiro, moço de recados, regava o jardim, limpava o pó e polia os metais da escadaria nobre, atendia campainhas. Foi despedido um ano depois, devido à constante insubmissão.

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Com 11 anos vai para o Seminário de Lamego, onde adquiriu conhecimentos de português, geografia e história, aprendeu latim e ganhou familiaridade com os textos sagrados. No fim das férias do seu segundo ano de seminarista comunicou ao pai que não seria padre.
Emigrou para o Brasil em 1919, com doze anos, para trabalhar na fazenda do tio, na cultura do café. O tio apercebe-se da sua inteligência e patrocina-lhe os estudos liceais, em Leopoldina e mais tarde, na convicção de que ele havia de vir a ser doutor em Coimbra, o tio propôs-se pagar-lhe os estudos como recompensa dos cinco anos de serviço - o que levou ao seu regresso a Portugal.
Aos 26 anos é médico formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra
MÚSICA
Publica o seu primeiro livro, um livro de poesia, intitulado “Ansiedade” ainda estudante de Universidade.
Inicia a colaboração na revista Presença, jornal de arte e crítica, com o poema “Altitudes”, revista, fundada em 1927 pelo grupo literário avançado de José Régio, Gaspar Simões e Branquinho da Fonseca.
Era a bandeira literária do grupo modernista e era também, bandeira libertária da Revolução Modernista.
É bastante crítico da praxe e tradições académicas, e chama depreciativamente "farda" à capa e batina, mas ama a cidade de Coimbra, onde viria também a exercer a sua profissão de médico a partir de 1939 e onde escreve a maioria dos seus livros. Casa com Andrée Crabbé em 1940, estudante de nacionalidade belga - aluna de Estudos Portugueses, ministrados por Vitorino Nemésio em Bruxelas - que viera a Portugal para frequentar um curso de férias na Universidade de Coimbra.

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Em 1934 usa pela primeira vez o pseudónimo de Miguel Torga ao publicar o livro em prosa "A Terceira Voz". Dois anos depois participa do lançamento da revista Manifesto, que teve apenas cinco números publicados. A partir daí afasta-se dos grupos literários dedicando-se a medicina e à produção literária.
Lutador pela liberdade, contra a ditadura salazarista, tem alguns dos seus livros apreendidos. Casa-se com a belga Andrée Crabbé, que leccionava na Universidade de Lisboa. Algum tempo depois, por motivos políticos, a sua esposa é proibida de leccionar. Em 1940, devido às críticas à ditadura fascista implantada na Espanha pelo general Francisco Franco contidas na obra "O quarto dia..." é preso pela polícia política de Salazar.

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Escrito em 1940, Bichos é um clássico da literatura portuguesa. Miguel Torga, inventa um mundo de bichos humanizados. São Bichos animais e Bichos homens que se entrelaçam nas páginas deste livro de contos. Bichos personagens, mas sentindo e agindo como se de humanos se tratassem, tornando o leitor seu cúmplice.
Amizade, traição, amor, ódio e ambição desfilam pelo livro, sendo tratados como uma lição essencial de vida.
São catorze contos, onde o mistério da vida nos aparece no seu esplendor, perfilando bicho, homem e natureza numa comunhão fraternal, em que todas as peças são necessárias ao puzzle da vida.
Numa especial homenagem aos amantes dos gatos, vamos ouvir a história do gato Mago.

