Estúdio Raposa

Lugar aos Outros 95
Flávio Lopes da Silva

 

INDICATIVO

Vamos hoje ouvir textos de Flávio Lopes da Silva

MÚSICA

Flávio Lopes da Silva não é um novato na escrita. Até agora já deu três grandes passos a caminho das estrelas, tantos são os livros que já publicou: “Nós vezes nós”, poesia, “Líquida Obsessão”, contos e “Sétimo Vão” prosa poética.
Em Dezembro será editado o seu quarto llivro, intitulado “Sou um Louco que Sabe tocar acordeão”, textos de performance poética. Aliás, ouviremos, neste programa, um dos textos desta obra-

MÚSICA

Flávio Lopes da Silva, nasceu em Barcelos há 34 anos e reside em Barcelinhos, freguesia separada pelo rio Cávado. Além a escrita, a guitarra clássica é o porquê das suas viagens sem ter de ir. 
Tem formação de música clássica, em viola dedilhada e, desde muito jovem que o seu coração é dividido entre a música e a escrita.
Aos dezoito anos começou a tocar em bares. Paralelamente ao gosto musical, à sua atitude enquanto compositor e letrista, daí chega à poesia e à prosa. Foi um passo facilitado para construir o seu barco, o seu leme, e os seus tripulantes.
Não utiliza a escrita para fins terapêuticos ou para descarregar emoções em papel cor de rosa; a sua escrita está mais ligada ao automatismo do desejo, embora sem se desligar dos sentidos.
Fundou a associação Às Artes - Movimento Artístico-Cultural de Barcelos, à qual preside e é membro do Grupo Surrealista de Barcelos. Quinzenalmente escreve crónicas e no jornal A Voz do Minho , com o título: Teoria dos Calhaus.

MÚSICA

José Ilídio Torres, um escritor que já passou por este programa, na apresentação de um dos livros de Flávio Lopes da Silva, disse sobre o autor:
Flávio Lopes da Silva, move-se com desenvoltura numa escrita, aparentemente surrealista, mas, a realidade, essa também o é, e o escritor talentoso e atento, limita-se, muitas vezes a transpô-la para o papel, numa imagística feita de magníficos textos...
Poeta e prosador sem medos, sem receios, sem cair na banalidade, Flávio dorme e acorda com as palavras. É meticuloso, trabalhador e persistente na escrita.
Quem tomar suas palavras em mãos, que as abra em concha, dedos bem serrados, para que não escorram letras nem palavras, dos seus livros equilibrados, serenos como quem o escreve, com pena que traz cabelos ao vento, olhos que nos observam sem os vermos, onde o autor se projecta dado e se adivinha nos tempos que ainda não aconteceram, mas são escrita dentro dele, já!

MÚSICA

De Flávio Lopes da Silva vamos ouvir, sem interrupção, o conto “O sigilo do útero” publicado no seu livro “Líquida Obsessão” e “Meu filho”, texto a ser incluído no seu livro que saíra em Dezembro intitulado “Sou um Louco que sabe tocar acordeão”

MÚSICA

Um dia, alguém ordenou que do céu caísse sementes. Não daquelas de empurrar para o pouco menos do que o princípio da terra com as costas curvadas, não daquelas se ver florir do nada para depois estrangular (as flores) e colocá-las aos molhos numa jarra.
Quem encomendou tal semeeira à qual não se sabia para quê, foi Leonor, sempre chorosa e cabisbaixa, esperando que numa dessas noites luarentas lhe crescesse a barriga com a semente que o céu enviou e, possibilitar vida dentro dela.
Leonor não queria marido nem namorado. O seu tempo mata-o junto à fornalha, amarrada ao ferro de brunir, porque outrora ela provara um beijo mal beijado que lhe deixou marcas no rosto da alma, sentia-se despenteada interiormente e sem vocação para se entregar a um destino de pouca maré.
Todos os inícios de noite, Leonor roçava os joelhos no chão de tábua levantada, arqueada para um abismo indefinido até que um sopro a pusesse a dormir com uma gota de certeza que amanhã a sua barriga aumentaria com o fruto da sua glória e devoção.
Vários anos passaram, várias trovoadas lhe luziram o rosto avançado, mas, Leonor não perdia uma pitada de fé. Seu corpo ainda intacto de desejos, seu sexo imaturo aguardava em obscuridade pela semente que lhe fosse inaugurar o ventre.
Um dia, Leonor olhou-se ao espelho com admiração, quis saber mais do que a roupa mostrava e, despiu-se, analisando as curvaturas do seu corpo banhado em fragilidade.
Por momentos, sentiu um frio, uma aragem indecifrável, ao que as suas mãos anteciparam o agasalho com carícias circulares. Logo, o seu corpo aqueceu num fulgor desprevenido. Com os dedos: percorreu-se, adivinhou cursos naturais de húmida sede, deixando-se perder pelos caminhos nunca antes tacteados.
Seus lábios abriam-se lentos, pedindo segredos. Por instantes alargados desobedeceu à regra dos seus ensinamentos divinos e, deixava escapar um gemido envolvente, maestrado por um Cupido forasteiro. Era-lhe um banho-maria de seduções e sóis verticais a derreter-lhe a virgindade.
Até que a chuva vingou a sede da terra e, Leonor expôs-se nua perante a água. Agora era livre, encetou loucuras, experimentou afectos.
Com a chuvada, seu corpo amoleceu e Leonor tombou encharcada, possuída por uma paz invisível. Foi-se a cor, foi-se a música. Ficou um corpo aberto ao relento.
Quando a manhã chegou, já as fábricas apitavam, os cães farejavam as ruas, os operários aqueciam-se com aguardentes e histórias macabras do dia anterior.
Apenas Leonor enlameada se demorava a compreender o porquê de, pelos seus seios escorrer um liquido. Parecia ser para tomar, beber. Um liquido, um leite tal qual ao das cabras do monte. A sua sede levou-a a provar. E provou, até lhe inchar a barriga, até lhe ocupar o ventre e nascer um pézinho de flor no umbigo. Leonor espantou-se e sentiu a flor crescendo no compasso da sua oração. Com mil cuidados, puxou a flor até a ter inteira nas mãos.
Depois de saído todo o caule e algumas raízes, onde acaba um mundo e começa outro, assim foi, uma menina despoletou para o dia e subiu à vida com esplendor. Trazia umas tantas sementes na mãozinha dela. A semente da paz? A semente do novo-povo?
Pelo sim pelo não, Leonor preferiu mantê-las em segredo e, engoliu uma e guardou as restantes.
Durante anos correu o mistério entre a vizinhança e arredores: andaria Leonor a sair pela calada da noite em busca de fortuitos amantes?
Como é que alguém colhe filhos atrás de filhos sem que uma carícia seja diagnosticada?
Como é que alguém que, apenas se envolve em orações, participa em brigas e juras de amor sem que mais nenhuma voz seja levantada?
Nunca nenhuma parteira lhe registou o nome, nunca nenhum homem acusou-a de um beijo, nunca a ciência lhe conferiu o útero, nunca os seus filhos souberam de onde vieram. Nunca!

