Estúdio Raposa

Palavras de Ouro
António Nobre

 

INDICATIVO

Vamos hoje ouvir algumas notas sobre a vida e obra de António Nobre assim como três poemas do seu livro “Só”, o único publicado em sua vida.

MÚSICA

António Nobre nasceu na cidade do Porto a 16 de Agosto de 1867, numa família abastada. Passou a sua infância em Trás-os-Montes e na Póvoa de Varzim. Em 1888 matriculou-se no curso de Direito da Universidade de Coimbra, mas não se inseriu na vida estudantil coimbrã, reprovando por duas vezes. Optou então por partir, em 1890, para Paris onde frequentou a Escola Livre de Ciências Políticas de Émile Boutmy), licenciando-se em Ciências Políticas. Durante a sua permanência em França familiarizou-se com as novas tendências da poesia do seu tempo, aderindo ao simbolismo. Foi também em Paris que contactou com Eça de Queirós, na altura cônsul de Portugal naquela cidade, e escreveu a maior parte dos poemas que viriam a constituir a colectânea Só, que publicaria naquela cidade em 1892.

MÚSICA

O livro de poesia Só, que seria a sua única obra publicada em vida, constitui um dos marcos da poesia portuguesa do século XIX. Esta obra seria, ainda em sua vida, reeditada em Lisboa, com variantes, lançando definitivamente o poeta no meio cultural português. Aparecida num período em que o simbolismo era a corrente dominante na poesia portuguesa coeva, Só diferencia-se dos cânones dominantes desta corrente, o que poderá explicar as críticas pouco lisonjeiras com que a obra foi inicialmente recebida em Portugal. Apesar desse acolhimento, a obra de António Nobre teve como mérito, juntamente com Cesário Verde, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, entre outros, de influenciar decisivamente o modernismo português e tornar a escrita simbolista mais coloquial e leve.

MÚSICA

António Nobre referindo-se ao seu, Só, declara que é o livro mais triste que há em Portugal. Apesar disso, e de ser real o sentimento de tristeza e de exílio que perpassa em toda a sua obra, ela aparece marcada pela memória de uma infância feliz no norte de Portugal e pelo relembrar das paisagens e das gentes que conheceu no Douro interior e no litoral português a norte do Porto, onde passou na infância e juventude, e em Coimbra, onde, como já disse, começou estudos de Direito, que não acabou.
Vítima da tuberculose pulmonar, faleceu na Foz do Douro, a 18 de Março de 1900, com apenas 33 anos de idade, em casa de seu irmão Augusto Nobre.
Deixou inédita a maioria da sua obra poética. Apesar da morte prematura, e de só ter publicado em vida uma obra, António Nobre influenciou os grandes nomes do modernismo português, como Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, deixando uma marca indelével na literatura lusófona

MÚSICA

Vamos ouvir três poemas de António Nobre da sua obra “Só”. Os textos destes poemas são apresentados na página que acompanha este programa, na escrita original. Faço-o para que possamos verificar como seria o português escrito de hoje se não existissem Revisões e Acordos Ortográficos. Vamos ouvir, sem interrupção (que de acordo com o Acordo Ortográfico se continuará a escrever com “p” - interrupção) vamos ouvir “Canção da Felicidade”, “Para as Raparigas de Coimbra” e “Viagens na Minha Terra”. Entretanto, para quem deseje ouvir mais dois poemas de António Nobre, “Purinha” e “O Sono de João”, encontra-os no “Palavras d’Ouro” da Truca

MÚSICA

Felicidade! Felicidade!
Ai quem me dera na minha mão!
Não passar nunca da mesma idade,
Dos 25, do quarteirão.

Morar, mui simples, n'alguma caza
Toda caiada, defronte o Mar;
No lume, ao menos, ter uma braza
E uma sardinha p'ra n'ella assar ....

Não ter fortuna, não ter dinheiro,
Papeis no Banco, nada a render:
Guardar, podendo, n'um mialheiro
Economias p'r'o que vier.

Ir, pelas tardes, até á fonte
Ver as pequenas a encher e a rir,
E ver entre ellas o Zé da Ponte
Um pouco torto, quazi a cair.

