Sophia de Mello Breyner e Andresen
OBRA
 

Pátria

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

– Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.


UM DIA

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.


Abril

Vinhas descendo ao longo das estradas,
Mais leve do que a dança
Como seguindo o sonho que balança
Através das ramagens inspiradas.

E o jardim tremeu,
Pálido de esperança.


Coral

Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha


Meio-dia

Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.


Quando

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.


Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades


Em todos os jardins

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.


Mar

Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.


As pessoas Sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.


Inscrição

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.


No Tempo Dividido
IV

Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser

Peço te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite.


Dia

Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.


PORQUE

Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


NAVIO NAUFRAGADO

Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.

É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.

Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.

E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.


TÃO GRANDE DOR

"Tão grande dor para tão pequeno povo" palavras de um timorense à RTP

Timor fragilíssimo e distante
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha

"Sândalo flor búfalo montanha
Cantos danças ritos
E a pureza dos gestos ancestrais"

Em frente ao pasmo atento das crianças
Assim contava o poeta Rui Cinatti
Sentado no chão
Naquela noite em que voltara da viagem

Timor
Dever que não foi cumprido e que por isso dói

Depois vieram notícias desgarradas
Raras e confusas
Violências mortes crueldade
E anos após ano
Ia crescendo sempre a atrocidade
E dia a dia espanto prodígio assombro
Cresceu a valentia
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha

Timor cercado por um bruto silêncio
Mais pesado e mais espesso do que o muro
De Berlim que foi sempre falado
Porque não era um muro mas um cerco
Que por segundo cerco era cercado

O cerco da surdez dos consumistas
Tão cheios de jornais e de notícias

Mas como se fosse o milagre pedido
Pelo rio da prece ao som das balas
As imagens do massacre foram salvas
As imagens romperam os cercos do silêncio
Irromperam nos écrans e os surdos viram
A evidência nua das imagens


NOVEMBRO

O sabor dos derradeiros dias
Roda ainda na casa e pela rua
Folhas vermelhas gemem por morrer
Mas nós não nos lembramos

O Inverno varre o céu e enche
O mundo inteiro de um sonho de vazio
Temos de estar sós e não ter nada
Horas sem fim na casa inabitada

Parece que partimos. Cada dia
Mais profundo na noite se aprofunda
E nós queremos partir – todos os cantos
Empalidecem ao pé desta decida
Até às pedras geladas do silêncio

Olhamos à janela de olhos fitos
Longe a claridade além dos rios
Queremos ir com o vento com o perigo
Queremos a injustiça do castigo
Somos nós que a nós mesmo nos matamos
E com mais amor do que quando amamos
Sentimos sobre nós descer o frio.

Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia


PERCA

Ainda há luz e já o rumor da tarde
Me separa da sombra do pinhal

Como viver de novo a alegria una
De ter sido nova que falhei

Só o tempo e bem tarde
Me envelheceu
Depois perdi sem saber como o andar
Dos meus passos.


SONETO DE EURYDICE

Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro
Porém nem nas marés nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia se somente
O rosto liso e puro da paisagem
E devagar tornei me transparente
Como morta nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente