Estúdio Raposa

História 141
"A pastora e o Limpa-chaminés"

 


INDICATIVO

Mais um ano de escola e o Estúdio Raposa retoma a publicação das histórias. Para começar e contra o que é habitual não vamos ouvir uma história tradicional portuguesa. Vou contar-vos, assim como se fosse um presente pelo início das aulas, um conto do famoso escritor Hans Christian Anderson. Intitula-se “A Pastora e o Limpa-chaminés”

MÚSICA

Já viste alguma vez um armário genuinamente antigo, completamente enegrecido pela antiguidade e trabalhado com floreados e folhagens? Pois era precisamente um desses que se encontrava numa certa sala de estar. Era herança da avó, bem talhado de rosas e tulipas que o cobriam de alto a baixo. Eram os mais maravilhosos floreados e entre eles, emergiam cabeças de pequenos veados com grandes armações. No meio do armário estava também talhado um homem. Se ria, era muito divertido vê-lo a rir, mas não se podia chamar a isso sorrir. Tinha pernas de bode, uns chifrezinhos na testa e uma longa barba. As crianças da casa chamavam-lhe o Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode, pois era um nome difícil de dizer e não há muitos que tenham este título. Mas mandá-lo talhar também foi coisa complicada! Contudo, ali estava! Sempre a olhar para a mesa, por baixo do espelho, porque ali se encontrava uma linda pastorinha de porcelana. Os sapatos eram dourados, o vestido lindamente preso em cima com uma rosa vermelha e tinha um chapéu de ouro e um bastão de pastor. Era linda! Mesmo ao lado dela estava um pequeno limpa-chaminés, tão preto como o carvão, também de porcelana. Era tão limpo e bonito como qualquer outro. O facto de ser limpa-chaminés era só aparência. O fabricante de porcelanas podia muito bem ter feito dele um príncipe. Daria no mesmo!
Era tão lindo com a sua escada e tinha um rosto tão branco e rosado como uma rapariga. Isso foi, na realidade, um erro, pois um pouco de preto não teria sido mau. Estava mesmo junto à pastora. Tinham sido colocados ali e, assim colocados, ficaram noivos. Passavam o tempo um com o outro. Eram gente nova, eram da mesma porcelana e eram ambos igualmente quebráveis.
Perto deles estava outro boneco que era três vezes maior. Um velho chinês, também de porcelana, que sabia acenar com a cabeça. Dizia-se avô da pastorinha, mas isso não o podia ele confirmar. Afirmava que tinha poder sobre ela e, assim, acenava para o Sargento-general-comandante-chefe-subchefe de pernas de bode que também cortejava a pastorinha.
- Vais ter um marido - disse o velho chinês -, um marido que será de mogno, se não me engano. Pode fazer-te Senhora do Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode. Tem todo o armário cheio de pratas, não contando com o que possui nas gavetas secretas.
- Não quero ir para dentro do armário! - disse a pastorinha. - Ouvi dizer que guarda lá dentro onze mulheres de porcelana!
- E tu podes muito bem ser a décima segunda! - disse o chinês. - Hoje à noite, logo que o velho armário comece a ranger, hão-de dar-se as vossas bodas. Tão verdade como eu ser chinês! - Acenou com a cabeça e deixou-se adormecer.
A pastorinha chorou e olhou para o seu mais querido do coração, o limpa-chaminés de porcelana.
- Creio que tenho de pedir-te que vás comigo por esse mundo fora, porque aqui não podemos ficar.
- Quero o que tu quiseres! Vamos imediatamente!
Acho que posso alimentar-te com a minha profissão!
- Se ao menos estivéssemos são e salvos, longe da mesa! - disse ela. - Não terei alegria enquanto não partirmos por esse mundo fora!
Ele consolou-a e mostrou-lhe como podia pôr o pezinho nas bordas talhadas e na folhagem dourada e descer pela perna da mesa abaixo. Usou também uma escada para a ajudar a descer e desse modo chegaram ao chão; mas quando olharam para o velho armário, era como se ali houvesse um tumulto. Todos os veados talhados punham as cabeças ainda mais para fora, levantavam as armações e estendiam os pescoços. O Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode saltou no ar e gritou para o velho chinês:
- Vão fugir! Vão fugir!
Ficaram um pouco assustados e esconderam-se, apressadamente, nas gavetas da plataforma.
Nessas gavetas, encontravam-se três ou quatro baralhos de cartas de jogar, incompletos, e um pequeno teatro de bonecas, não muito bem montado, mas, ainda assim, bem improvisado.
Representavam-se comédias, e todas as damas, tanto as de ouros como as de copas, as de paus como as de espadas, sentavam-se nas primeiras filas e abanavam-se com tulipas. Logo por trás delas, estavam todos os valetes, mostrando que tinham cabeças, tanto em cima como em baixo, tal como são as cartas de jogar. A comédia tratava de dois amantes que não se podiam ter um ao outro e a pastora chorou por isso, porque era como se visse a sua própria história.
- Não aguento isto! - comentou ela. - Tenho de sair da gaveta!
Mas quando vieram para o chão e olharam para a mesa, lá estava o velho chinês acordado e com todo o seu corpo a abanar. Era como um enorme monte, visto de baixo!