Não ter chymeras, não ter cuidados
E contentar-se com o que é seu,
Não ter torturas, não ter peccados,
Que, em se morrendo, vai-se p'r'o Céu! ~

Não ter talento; suficiente
Para na Vida saber andar,
E quanto a estudos saber sómente
(Mas ai sómente!) ler e contar.

Mulher e filhos! A Mulherzinha
Tão loira e alegre, ]ezus! ]ezus!
E, em nove mezes, veI-a choquinha
Como uma pomba, dar outra á luz

Oh! grande vida, valha a verdade!
Oh! grande vida, mas que illuzão!
Felicidade! Felicidade!
Ai quem ma dera na minha mão!

MÚSICA

Tristezas têm-nas os montes,
Tristezas têm-nas o Céu,
Tristezas têm-nas as fontes,
Tristezas tenho-as eu!

O choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós,
És tal qual meu Avôzinho:
Falta-te apenas a voz.

Minha capa vos acoite
Que é para vos agazalhar:
Se por fora é côr da noite,
Por dentro é côr do luar ...

Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do Céu!

A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao Sol:
Não cae, tolinho, a essa isca ...
Só pondo uma flor no anzol!

A Lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É duma certa farinha
Que não apanha bolor.

Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, q'ué da tua agoa,
Q'ué dos prantos que eu chorei?

No inverno não tens fadigas,
E tens agoa, para leões!
Mondego das raparjgas,
Estudantes e violões I

- É só porque o mundo zomba
Que pões luto? Importa lá!
Antes te vistas de pomba ...
-Pombas pretas tambem ha!

Therezinhas I Ursulinas!
Tardes de novena, adeus!
Os corações ás batinas
Que diriam? sabe-o Deus.

Ó bôca dos meus dezejos"
Onde o padre não poz sal,
São morangos os teus beijos,
Melhores que os do Choupall

Manoel do Pio repoiza.
Todas as tardes, lá vou
Ver se quer alguma coiza,
Perguntar como passou.

Agora, são tudo amores
Á roda de mim, no Caes,
E, mal se apanham douctores,
Partem e não voltam mais ....

Aos olhos da minha fronte
Vinde os cantaros encher:
Não ha, assim, segunda fonte
Com duas bicas a correr.

Os teus peitos são dois ninhos
Muito brancos, muito novos,
Meus beijos os passarinhos
Mortinhos por pôrem ovos.

Nossa Senhora faz meia
Com linha branca de luz:
O novelho é a Lua-Cheia,
As meias são pr'a Jezus.

Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons,
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons.

Ó Fogueiras, ó cantigas,
Saudades! recordações!
Bailae, bailae, raparigas!
Batei, batei, corações!

MÚSICA

Ás vezes, passo horas inteiras
Olhos fitos n'estas brazeiras,
Sonhando o tempo que lá vae;
E jornadeio em phantazia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pae.

Que pittoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Promptos os dois para partir:
-Adeus! adeus! é curta a auzencia,
Adeus - rodava a diligencia.
Com campainhas a tinir!

E, dia e noute, aurora a aurora,
Por essa doida terra fóra,
Cheia de Côr, de Luz, de Som,
Habituado á minha alcova
Em tudo eu via coiza nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!

Moinhos ao vento! Eiras! Solares!
Antepassados! Rios! Luares!
Tudo isso eu guardo, aqui ficou:
Ó payzagem etherea e doce,
Depois do Ventre que me trouxe,
A ti devo eu tudo que sou!

No arame oscilante do Fio,
Amavam (era o mez do cio)
Lavandiscas e tentilhões ...
Agoas do rio vão passando
Muito mansinhas, mas, chegando
Ao Mar, transformam-se em leões!

Ao Sol, fulgura o Oiro dos milhos!
Os lavradores mail-os filhos
A terra estrumam, e depois
Os bois atrelam ao arado
E ouve-se além no descampado
N'um impeto, aos berros: - Eh! bois!

E, em quanto a velha mala-posta,
A custo vae subindo a encosta
Em mira ao lar dos meus Avós,
Os aldeãos, de longe, álerta,
Olham pasmados, bocca aberta ...
A gente segue e deixa-os sós.