MÚSICA

Meu filho
Eu acordei desde que descobri que os anarcas são uns gajos porreiros
Desde que descobri que os hippies usavam flores não porque eram maricas
mas porque isso representava o amor
desde que o Vitor Jara ficou sem mãos e continuou a tocar viola

Meu filho
a tua mãe é que se ofereceu
não preciso de ir ao Rio de Janeiro para ver o Redentor
fecho os olhos e ei-lo
numa jangada a subir a avenida até à praça do comércio

Meu filho
este poema não é para dormires
este poema é para acordares
vê a velocidade com as bobines tecem o fio do futuro
olha aquele par de namorados que não sabem quando se irão encontrar outra vez

A tua mãe é que se ofereceu
Nos retratos fica-se com melhor pose
É verdade! Talvez a única verdade!

Meu filho
Eu bem lhe quis pagar
Toma para o teu menino!
Pega este brinquedo que ele vai adorar!
Mas ela é que se ofereceu

Meu filho
Eu acordei bem antes de ter adormecido
A arte não tem valor nenhum se eu não disser que sou louco
Ninguém compra um quadro antes de eu morrer

Entrei na casa do vizinho para roubar pão
Achas que devo denunciar que o vizinho não oferece pão?!

Lembra-me as horas
Diz-me se o sol já bate nos quartos
Quando a máquina se desligar não chames o doutor
Não vá ele evitar o melhor

Diz à mãe que não lavei as passadeiras
Ela vai ficar fula
Diz-lhe apenas que fui a Buenos Aires
Ela vai ficar muito fula!

Meu filho
Eu acordei quando Tolstoi lançou o seu primeiro livro
Quando a máquina parou pela falta de braços
Quando festejei o feriado com ela dentro de um contra-baixo

Eu tomaria a vez do enforcado
Insultaria todos os presidentes
Mas ela é que se ofereceu
Não deixou o disco tocar até ao fim

Puxou-me para o quarto
Apaguei o cigarro à pressa
Leu umas páginas do seu diário
Abriu as pernas
E eu vi-te nascer
Mas agora és tu quem me vê nascer para o leito do universo!

Lembra-me as horas
Diz-me se o sol já bate nos quartos
Quando a máquina se desligar não chames o doutor
Não vá ele evitar o melhor
Não vá ele evitar o melhor
Meu filho

MÚSICA

Acabámos de ouvir o Lugar aos Outros número 95, dedicado ao autor Flávio Lopes da Silva que amavelmente, disponibilizou o seu trabalho.

MÚSICA
Dois dedos de conversa

INDICATIVO

O primeiro dedo para informar eventuais ouvintes desatentos e sobretudo aqueles que se me têm dirigido lamentando a ausência de audiobooks após a publicação do “Diário de Um Louco” de Gogol, que foi disponibilizado, no passado domingo, a peça em um acto “A Ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas. A representação teve lugar, aqui, no Estúdio Raposa, com a utilização da prata da casa, em representação, efeitos sonoros, montagem, etc. Circunstância que, na minha opinião, desculpará algumas gralhas. Poucas, mas algumas. E que, diga-se, não escaparam ao” olho clínico” do ouvinte Luís Pinto.
O segundo dedo para dizer que não tem sido possível, devido a um problema no código do audioblogue, inserir notícias. Assim, ficaram por anunciar alguns dos lançamentos de livros que tem ocorrido nos últimos tempo.
Finalmente, um dedo extra, para voltar a lembrar que só serão lidos neste programa os autores que tenham apresentado, os seus textos (pode ser por email, claro), assim como a autorização expressa de que os textos enviados podem ser lidos no Lugar aos Outros.
Com este dedinho extra me vou: até ao próximo programa que será de Poesia Erótica.

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