Estúdio Raposa

Lugar aos Outros 108
Rafael Nolli

 

INDICATIVO

Ouviremos, no programa de hoje, trabalhos do poeta brasileiro Rafael Nolli.

MÚSICA

O Rafael Nolli está naquele grupo de participantes no Lugar aos Outros que não são pródigos em dados biográficos.
Limita-se a dizer que nasceu em Araxá, estado de Minas Gerais, em 1980. Até hoje tem publicado, edição de autor, um livro de poemas, intitulado, “Memórias à beira de um estopim”, estando a trabalhar na edição de um segundo livro “Comerciais de metralhadora”, com saída prevista para início do próximo ano. Lá como cá, editar poesia não é tarefa fácil.

MÚSICA

Rafael Nolli tem muita poesia espalhada por diversas coletâneas e publicações especializadas.
Atualmente, o Rafael leciona as disciplinas de história e geografia, no ensino médio.
E pronto! Nada mais resta senão ouvir alguns trabalhos de Rafael Nolli. Vamos ouvir cinco poemas, sem interrupção.

MÚSICA

É preciso matar o vizinho com um tiro de fuzil,
antes que ele compreenda os textos sagrados
e venha, como irmão, a seu lar,
comer do seu pão e beber do seu vinho.

É preciso degolar os amigos,
ou enforcá-los em seus cadarços
(eles não usam gravatas),
antes que eles entendam Marx,
decretem o fim da era dos desiguais
e venham exigir que você participe do combate,
deixando para trás sua coleção de tampinhas
de refrigerantes
e de caixinhas de Malrboro.

É preciso matar os homens
– contrariando Drummond –
antes que eles entendam a poesia que há nas coisas
e comecem a distribuí-la em seus gestos diários.
Assassiná-los antes que liguem para a sua casa
e convidem-no para ver a lua
ou um mosquito de Proust,
retirando você de seu conforto militar, remediado.

É preciso se matar, sobretudo se matar,
antes que a vida se refaça no interior dos lares
e a alegria volte a corar a face dos homens:
antes que eles se compreendam, venham à sua porta
e a derrubem, por acreditarem-na obsoleta.

MÚSICA

Todas as estatísticas sorriem para mim:
sou um entre as migalhas moídas pelo trânsito.

Meu nome corre entre os que matam
por gosto ou dinheiro –
capa de jornal sensacionalista, de ontem,
me explica como serei vítima de latrocínio.

Um merda sorri no algodão ariano de minha t-shirt,
e é vermelho o papel em que escrevo,
vermelhos os livros de história,
menstruados na estante.

Falo de amor contigo
em meu celular movido a lithium:
você me conta que nosso filho irá se chamar Citotec.

Somos felizes para sempre.

MÚSICA

Nem parece que há horas atrás carros-bomba e homens-bomba se misturavam nos noticiários, entre propaganda de cigarros e furos de reportagem. A cidade dormente mal lembrava que, entre estilhaços e concretos, o terrorismo consolidava-se dentre os feitos decorrentes do século.
Na cidade noturna, os homens esquecem que os bombardeiros e as balas perdidas são os únicos exemplares de aves que nos restou; que os navios e submarinos são os únicos peixes que nos sobraram.
(Esses homens, quando acordam sobressaltados no meio da madrugada, põem-se a fornicar, por que, para eles, a noite existe somente para se reproduzirem. Esses homens despertarão cedo, antes da alva, como se o amanhã fosse previsível e a morte uma impossibilidade.)

MÚSICA

Hoje, sou exatamente aquilo que tenho:
centavos que não compravam felicidade alguma
uma úlcera metafísica,
que não me acompanhará ao infinito
dezenas de poemas sobre a exaltação do homem
e a felicidade tola dos desvairados.

Hoje, sou tudo que tenho:
um sonho de primavera
amadurecendo o coração dos brutos
um gosto de beijo nunca dado
uma iluminação repentina e irremediável,
que me levaria ao céu, se o quisesse.

Hoje, nada além dos meus pertences é o que sou:
uma dor de cabeça debutante
migalhas de pão presas à barba
um projeto de poesia
que me remediará de todo o mal do mundo –
depois de escrito me trairá covardemente,
por não saber nada além
do que suas palavras dizem.

Hoje, sou exatamente o que tenho:
mas é nu que espero o amanhã.

MÚSICA

Era de cachos báquicos teus cabelos – entre cachos teus olhos: duas esféricas uvas em meio a tantas outras uvas: frágil película roxa, quase água – futuro vinho tinto.

Era de pétalas e caule teu tronco de petúnia e pitonisa – duas possíveis auroras rosa-pálidas brotando da profundeza de teu corpo de tempestade e nuvem e calma – feérica maçã dormindo no regato de tuas coxas.

Era de sonho e vigília tua presença – sonilóquio com os corvos de Odim, desfraldar das velas da consciência: viagem, vôo.

Era noturna tua voz, clara tuas palavras: diálogo travado entre abelhas – o mel compensando o ferrão.

MÚSICA

O programa de hoje foi preenchido com o trabalho do poeta brasileiro Rafael Nolli, a quem agradeço a participação.
Chamo a atenção para os candidatos à leitura dos seus trabalhos que a lista não é pequena e à velocidade de um programa por mês, a espera pode desesperar. Mas que isso não aconteça é o meu desejo. Um dia chegará a informação de que é “esta semana”. Até ao próximo programa.

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