Que pena faz ver os que ficam!
Pobres, humildes, não implicam,
Tiram com respeito o chapéu:
Outros, passando a nosso lado,
DIziam: «Deus seja louvado!,.
«Louvado seja!» dizia eu.

E, meiga, tombava a tardinha ...
No chão, jogando a vermelhinha,
Outros vejo a discutir.
Carpiam, mysticas, as fontes ...
Agoa fria de Traz-os-Montes
Que faz sede só de se ouvir!

E, na subida de Novellas,
O rubro e gordo Cabanellas
Dava-me as guias para a mão:
Isso ... queriam os cavallos!
Que eu não podia chicoteal-os …
Era uma dôr de coração.

Depois, cançados da viagem,
Repoizavamos na estalagem
(Que era em Casaes, mesmo ao dobrar ... )
Vinha a Sra. Anna das Dores
“ Que hão-de querer os meus Senhores?
Há pão e carne para assar …”

Oh! ingenuas mezas, honradas!
Toalhas brancas, marmeladas,
Vinho virgem no copo a rir ...
O cuco da sala, cantando ...
(Mas o Cabanellas, entrando,
Vendo a hora: «É preciso partir».)

Caia a noite. Eu ia fóra,
Vendo uma estrella que lá mora,
No Firmamento portuguez:
E ella traçava-me o meu fado
“Serás Poeta e desgraçado!»
Assim se disse, assim se fez.

Meu pobre Infante, em que scismavas,
Porque é que os olhos profundavas
No Céu sem par do teu Paiz?
Ias, talvez, moço troveiro,
A scismar n'um amor primeiro:
Por primeiro, logo infeliz ...

E o carro ia aos solavancos.
Os passageiros, todos brancos,
Resonavam nos seus gabões:
E eu ia álerta, olhando a estrada,
Que em certo sitio, na Trovoada,
Costumavam sair ladrões.

Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!
Fazer parte d'uma quadrilha,
Rondar, á Lua, entre pinhaes!
Ser Capitão! trazer pistolas,
Mas não roubando, - dando esmolas
Dependuradas dos punhaes ...

E a mala-posta ia indo, ia indo,
O luar, cada vez mais lindo,
Caia em lagrymas, - e, emfim,
Tão pontual, ás onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Caza
Toda de lume, côr de braza,
Altiva, entre arvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem, sorrindo, a minha Avó.

E então, Jezus! quantos abraços!
Qu'é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como elle vem!
Toda admirada, de mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Bethlem !

-E os teus estudos, tens-me andado?
Tomára eu ver-te formado!
Livre de Coimbra, minha flôr!
Mas vens tão magro, tão sumido ...
Trazes tu no peito escondido,
E que eu não saiba, algum amor?

No entanto entrava no meu quarto:
Tudo tão bom, tudo tão farto!
Que leito aquelle! e a agoa, Jezus !
E os lençoes! rico cheiro a linho!
-Vá, dorme que vens cançadinho.
Não adormeças com a luz!

E eu deitava-me, mudo e triste.
(- Reza tambem o Terço, ouviste?)
Versos, bailando dentro em mim ...
Não tinha tempo de ir na sala,
De novo: - Apaga a luz! - Que rala!
Descança, minha Avó, que sim!

Ora, ás occultas, eu trazia
No seio, um livro e lia, lia,
Garrett da minha paixão ...
D'ahi a pouco a mesma reza:
- Não vás dormir de luz acceza,
Apaga a luz! (E eu ainda...não!)

E continuava, lendo, lendo ...
O dia vinha já rompendo,
De novo: - Já dormes, diz?
- Bff! ... e dormia com a ideia
N'aquella tia Dorotheia,
De que falla Julio Diniz.

Ó Portugal da minha infancia,
Não sei que é, amo-te a distancia,
Amo-te mais, quando estou só ...
Qual de vós não teve na Vida
Uma jornada parecida,
Ou assim, como eu, uma Avó?

MÚSICA

Ouvimos algumas notas sobre a vida e a obra “Só” de António Nobre assim como três poemas desta colectânea da sua poesia.

INDICATIVO