Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 150
Egito Gonçalves

 

INDICATIVO

Vamos ouvir, neste programa, poesia de Egito Gonçalves, assim como uma pequena nota biográfica.
José Egito de Oliveira Gonçalves nasceu em Matosinhos no dia 8 de Abril de 1920, foi poeta, editor e tradutor e faleceu com 81 anos, no Porto.

MÚSICA

Egito Gonçalves iniciou a sua atividade literária durante o serviço militar em Ponta Delgada, Açores, tendo publicado os primeiros livros em 1950. Teve como profissão a administração de uma editora, assim como a chefia do Gabinete de Marketing de uma Seguradora.
A sua intensa atividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direção de diversas revistas literárias, como A Serpente em 1951, Árvore, de 52 a 54, Notícias do Bloqueio de 57 a 61, Plano de 1965 a 68 publicada, esta pelo Cineclube do Porto e finalmente foi diretor da coleção de poesia "Os olhos e a memória", da editora portuense Limiar.

MÚSICA

Em 1977 foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa pela seleção de Poemas da Resistência chilena e, em 1985 recebeu o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros.
Em 95 obteve o Prémio de Poesia do Pen Clube, o Prémio Eça de Queirós e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores com o livro “E No Entanto Move-se”. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano.

MÚSICA

Egito Gonçalves participou em vários movimentos antifascistas, no plano cultural e no da ação política da oposição democrática, tendo pertencido ao M.U.D. e às Comissões Nacionais e Executivas do III Congresso de Aveiro e desenvolveu atividades de animação cultural no Porto, tendo feito parte da direção do Teatro Experimental do Porto, do Cineclube do Porto, da Cooperativa Árvore e da Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto, assim como integrou organismos como a Delegação Norte da Sociedade Portuguesa de Escritores, Associação Portuguesa de Escritores, Sociedade Portuguesa de Autores e PEN Clube Português. Internacionalmente, pertenceu ao "Congresso para a Liberdade da Cultura" (França) e à "Comunitá Europea degli Scrittori" (Itália).

MÚSICA

Tal como Fernando Pessoa que ditou o seu último poema precisamente no dia em que morreu também Egito Gonçalves foi dos raros poetas que o fizeram. No dia em que morreu, Egito Gonçalves ditou um poema, que como alguém dizia, foi, como deve ser a poesia, um murro no estômago:
Entre mim e a minha morte
há ainda um copo de crepúsculo.
Talvez pequenas coisas
ainda respirem, não as distingo,
há uma névoa que me mantém na sombra.
Sei que lá fora as árvores
dançam ao vento, o que perdem
no outono ganham na primavera.

MÚSICA

Vamos ouvir, sem interrupção, cinco poemas de Egito Gonçalves.

MÚSICA

Muda-se o tema, onde o mar começa.
A aventura é o mar ou essa forma
que se forma depois, que vai viver
na memória dos dias? De uma ilha lembro
onde o mar me levou e do conhecimento
várias portas me abriu. O oceano
começava antes, acabava depois, ali
só prosseguia, embalando-me em noites
de velame abatido, de fáceis ananases,
de alta mastreação tocada de saudade
lucilante como a esteira do luar.
Mais tarde soube que estava sem trabalho
pois não havia Índias nem de infantas
o prémio de um sorriso. Mas combates
havia para outros, torpedos e canhões
longe não andavam. Daquela guerra
eu só fingia ser. Ancorado veleiro
eu pensaria a ilha, verde como o slogan,
nela não enjoava como, sobre o mar,
me acontecia nos navios da Insulana.
Marinheiro, eu não era. O mundo antigo
vivia-se nos livros, reproduções offset
multiplicavam os atlas, alguns poetas
banhariam na Grécia os seus poemas.

MÚSICA

Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval, a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
nos dias que bem embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
Que prendemos – contrabando – aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
Como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos do silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que nos vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
e segredo das torres que nos erguem,
e suspensas delas uma torre em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhe que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e o víveres escasseiam
aumenta a raiva
e a esperança reproduz-se.

MÚSICA

Tudo vai bem, amor! Aqui estamos longe!
Aqui malogra-se a abordagem dos terrores,
ninguém descarna o sonho ou a esperança,
não há fantasmas de espingarda ao ombro,
ninguém agoniza chicoteado pelas sombras...
Aqui não há ditadores nem guilhotinam os oráculos,
ninguém encobre estrelas com areia,
não cortam com navalhas os seios das mulheres,
nem se incendeiam ghetos com corpos de crianças:
é tudo útil, simples, como um campo de trigo
- a Esfinge é um animal de pedra muito gasta.
Os poetas podem passear nas ruas; a paz
não é uma aranha sobre a terra árida.
O sono não se povoa de estátuas de ameaça,
o amor não se faz de coração crispado:
o leito do amor é a simples terra nua.

MÚSICA

Se uma imagem te surge no lance de um poema
usa-a para o amor – jamais para a política.

Há sempre a pôr em verso duas coxas;
há sempre um coito, real ou imaginado,
com que esquives armadilhas panfletárias.

Os campos de concentração, as guerras,
os estados de angústia, não abundam
a arte em que propões engrandecer-te.

Fala do teu exílio, da infância perdida,
do castelo em que vives após o escritório.

Não te é vedado o rumo das flores, mas sempre
longe da campa de inúteis fuzilados.
Desabrocha-as no orvalho. Elas servem
para iluminar o quarto… aquele… tu sabes!

Se recorres às rosas faze que sejam brancas
se elimina as papoilas por motivo igual.
Não despistes a caneta em perigos inglórios:
os caçadores de símbolos
são graves e desconfiados.

MÚSICA

1
Há poetas que constróem o mundo nos cafés,
outros que o fazem no claro-escuro
entre as prisões e os intervalos.

Há poetas que aguardam cartas de apresentação
nem eles sabem para onde:
para a vida que falhou?, para a manteiga
que lhes foi negada?

Mas todos têm um sonho, todos
se esforçam por valer o pão que amasssam
− lançam seu delicado peso na balança.

Eles sabem, esses poetas,
que nada é eterno e imutável.

2
Tal a “Cadeia de Santo Onofre:
copie o texto: envie a cinco amigos”...
há poetas que se multiplicam, fendem
a vaga limite, impedem o suicídio,
explicam a vida, argamassam
dedicação e raiva.

Girassóis, rodam sobre si mesmos,
indicam o ponto onde a luz se abre.

3
Há poetas cuja poesia reagrupa, fornece
uma canção à cidade, martela
os que dormem alheios, move-se
silenciosamente ao jeito das estátuas.

Pacífica vaca ruminando na linha do rumo;
rosto impreciso solidificando breve;
tênue tinta azul no papel claro...

Os poetas têm
como os pele-vermelhas do cinema
o seu fumo e os seus cobertores.

4
Há poetas que renegam cartas
de apresentação para o arrivismo;
recusam a mão ao salário da trampa;
não enfeixam o nome e a desonra
nos telegramas do medo.

Enquanto bebem o café um histrião noturno
arenga; escuta o seu número; recebe
por nova pirueta uma ajuda de custo.

MÚSICA

Ouvimos, neste programa, o Palavras de Ouro 150, cinco poemas e uma nora biográfica de Egito Gonçalves. Até ao próximo programa.

INDICATIVO