INDICATIVO
Ouviremos, no programa de hoje, trabalhos do poeta brasileiro Rafael Nolli.
MÚSICA
O Rafael Nolli está naquele grupo de participantes no Lugar aos Outros que não são pródigos em dados biográficos.
Limita-se a dizer que nasceu em Araxá, estado de Minas Gerais, em 1980. Até hoje tem publicado, edição de autor, um livro de poemas, intitulado, “Memórias à beira de um estopim”, estando a trabalhar na edição de um segundo livro “Comerciais de metralhadora”, com saída prevista para início do próximo ano. Lá como cá, editar poesia não é tarefa fácil.
MÚSICA
Rafael Nolli tem muita poesia espalhada por diversas coletâneas e publicações especializadas.
Atualmente, o Rafael leciona as disciplinas de história e geografia, no ensino médio.
E pronto! Nada mais resta senão ouvir alguns trabalhos de Rafael Nolli. Vamos ouvir cinco poemas, sem interrupção.
MÚSICA
É preciso matar o vizinho com um tiro de fuzil,
antes que ele compreenda os textos sagrados
e venha, como irmão, a seu lar,
comer do seu pão e beber do seu vinho.
É preciso degolar os amigos,
ou enforcá-los em seus cadarços
(eles não usam gravatas),
antes que eles entendam Marx,
decretem o fim da era dos desiguais
e venham exigir que você participe do combate,
deixando para trás sua coleção de tampinhas
de refrigerantes
e de caixinhas de Malrboro.
É preciso matar os homens
contrariando Drummond
antes que eles entendam a poesia que há nas coisas
e comecem a distribuí-la em seus gestos diários.
Assassiná-los antes que liguem para a sua casa
e convidem-no para ver a lua
ou um mosquito de Proust,
retirando você de seu conforto militar, remediado.
É preciso se matar, sobretudo se matar,
antes que a vida se refaça no interior dos lares
e a alegria volte a corar a face dos homens:
antes que eles se compreendam, venham à sua porta
e a derrubem, por acreditarem-na obsoleta.
MÚSICA
Todas as estatísticas sorriem para mim:
sou um entre as migalhas moídas pelo trânsito.
Meu nome corre entre os que matam
por gosto ou dinheiro
capa de jornal sensacionalista, de ontem,
me explica como serei vítima de latrocínio.
Um merda sorri no algodão ariano de minha t-shirt,
e é vermelho o papel em que escrevo,
vermelhos os livros de história,
menstruados na estante.
Falo de amor contigo
em meu celular movido a lithium:
você me conta que nosso filho irá se chamar Citotec.
Somos felizes para sempre.
MÚSICA
Nem parece que há horas atrás carros-bomba e homens-bomba se misturavam nos noticiários, entre propaganda de cigarros e furos de reportagem. A cidade dormente mal lembrava que, entre estilhaços e concretos, o terrorismo consolidava-se dentre os feitos decorrentes do século.
Na cidade noturna, os homens esquecem que os bombardeiros e as balas perdidas são os únicos exemplares de aves que nos restou; que os navios e submarinos são os únicos peixes que nos sobraram.
(Esses homens, quando acordam sobressaltados no meio da madrugada, põem-se a fornicar, por que, para eles, a noite existe somente para se reproduzirem. Esses homens despertarão cedo, antes da alva, como se o amanhã fosse previsível e a morte uma impossibilidade.)
MÚSICA
Hoje, sou exatamente aquilo que tenho:
centavos que não compravam felicidade alguma
uma úlcera metafísica,
que não me acompanhará ao infinito
dezenas de poemas sobre a exaltação do homem
e a felicidade tola dos desvairados.
Hoje, sou tudo que tenho:
um sonho de primavera
amadurecendo o coração dos brutos
um gosto de beijo nunca dado
uma iluminação repentina e irremediável,
que me levaria ao céu, se o quisesse.
Hoje, nada além dos meus pertences é o que sou:
uma dor de cabeça debutante
migalhas de pão presas à barba
um projeto de poesia
que me remediará de todo o mal do mundo
depois de escrito me trairá covardemente,
por não saber nada além
do que suas palavras dizem.
Hoje, sou exatamente o que tenho:
mas é nu que espero o amanhã.
MÚSICA
Era de cachos báquicos teus cabelos entre cachos teus olhos: duas esféricas uvas em meio a tantas outras uvas: frágil película roxa, quase água futuro vinho tinto.
Era de pétalas e caule teu tronco de petúnia e pitonisa duas possíveis auroras rosa-pálidas brotando da profundeza de teu corpo de tempestade e nuvem e calma feérica maçã dormindo no regato de tuas coxas.
Era de sonho e vigília tua presença sonilóquio com os corvos de Odim, desfraldar das velas da consciência: viagem, vôo.
Era noturna tua voz, clara tuas palavras: diálogo travado entre abelhas o mel compensando o ferrão.
MÚSICA
O programa de hoje foi preenchido com o trabalho do poeta brasileiro Rafael Nolli, a quem agradeço a participação.
Chamo a atenção para os candidatos à leitura dos seus trabalhos que a lista não é pequena e à velocidade de um programa por mês, a espera pode desesperar. Mas que isso não aconteça é o meu desejo. Um dia chegará a informação de que é “esta semana”. Até ao próximo programa.
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