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Mago respirou fundo. Abriu o nariz e encheu o peito de ar ou de luar, não podia saber ao certo, porque a noite era clara como o dia e parada como uma montanha. Mas fosse de frescura ou de luz a onda que bebera num trago, de tal modo o inundou, que em todo o corpo lhe correu logo um frémito de vida nova. Esticou-se então por inteiro, firmado nas quatro patas, arqueou o lombo, e deixando-se ficar assim por alguns instantes, só músculos, tendões e nervos, com os ossos a ranger de cabo a rabo. Arre, que não podia mais! Aquele mormaço da sala dava cabo dele. Deixava-o sem acção, bambo, mole e morno como o cobertor de papa onde dormia. A que baixezas a gente pode chegar! Ah, mas tinha que acabar semelhante degradação! Não pensasse lá agora a senhora D. Maria da Glória Sância que estava disposto a deixar-se perder para sempre no seu regaço macio de solteirona. Não faltava mais nada! E, se lhe restavam dúvidas, reparasse no que estava a acontecer naquele momento: ela a ressonar sozinha, na cama fofa, enquanto ele enchia os pulmões de oxigénio e de liberdade. É certo que a deixara primeiro adormecer, e só então, brandamente, deslizando de seus braços para o tapete e do tapete para a rua, através do postigo da cozinha. Uma questão de delicadeza, apenas. Porque, afinal, não havia vantagem nenhuma em fazer as coisas à bruta e ofender quem só lhe queria bem... Que diabo, sempre a senhora D. Maria Sância, a que até um fio de oiro lhe comprara para o pescoço! Que, considerando bem, por essas e por outras é que chegara àquela linda situação...
- Ouvi dizer que já nem sardinhas comes?!
- Essa agora! É todos os dias...
- E que nunca mais caçaste?
- Ainda esta manhã...
Piadinhas do Lambão. É claro que os mimos de D. Sância lhe haviam deformado o gosto... Metia-lhe os petiscos ao focinho, tentava-se! E havia por onde escolher, de mais a mais! Quanto a ratos, que necessidade tinha de perder o tempo, debruçado três horas sobre um buraco, sem mexer sequer a menina dos olhos, à espera dum pobre diabo qualquer que ressonava lá no fundo? Deixá-los viver! As coisas são o que são. Em todo o caso, ainda comia a sua pescada crua e deitava honradamente a mão a uma ou outra borboleta branca, sem falar das andorinhas novas e nos pardalecos que filava por desfastio na primavera. Que demónio!
- Mas que não sais de casa, sempre agarrado às saias...
Na verdade, saía pouco. Outros tempos, outros hábitos. Banqueteava-se e ficava pelas almofadas... Digestões difíceis, vinha-lhe um migalho de sonolência... Às vezes tentava reagir. Mas o raio da velha, mal o via pôr o pé na soleira da porta, perdia a cabeça! Parecia uma sineta:
- Mago! Mago! Bicho, bichinho!
Regressava aos lençóis, claro. Contrariado, evidentemente. Mas quê! Era o pão... O pãozinho na boca! Que remédio senão torcer caminho e, com as unhas discretamente recolhidas, continuar as carícias de algodão em rama no cachaço da dona...
- E que deixaste a Faísca!...
- Eu?
- Que anda metida com o Zimbro... Pelo menos é o que consta. Que teve até cinco pequenos dele...
- Meus! Muito meus! Do meu sangue!
Pantominice. Um triste chanato na honra do convento. Paleio de chavelhudo manso... a ninhada pertencia inteirinha ao Zimbro. Até pela pinta se via. Todos com o mesmo olhinho remelão... O que ele era era um parrana, um infeliz, embora o não confessasse. Os mimos de D. Sância tinham-no desgraçado. Ah, mas a coisa ia mudar de figura! Estava farto de ser desfeiteado. Ainda há pouco... chegara-se ao pé da mulher, disposto a impor sua autoridade.
- Ouve lá: disseram-me que mos andas a pôr para aí com todo mundo?
E recebeu esta pelas ventas:
- Bem haja eu!
- Bem hajas tu?!
- Nunca guardei respeito a maricas!
Só a tiro! Mas a verdade é que a Faísca tinha razão. Lá de ano a ano é que vinha procurá-la, e isso de gado fêmeo quer assistência.
Além disso, pesadão, desconsolado. E até esquecido dos ganidos dessas horas... Uma vergonha!
- Aparece logo à noite, pelo Tinoco... Há reunião. E adeusinho...
- Adeus, Lambão.
Foi no quintal, à tarde, quando a D. Sância dormia a sesta. O Lambão, empoleirado no muro, rondava a cozinha da vizinhança, onde assavam carapaus. Por acaso chegara à janela nesse momento, vira-o e fizera-lhe sinal. E o outro, de boa ou má fé, abrira o saco. Mas há males que vêm por bem. Depois da conversa, pensara maduramente no caso, e ali estava agora disposto a ressuscitar daquela vida perdida em que o destino o metera.
