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INDICATIVO
A história de hoje volta a ser comprida e não é uma história mas sim, uma lenda. A lenda de Pedro Sem.
MÚSICA
Defronte dos jardins do antigo Palácio de Cristal, no Porto, existe ainda hoje uma torre medieval à qual chamam Torre de Pedro Sem. A ela liga o portuense uma lenda do tempo em que as naus chegavam da Índia carregadas de riquezas. Antes porém de contar a lenda torna-se necessário precisar um pouco da verdade histórica ligada à torre e ao seu possuidor.
Pêro do Sem - sendo «Pêro» a forma medieval do nome Pedro - foi chanceler-mor do rei D. Afonso IV, pelo menos a partir de 1336. Era doutor em leis e jurisconsulto, e ocupou aquele cargo até 1341, pelo que consta em documentos da chancelaria real por si assinados. Descendentes seus continuaram a deter o cargo de chanceler-mor e, como se lê em documentos testamentários já do século XV, Martim do Sem, seu bisneto, veio a legar ao seu morgado, entre outros bens, a quinta da Torre de Pêro do Sem. Como parece evidente, uma vez que a lenda que se vai ouvir relata se passa no século XVI, o Pêro do Sem histórico nada tem a ver com o protagonista lendário.
MÚSICA
Pois conta a lenda que Pedro Cem vivia no seu Palácio da Torre, no Porto, na época em que as primeiras naus começaram a chegar da Índia carregadas de especiarias várias, tecidos finíssimos, perfumes exóticos. Pedro Cem era mercador, muito rico mas sem títulos nobiliárquicos, facto que muito o incomodava, o diminuía. Mandara à Índia naus que armara à sua própria custa e nas quais depositava íntimas esperanças de aumento de fortuna e, quem sabe, pudesse então ascender de qualquer modo a essa categoria social que lhe estava vedada por nascimento. Pedro Cem era também usurário, emprestando dinheiro a juros muito altos, não se importando com os sentimentos e a miséria que muitas vezes levavam os seus conterrâneos a pedir-lhe dinheiro emprestado. Por isso o seu Palácio da Torre era uma espécie de museu onde existiam, com muito prazer seu, os tapetes mais raros, as porcelanas mais finas e várias baixelas de ouro ou prata, onde se comprazia em servir os seus inúmeros convidados e amigos.
Estavam as suas naus para chegar quando conseguiu realizar a máxima ambição da sua vida: adquirir nobreza. Aconteceu tudo, como é evidente, por causa de empréstimos que há tempos vinha concedendo a um certo nobre arruinado. A quantia emprestada chegara a um tal montante que Pedro Cem decidiu jogar a sua cartada: ou lhe era paga a dívida e os juros respectivos ou a justiça real interviria a seu favor. Porém, a dívida poderia ser perdoada e esquecida mediante um simples contrato de casamento com a filha única do dito nobre, contrato que incluiria como dote da donzela todos os bens hipotecados e os que ainda não estivessem vinculados. Sem alternativas, o nobre senhor aceitou as condições impostas pelo usurário e celebraram-se os esponsais.
A lenda conta-nos que as festas dos esponsais duraram quinze dias consecutivos e que foi nessa altura, era Primavera, que lhe vieram anunciar que as suas naus se preparavam para entrar na barra do Douro. Eufórico, reuniu os seus amigos e convidados e subiram todos ao terraço da torre, para contemplarem a visão magnífica das naus de velas enfunadas a entrarem no rio. Arrebatado pelo espetáculo e antegozando todo o ouro, pedras preciosas e outras maravilhas que em breve tocaria e acariciaria, Pedro Cem bradou:
- Agora, desafio o próprio Deus a que me faça pobre!
Pela força do vinho, que corria a rodos na festança, ninguém deu pela blasfémia. Desceram as escadas e voltaram aos salões a fazer tempo para se deslocarem à praia assim que as naus ancorassem e fosse iniciada a descarga dos porões.
Entretanto, o céu, que estava azul e límpido, começou a toldar-se, primeiro de pequenas nuvens cinzentas e, em breve, ficou completamente negro, ameaçador.
Uma rabanada súbita de vento fez bater as portadas das janelas escancaradas da torre, à mistura com um trovão terrificante, e só então os convivas deram pela tempestade que se iniciava. Lá fora, a chuva começara a tamborilar sobre as pedras até que, de repente, desabou a cântaros como se uma nascente tivesse talhado com esforço uma abertura por entre as nuvens.
Pedro Cem começou a inquietar-se e, subitamente, lembrou-se das naus a entrarem na barra. Correu ao terraço e, completamente encharcado, presenciou um espetáculo mas desta vez aniquilador. À luz dos relâmpagos ininterruptos, as naus vogavam desgovernadas empurradas pela ventania sinistra e pelas ondas em fúria, entrechocando-se, submergindo uma a uma na foz do rio.
- Maldição, maldição! - rugiu entre dentes Pedro Cem.
Repentina e simultaneamente, um raio desceu ziguezagueando do céu negro e um trovão ribombou sob os pés de Pedro Cem, abanando a torre até aos alicerces. A casa fora atingida por uma faísca, que fez deflagrar um incêndio, facilmente alimentado pelo mobiliário, tapetes e tecidos finos. A tempo fugiram os convidados daqueles esponsais de má morte, fugiu a noiva, fugiu Pedro Cem. Da torre só sobraram as paredes chamuscadas, semicalcinadas. Num instante as forças indomáveis da Natureza consumiram todos os bens do homem que se sentira tão rico e poderoso que ousara desafiar o próprio Deus.
Passados meses, esquecido que fora o orgulhoso e rico Pedro Cem por todos os seus amigos tão assíduos outrora, nas redondezas da velha torre o silêncio lúgubre do local era cortado pelo murmúrio lamuriento e humilde de um pedinte esfarrapado que dizia aos raros passantes: Dê qualquer coisinha ao Pedro Sem, que já teve e agora não tem ...
MÚSICA
Ouvimos hoje uma lenda que fui buscar a coleção “Lendas Portuguesas” de autoria de Fernanda Frazão. Até à próxima!
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