Pátria 
Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exactidão
Dum longo relatório irrecusável
E pelos rostos iguais ao sol e ao vento
E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas
Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro
Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo.
UM DIA
Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.
O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.
Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.
Abril
Vinhas descendo ao longo das estradas,
Mais leve do que a dança
Como seguindo o sonho que balança
Através das ramagens inspiradas.
E o jardim tremeu,
Pálido de esperança.
Coral
Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha
Meio-dia
Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo,
Parece bater palmas.
Quando
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.
Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.
Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.
Exílio
Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades
Em todos os jardins
Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.
Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.
Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.
Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.
Mar
Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.
E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.
As pessoas Sensíveis
As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas
O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra
"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito
Perdoai lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem.
Inscrição
Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.
No Tempo Dividido
IV
Não te chamo para te conhecer
Conheço tudo à força de não ser
Peço te que venhas e me dês
Um pouco de ti mesmo onde eu habite.
Dia
Como um oásis branco era o meu dia
Nele secretamente eu navegava
Unicamente o vento me seguia.
PORQUE
Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.
Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.
Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.
NAVIO NAUFRAGADO
Vinha de um mundo
Sonoro, nítido e denso.
E agora o mar o guarda no seu fundo
Silencioso e suspenso.
É um esqueleto branco o capitão,
Branco como as areias,
Tem duas conchas na mão
Tem algas em vez de veias
E uma medusa em vez de coração.
Em seu redor as grutas de mil cores
Tomam formas incertas quase ausentes
E a cor das águas toma a cor das flores
E os animais são mudos, transparentes.
E os corpos espalhados nas areias
Tremem à passagem das sereias,
As sereias leves dos cabelos roxos
Que têm olhos vagos e ausentes
E verdes como os olhos de videntes.
TÃO GRANDE DOR
"Tão grande dor para tão pequeno povo" palavras de um timorense à RTP
Timor fragilíssimo e distante
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha
"Sândalo flor búfalo montanha
Cantos danças ritos
E a pureza dos gestos ancestrais"
Em frente ao pasmo atento das crianças
Assim contava o poeta Rui Cinatti
Sentado no chão
Naquela noite em que voltara da viagem
Timor
Dever que não foi cumprido e que por isso dói
Depois vieram notícias desgarradas
Raras e confusas
Violências mortes crueldade
E anos após ano
Ia crescendo sempre a atrocidade
E dia a dia espanto prodígio assombro
Cresceu a valentia
Do povo e da guerrilha
Evanescente nas brumas da montanha
Timor cercado por um bruto silêncio
Mais pesado e mais espesso do que o muro
De Berlim que foi sempre falado
Porque não era um muro mas um cerco
Que por segundo cerco era cercado
O cerco da surdez dos consumistas
Tão cheios de jornais e de notícias
Mas como se fosse o milagre pedido
Pelo rio da prece ao som das balas
As imagens do massacre foram salvas
As imagens romperam os cercos do silêncio
Irromperam nos écrans e os surdos viram
A evidência nua das imagens
NOVEMBRO
O sabor dos derradeiros dias
Roda ainda na casa e pela rua
Folhas vermelhas gemem por morrer
Mas nós não nos lembramos
O Inverno varre o céu e enche
O mundo inteiro de um sonho de vazio
Temos de estar sós e não ter nada
Horas sem fim na casa inabitada
Parece que partimos. Cada dia
Mais profundo na noite se aprofunda
E nós queremos partir todos os cantos
Empalidecem ao pé desta decida
Até às pedras geladas do silêncio
Olhamos à janela de olhos fitos
Longe a claridade além dos rios
Queremos ir com o vento com o perigo
Queremos a injustiça do castigo
Somos nós que a nós mesmo nos matamos
E com mais amor do que quando amamos
Sentimos sobre nós descer o frio.
Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia
PERCA
Ainda há luz e já o rumor da tarde
Me separa da sombra do pinhal
Como viver de novo a alegria una
De ter sido nova que falhei
Só o tempo e bem tarde
Me envelheceu
Depois perdi sem saber como o andar
Dos meus passos.
SONETO DE EURYDICE
Eurydice perdida que no cheiro
E nas vozes do mar procura Orpheu
Ausência que povoa terra e céu
E cobre de silêncio o mundo inteiro
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro
Porém nem nas marés nem na miragem
Eu te encontrei. Erguia se somente
O rosto liso e puro da paisagem
E devagar tornei me transparente
Como morta nascida à tua imagem
E no mundo perdida esterilmente