- Vem aí o velho chinês! - gritou a pastorinha, e caiu logo sobre os joelhos de porcelana, de tão aflita que estava.
- Tenho uma ideia! - disse o limpa-chaminés. - Vamos meter-nos dentro da jarra de pot-pourri que está ali no canto? Podemos deitar-nos sobre rosas e alfazema e lançar-lhe sal nos olhos, quando ele vier.
- Pode não ser suficiente! - respondeu ela. - Além disso, sei que o velho chinês e a jarra de pot-pourri estiveram noivos e quando se têm relações desse género, resta sempre um pouco de simpatia! Não! Não há nada a fazer senão partir pelo mundo fora!
- Tens mesmo coragem para ir comigo pelo mundo fora? - perguntou o limpa-chaminés. - Já pensaste como ele é grande e nunca mais voltaremos aqui? - Tenho! - afirmou a pastorinha.
E o limpa-chaminés olhou-a fixamente e disse:
- O caminho faz-se por dentro da chaminé. Tens mesmo coragem para te arrastares comigo dentro do fogão, tanto pelo tambor como pelo cano? Saímos depois pela chaminé e aí conheço tudo bem!
Subiremos tão alto que não nos podem alcançar e lá bem em cima está um buraco para o mundo!
E conduziu-a para a porta do fogão.
- Está tudo preto! - disse ela, mas seguiu-o, tanto pelo tambor como pelo cano, onde parecia noite escura como breu.
- Estamos agora na chaminé! Vê! Lá em cima brilha a mais linda estrela!
E estava, realmente, uma estrela no céu que brilhava para baixo, para eles, como se quisesse mostrar-lhes o caminho. Treparam e rastejaram. Foi uma terrível caminhada. Tão alto, cada vez mais alto.
Ele puxou-a para cima e apoiou-a, segurou-a e mostrou-lhe os melhores pontos, onde podia pôr os seus pezinhos de porcelana, até que alcançaram a borda da chaminé e nela se sentaram, pois estavam muitíssimo cansados e boas razões tinham para isso.
O céu, com todas as suas estrelas, estava por cima e todos os telhados da cidade por baixo. Viam até muito longe, à sua volta, mesmo para além do mundo. A pobre pastora nunca o tinha imaginado assim. Pousou a cabecinha no ombro do limpa-chaminés e chorou tanto que o ouro lhe saltou da fita do corpete.
- É de mais! - disse ela. - Não posso suportá-lo! O mundo é demasiado grande! Quem me dera estar outra vez na mesinha por baixo do espelho! Não terei alegria enquanto não me encontrar lá outra vez! Segui-te pelo mundo fora, agora tu podes seguir-me para voltar a casa, se gostares um bocadinho de mim!
E o limpa-chaminés falou-lhe sensatamente. Falou-lhe do velho chinês e do Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode, mas ela chorou tão desconsolada e beijou o seu querido limpa-chaminés de tal forma, que este não pôde fazer outra coisa senão condescender, se bem que fosse uma loucura.
E assim, lá se arrastaram outra vez, com grande dificuldade, pela chaminé abaixo, rastejando através cano e do tambor - o que não foi nada agradável - penetrando no fogão escuro.
Escutaram, por detrás da porta, para saberem o que se passava na sala. Estava tudo em silêncio. Olharam. Ai! Lá estava o velho chinês, no meio do chão. Tinha caído da mesa, quando pretendera persegui-los e estava partido em três partes. Todo o dorso se desprendera num único pedaço e a cabeça tinha rolado para um canto.
O sargento_general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode estava onde sempre estivera, a meditar.
- É horrível! - disse a pastorinha. - O velho avô está feito em cacos e a culpa é nossa! Não consigo sobreviver a isto! - E torceu as mãozinhas minúsculas.
- Ainda pode ser gateado - disse o limpa-chaminés. - Pode muito bem ser gateado, desde que não seja com muita força! Se o colarem nas costas e lhe puserem um bom gato' na nuca, ficará outra vez tão bom como novo e poderá continuar a dizer-nos muita coisa desagradável!
- Achas que sim? - perguntou ela. E subiram outra vez para a mesa, onde tinham estado antes.
- Estás a ver! Fomos tão longe! - disse o limpa-chaminés. - Bem podíamos ter-nos poupado a todos esses incómodos!
- Se conseguirmos ao menos gatear o velho avô! - exclamou a pastora. - Será caro?
Foi gateado. A família mandou-o colar nas costas, recebeu um bom gato no pescoço e ficou tão bom que parecia novo. Mas acenar já não podia.
- Tornou-se bastante altivo, desde que se partiu em pedaços! - disse o Sargento-general-comandante-chefe-subchefe das pernas de bode. - Não me parece, contudo, que seja razão para ser tão terrível! Vou ter a pastorinha ou não vou tê-Ia?
O limpa-chaminés e a pastorinha olharam ternamente para o velho chinês. Tinham receio que pudesse acenar, mas ele não podia. Era-lhe desagradável contar a um estranho que tinha um gato na nuca. Assim ficou o par de porcelana unido, abençoaram o gato do avô e amaram-se até se fazerem em pedaços.

INDICATIVO

Acabámos de ouvir um conto de Hans Christian Anderson intitulado “A Pastorinha e o Limpa-chaminés. Uma história a substituir os habituais Contos Tradicionais Portugueses. Foi um presente.

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