Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 136
Manuela Nogueira

 

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Neste programa, poesia e pequena biografia de Manuela Nogueira.

MÚSICA

Na brochura que acompanhou a apresentação de um dos livros de Manuela Nogueira, Maria Isabel Mendonça Soares escreveu o seguinte:
Ninguém hoje duvidará que os genes desempenham um papel essencial na nossa vida física e mental. Manuela Nogueira recebeu uma pesada herança. Pesada, porque avaliada a peso de oiro da genialidade. Porém, com modéstia exemplar nunca se quis valer desse privilégio ao publicar em 1962, o seu primeiro livro de contos e pouco depois mais dois livros destinados à infância.

MÚSICA

E agora passo a explicar o que queria dizer a autora das palavras que ouvimos sobre Manuela Nogueira quando diz: “Manuela Nogueira recebeu uma pesada herança. Pesada, porque avaliada a peso de oiro da genialidade.”
Ora acontece que Manuela Nogueira nasceu em Lisboa na R. Coelho da Rocha, onde está, hoje, a Casa Fernando Pessoa. Sim, de facto, aí viveu o Poeta, e foi aí, que durante os primeiros 10 anos da sua vida, Manuela Nogueira conviveu com Fernando Pessoa, afinal seu tio.
E volto a recorrer a palavras de Maria Isabel Soares:
Só nas últimas décadas, quando os estudos pessoanos ganharam maior incremento, é que Manuela Nogueira se viu convidada a testemunhar vivências familiares, o que tem feito através de conferências e encontros em bibliotecas municipais e em escolas, para um público adulto e juvenil. Igualmente a coligir documentos inéditos, quer literários quer iconográficos do Poeta, os quais vêm sendo publicados e muito contribuem para o conhecimento biográfico de Fernando Pessoa.

MÚSICA

A propósito do livro “Ritual sem Palco” de onde retirei os poemas que vamos ouvir neste “Palavras de Ouro”, disse António Manuel Couto Viana:
Eis um grande, um notável livro amadurecido na inteligência e no coração. Um livro de denúncia, esperança e ensino, ímpar na nossa poesia actual. Cerebral e sensível, atento ao mundo e à vida, abrangendo a imagem do homem de hoje, na perversidade do seu pensamento e acção, mas, também, na elevação da sua fé e espiritualidade. Tudo desenvolvido e proclamado em verso lapidar, na segurança do seu ritmo, na elegância e bom-gosto do verbo e da metáfora, servindo o arroubo do lirismo e a coragem da epicidade.

MÚSICA

E o que pensa Manuela Nogueira da sua escrita? Felizmente deu-nos a sua opinião neste belo poema a que deu o título de “O acto de escrever”:

Só, é o oficio de escrever
Só, é o acto de nascer
Só, é o tempo de morrer.

Cruzo os braços, fecho os olhos
pensando nos vazios da minha memória.
Assim fico longo tempo,
tão longo, que me esqueço de mim.
Depois ergo-me, com o cansaço próprio de quem descansa,
e como um autómato escrevo uma história.

Ás vezes tem forma de verso
Outra, é um correr de palavras como água
que desliza do meu pensamento.
Depois adormeço, numa mágoa sem nexo.

Sei que estou viva porque tenho sexo.

MÚSICA
Vamos ouvir, 4 poemas de Manuela Nogueira, retirados, como já disse, do seu livro “Ritual sem Palco”.
“O Amante Esbelto”, “A Ilha”, “ A Encruzilhada” e “Sem tempo para Esperar”, são os títulos dos programas que vamos ouvir de seguida, sem interrupção.

MÚSICA

Queria que o meu amante esbelto
me trouxesse o amor fecundo
antes do caos que criou o mundo
plantando as centelhas do início;
queria o âmago do amor
mesmo fictício.

No abraço do amante esbelto
a promessa da fidelidade sagrada
o começo da explosão e implosão
o nada reduzido à planície primeira
onde a ungida flor abrisse ao Sol.

Esqueçamos o amante esbelto
e a inútil promessa herdada
somos apenas a humana raça
pendurada num imenso estendaI
erguida em fria madrugada.

Fixemos apenas o espasmo visceral
que celebra o que chamam amor
depois do acto, chegue a velha ama
para não mais deixar de nos embalar
o mar acolherá nossas lágrimas de sal.

E na imensidão do mar profundo
a luz penetrada é quilha de prata
antes do caos que criou o mundo
era eu a eleita por ele amada ...
do amante esbelto esqueci o nome.

MÚSICA

Há um oceano de gente a minha
volta um palrar de coisas ditas,
promessas vãs de políticos,
becos, caminhos sem rota.
Paz só no meu jardim
onde oiço o cantar dos pássaros,
vejo a cor das borboletas,
o desabrochar das flores;
mesmo com os olhos cerrados
conheço os sons, as cores,
o cheiro e os limites.
Elegi meu derradeiro refugio:
é o castelo feudal sem gentios,
meu trono é degrau de escada.
Vejo o Sol nascer e pôr-se
a calmaria e a ventania
poupam-me da monotonia.
No ninho dos rouxinóis
há novos bicos famintos,
os melros estão menos tímidos.
Sou apenas uma outra personagem
que chegou de um mundo louco
e parou ou desistiu da viagem.

MÚSICA

No fim da estrada há uma encruzilhada tremenda.
O passado é um caleidoscópio de interrogações,
o presente, o restrito momento de um pensamento,
o futuro, uma nódoa onde o sangue se transmuda
se volatiliza e sobe ao céu em frágil renda.
Todo o axioma entrou em coma.
A lei agora é escapar, sobreviver.
O casamento deu-se, sem boda.
Faz-se amor como se clica o computador,
só tem fascínio o proibido.

O plantel actua no estádio vibrante,
a banda electriza de gestos e metais.
Esquecem-se os mortos da estrada
das guerras, epidemias, fomes.
Abre-se meia porta ao emigrante
que rasteja pela fresta errada.
Já não há encruzilhada nenhuma
nem pensamento a considerar
nem sentimento de culpa a arder
nem projecto a aquecer
nem raiva a crescer em amor.
Há sim a pressa de viver
num mundo que se dissolve em bruma.

MÚSICA

fui encontrando farrapos de alma
em caminhos obscuros
na miragem de espantosos poentes
engravidei de muitas esperanças.
Quase uni pedaços desavindos
quase soltei vivos demónios
com amigos e inimigos fiz alianças.
Travei o precipício do efémero
e nesse instante acordei só.
Sem cordão umbilical à terra
sem âncora e sem religião
- meus olhos já viram demais
meus ouvidos estão cerrados
- o corpo tropeça na gravidade
sou virgem de uma verdade.

MÚSICA

Ouvimos, neste “Palavras de Ouro”, poesia de Manuela Nogueira a quem agradeço a disponibilidade para nos receber.

MÚSICA

Até ao próximo programa

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