Sim, ali estava, a dois passos do Tinoco, o clube da gataria de meia-idade. Bem situado, com saída para dois bairros da cidade, fora fundado pelo maior valdevinos da geração: o Hilário. Era um telhado corrido, quase plano, amplo, alto, mas de onde se podia cair de qualquer maneira numa aflição. Um achado. Como a casa servia de armazém, o Hilário viu de relance as condições do local. E logo no outro dia, os beijos, as mordedelas, os arranhões e os queixumes do cio foram ali.
Bons tempos esses! Namorava então a Boneca, uma gatinha borralheira de a gente se perder.
- Ora viva!
- Miiau...
- Seja bem aparecida, a minha bonequinha!
- Miiau...
Mimo da cabeça aos pés. Mas um rebuçadinho! Depois enrodilhara-se com a Moira-Negra, um coiro velho, curtido e batido. Cada guincho que abria a noite!
- Cala-te lá com isso, mulher!
Isso calava ela! Acabou por se aborrecer. Por fim veio a lambisgóia da Perricha... Uns trabalhos. Ciúmes, fraqueza, dores de cabeça, o diabo!
- Matas-te, filho, arruinas-te...
Palavras sensatas da mãe.
- Muda de vida, homem! Essa excomungada leva-te à sepultura.
Mas quê! O vício pode muito.
Até que a mãe morreu de velhice e desgosto, a Perricha desapareceu do bairro e ele foi cair por acaso no quintal da D. Sância.
- O bichinho está doente. Se calhar é fome...
E a ternura da senhora nunca mais o largou. A princípio ainda tentou reagir, mas, por fim, o corpo, o miserável corpo, acostumou-se ao ripanço. A parva cuidava que era amor correspondido. Melhor fora! Amizade sincera não é com gatos. Simplesmente, quem brinca aos afogados, afoga-se. Com o andar do tempo, a moleza foi tomando conta dele... E pronto. Quando reparou, estava perdido. Às vezes tinha tentações do inferno. Infelizmente, as vidas iam ruins. Virava-se um balde de restos, e não se aproveitava uma espinha. Que remédio, pois, senão contemporizar... Mas cara aposentadoria! Considerando bem, melhor fora que o estafermo da solteirona nunca lhe tivesse aparecido. Mais valia andar pelado e a cair de fome e ser capaz de responder ao pé da letra aos sarcasmos que agora lhe atiravam.
- Olha o Mago!... Olha o milionário!...
O patife do Tareco. Era de o derreter logo ali! A desgraça é que não podia passar da mansa indignação que o roía. Nem forças, nem coragem para mais. E, logo por azar, com o clube à cunha! Parecia de propósito. Raios partissem a D. Sância, e mais quem lhe gabava as almofadas! Por causa delas, pouco faltava para lhe cuspirem na cara!
- Com que então de visita aos bairros pobres? Obra de assistência ao desvalidos, não?
Até o bandido do Zimbro. Vejam lá! O engraçado! Não contente de lhe roubar a mulher, de lhe pregar um par deles do tamanho duma procissão, vinha ainda com provocações à vista de toda a gente. Ah, mas estava redondamente enganado, se cuidava que não recebia o troco devido.
- O cavalheiro seja mais delicado...
- Reparem nas falinhas dele... A tratar os amigos por cavalheiros!
- Amigos? Eu não tenho amigos da sua laia!
- Pesam-lhe na testa, coitado!
Desembestou. Cego da cabeça aos pés, atirou-se ao abismo. Infelizmente as ensanchas do Zimbro eram outras. Tinha raiva, tinha dentes, tinha unhas e fôlego. Contra tais armas, que podia a simples indignação dum pobre mortal, gordo e lustroso? Serviu de bombo da festa... É que nem a primeira acertou! Ágil e musculado, e com a maleabilidade de uma cobra, o inimigo furtou-se à sua fúria, e ripostou a valer ao golpe esboçado. Depois, foi o bom e o bonito! A seguir, uma saraivada de investidas traiçoeiras, meia dúzia de navalhadas de liquidar um homem. Só visto! No fim da luta, quando já não podia mais e se confessou derrotado, sangrava e gemia tanto, que até um polícia, em baixo, na rua estreita, se comoveu. O clube, esse, parecia doido de alegria. A Faísca rebolava-se no chão, de contente.
