Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 137
Luiza Neto Jorge

 

INDICATIVO

Neste programa vamos ouvir poesia de Luiza Neto Jorge, tradutora e poetisa portuguesa que nos deixou em 1989 com 50 anos.

MÚSICA

Luiza Neto Jorge frequentou a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde foi fundadora do Grupo de Teatro de Letras, mas desistiu do curso e foi viver para Paris, onde permaneceu durante oito anos: de §962 a 1970. Ainda hoje é considerada a personalidade de maior destaque do grupo de poetas que se reuniu em torno do movimento Poesia 61, no âmbito do qual publicou “Quarta Dimensão”. Não foi essa, todavia, a sua estreia literária. O primeiro livro foi editado em 1960 “Noite Vertebrada”, a que iria seguir-se uma obra escassa mas de obrigatória referência.

MÚSICA

Luiza Neto Jorge como tradutora deixou uma obra inigualável, nos domínios da poesia, da ficção e do teatro, abrangendo autores como Céline - Morte a Crédito que lhe valeu o prémio de tradução do PEN Clube -, Traduziu Sade, Goethe, Verlaine, Marguerite Yourcenar, Jean Genet, Witold Gombrowicz, Apollinaire, Karl Valentim, Garcia Lorca, Ionesco, Boris Vian, Oscar Panizza, entre outros.
Fez adaptações de textos para teatro e colaborou com alguns cineastas, tendo escrito diálogos para filmes de Paulo Rocha e Solveig Nordlund, o argumentos de Os Brandos Costumes, de Alberto Seixas Santos em 75 e assistência literária no filme “Relação Fiel e Verdadeira”, de Margarida Gil.

MÚSICA

Salvo poemas avulsos em algumas publicações, como é o caso da revista Colóquio-Letras, Luiza Neto Jorge não publicou nenhum livro nos últimos dezasseis anos de vida.
Encontra-se representada em quase todas as antologias de poesia portuguesa contemporânea (editadas em Portugal e no estrangeiro) e tem grande parte dos poemas traduzidos para diversos idiomas. Em 1993 foi coligida a obra completa. Morreu em Lisboa em 1989, pouco antes de completar 50 anos.

MÚSICA

Vamos ouvir, sem interrupção, 5 poemas de Luiza Neto Jorge, cujos títulos são: A casa do mundo, A cabeça em ambulância, Perdida a face largada a pele. Soneto e As casas viram de noite.

MÚSICA

Aquilo que às vezes parece
um sinal no rosto
é a casa do mundo
é um armário poderoso
com tecidos sanguíneos guardados
e a sua tribo de portas sensíveis.

Cheira a teias eróticas. Arca delirante
arca sobre o cheiro a mar de amar.

Mar fresco. Muros romanos. Toda a música.
O corredor lembra uma corda suspensa entre
os Pirinéus, as janelas entre faces gregas.
Janelas que cheiram ao ar de fora
à núpcia do ar com a casa ardente.

Luzindo cheguei à porta.
Interrompo os objetos de família, atiro-lhes
a porta.
Acendo os interruptores, acendo a interrupção,
as novas paisagens têm cabeça, a luz
é uma pintura clara, mais claramente lembro:
uma porta, um armário, aquela casa.

Um espelho verde de face oval
é que parece uma lata de conservas dilatada
com um tubarão a revirar-se no estômago
no fígado, nos rins, nos tecidos sangúíneos.

É a casa do mundo:
desaparece em seguida.

MÚSICA

Há feridas cíclicas há violentos voos
dentro de câmaras de ar curvas
feridas que se pensam de noite
e rebentam pela manhã

ou que de noite se abrem
e pela amanhã são pensadas
com todos os pensamentos
que os órgãos são hábeis
em inventar como pensos

ligaduras capacetes
sacramentos
com que se prende a cabeça
quando ela se nos afasta

quando ela nos pressente
em síncope ou desnudamento
ou num erro mais espaçoso
ou numa letra mais muda
ou na sala de tortura
na sala escura,de infância

MÚSICA

Perdida a face largada a pele
oco o osso curva a espinha
apela se à grande concentração

São as primeiras letras
um vagido um balbucio de amor
não esperar mais escrevê lo já
telefoná lo
(a quanto o impulso?)

MÚSICA

A silabar que o poema é estulto
o amado abre os dentes e eu deslizo;
sismos, orgasmos tremem lhe no olhar
enquanto eu, quase a rimar, exulto.

Conheço toda a terra só de amar:
sem nós e sem desvãos, um corpo liso.
Tenho o mênstruo escondido num reduto
onde teoricamente chega o mar.

Nos desertos – íntimos, insuspeitos –
já caem com a calma as avestruzes
– ou a distância, com o oásis, finda;

à medida que nos arcaicos leitos
se vão molhando vozes e alcatruzes
ao descerem ao fundo pego, e à vinda

MÚSICA

As casas vieram de noite
De manhã são casas
À noite estendem os braços para o alto
fumegam vão partir

Fecham os olhos
percorrem grandes distâncias
como nuvens ou navios

As casas fluem de noite
sob a maré dos rios

São altamente mais dóceis
que as crianças
Dentro do estuque se fecham
pensativas

Tentam falar bem claro
no silêncio
com sua voz de telhas inclinadas

MÚSICA

Ouvimos, no programa de hoje, 5 poemas e uma pequena biografia, retirada da Internet, de Luiza Neto Jorge.
Até ao próximo programa.

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