Fugiu desvairado pelos telhados. A lua, cada vez mais branca lá no alto, olhava-o com desdém. A cidade, adormecida, parecia um cemitério sem fim. Da torre duma igreja, saía um pio agoirento.
Jogara naquele lance o resto da dignidade. E perdera. Dali por diante, seria apenas uma humilhação, sem esperança. Ele, que tivera nas mãos possantes e nervosas o corpo fino e submisso da Boneca, ele, o escolhido da Moira-Negra, ele, o companheiro de noitadas do Hilário, ele, Mago, relegado definitivamente para o mundo das pantufas e dos tapetes! Proibido para o resto da existência de pensar sequer numa baforada da húmida frescura que agora lhe atravessava as ventas e lhe deixava cantarinhas no bigode... Condenado para sempre ao bafio da maldita sala de visitas da D. Sância! Negra sorte! E tudo obra do coirão da velha... Se não fosse ela, em ver de ir ali esquadrilhado e a mancar da mão esquerda, estaria no Tinoco a soltar ganidos com os outros, depois de ter feito o Zimbro em pedaços... Assim, arrastava-se penosamente por aquele caminho de desespero, tal e qual um moribundo a despedir-se da vida... Miséria de destino! Vexado, vencido, retalhado no corpo e na alma...E tudo obra do estupor da santanária!
Vinha rompendo a manhã. Um sino ao longe deu cinco horas. Abriam-se as primeiras janelas. Grandes laivos avermelhados anunciavam a chegada próxima do sol.
Parou. Lambeu a pata doente e sacudiu-se, num arrepio. Uma lassidão profunda começava a invadi-lo. Maldita D. Sância! Se não tivesse conhecido a tal sujeita...
Olha, olha, a enevoar-se-lhe a vista! Queriam ver que ia desmaiar?!
Encostou-se a uma chaminé, e ficou algum tempo sem dar acordo de si, a arfar penosamente. Até que uma onda de energia o trouxe de novo ao mundo. Arregalou os olhos. Estava melhor, felizmente! Já enxergava claro outra vez. Podia continuar.
Em que trabalhos o metera o raio da velha! E louvar a Deus safar-se com vida da brincadeira... Coça valente... Por um triz não se ficava... Muita resistência tinha ele ainda!
A alguns metros apenas do jardim da casa, cuidou que tornava a desfalecer. E só então é que reparou: deixava um rastro de sangue por onde passava...
Fez das tripas coração e lá conseguiu equilibrar-se e chegar ao pequeno muro que vedava o paraíso da sua perdição. Saltava? Não saltava? Que infâmia, regressar aos mimos da D. Sância! Que nojo! Que ordinarice!
Mas a que propósito vinham agora semelhantes escrúpulos e recriminações? Sim, a que propósito? Fartinho de saber que nem sequer lhe passara pela cabeça a ideia de resolver o caso doutra maneira! Ao menos fosse sincero! De resto, que esforço concreto fizera para se libertar? Nenhum. Ainda não havia meia-dúzia de horas, ouvira a voz de Lambão como um eco da própria consciência... E, afinal, ali estava outra vez! E viera de livre vontade... Ninguém o obrigara... Já roído de remorsos? Ora, ora! Outro fosse ele, nem aquela casa encarava mais. E voltara! Sim, voltara miseravelmente... E à procura de quê? Da paz podre, dum conforto castrador... Que abjecção! Que náusea!
E, sem querer, sem poder aceitar a sua degradação, Mago entrou pelo postigo da cozinha e foi-se deitar entre os braços balofos da D. Sância.

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Ouvimos, no programa de hoje, um dos catorze contos do livro de Miguel Torga, “Bichos”.

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