Pablo Neruda
OBRA
 

Para que tu me ouças...

Para que tu me ouças
as minhas palavras
adelgaçam-se por vezes
como o rasto das gaivotas sobre as praias.

Colar, guizo ébrio
para as tuas mãos suaves como as uvas.

E vejo-as tão longe, as minhas palavras.
Mais que minhas são tuas.
Vão trepando pela minha velha dor como a hera.

Elas trepam assim pelas paredes húmidas.
Tu é que és a culpada deste jogo sangrento.
Elas vão a fugir do meu escuro refugio.
Tu enches tudo, amada, enches tudo.

Antes de ti povoaram a solidão que ocupas,
e estão habituadas mais que tu à minha tristeza.

Agora quero que digam o que eu quero dizer-te
para que tu me ouças como quero que me ouças.

O vento da angústia ainda costuma arrastá-las.
Furacões de sonhos ainda por vezes as derrubam.
Tu escutas outras vozes na minha voz dorida.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas suplicas.

Ama-me, companheira. Não me abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nessa onda de angústia.

Mas vão-se tingindo com o teu amor as minhas palavras.
Ocupas tudo, amada, ocupas tudo.

Vou fazendo de todas um colar infinito
para as tuas brancas mãos, suaves como as uvas.


É a manhã cheia...

É a manhã cheia de tempestade
no coração do verão.

Como lenços brancos de adeus viajam as nuvens
que o vento sacode com viageiras mãos.

Inumerável coração do vento
pulsando sobre o nosso silêncio apaixonado.

Zumbindo entre as árvores, orquestral e divino,
como uma língua cheia de guerras e de cantos.

Vento que leva em rápido roubo a ramaria
e desvia as flechas latentes dos pássaros.

Vento que a derruba em onda sem espuma
e substância sem peso, e fogos inclinados.

Despedaça-se e submerge o seu volume de beijos
combatido na porta do vento do verão.


Ah, vastidão de pinheiros...

Ah vastidão de pinheiros, rumor de ondas quebrando,
lento jogos de luzes, sino tão solitário,
crepúsculo caindo nos teus olhos, boneca,
búzio terrestre, em ti a terra canta!

Em ti os rios cantam e a alma foge-me neles
como tu desejares e para onde tu quiseres.
Marca-me o caminho no teu arco de esperança
e soltarei em delírio a minha revoada de flechas.

Em torno de mim já vejo a tua cintura de névoa
e o teu silêncio acossa as minhas horas perseguidas,
e és tu com os teus braços de pedra transparente
onde ancoram meus beijos e a húmida ânsia faz ninho.

Ah a tua voz misteriosa que o amor escurece e dobra
no entardecer ressoante e morrendo!
Assim em horas profundas sobre os campos eu vi
dobrarem-se as espigas na boca do vento.


Na sua chama mortal...

Na sua chama mortal te envolve a luz.
Absorta, pálida dolente, assim postada
contra as velhas hélices do crepúsculo
que em torno de ti dá voltas.

Muda, minha amiga,
sozinha na solidão desta hora de mortes
e cheia das vidas do fogo,
herdeira pura do dia destruído.

Do sol desabam uvas no teu vestido escuro.
Da noite as grandes raízes
crescem de súbito da tua alma,
e ao exterior regressam as coisas em ti ocultas,
de modo que um povo pálido e azul
de ti recém-nascido se alimenta.

Ó grandiosa e fecunda e magnética escrava
do círculo que em negro e doirado acontece:
erguida, tenta e alcança uma criação tão viva
que morrem suas flores, e cheia é de tristeza.


Corpo de mulher…

Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
assemelhas-te ao mundo no teu jeito de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.

Fui só como um túnel. De mim fugiam os pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.

Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e triste!

Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.


Ode ao vinho

Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vino, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste num copo,
num canto, num homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.

O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
caem muros,
penhascos,
se fecham os abismos,
nasce o canto.
Oh tú, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.

Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou no outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no ceremonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.
Vinho.


Tendes que ouvir-me

Errante, fui cantando
entre as uvas
da Europa
e sob o vento,
sob o vento da Ásia.

O melhor das vidas
e da vida,
a doçura terrestre,
a paz pura,
fui recolhendo, errante,
recolhendo.

Com meu canto
ergui na boca
o melhor duma terra
e de outra terra:
a liberdade do vento,
a paz entre as uvas.

Pareciam os homens
inimigos,
mas a mesma noite
os cobria
e só uma claridade
os despertava:
a claridade do mundo.

Entrei nas casas quando
comiam à mesa,
vinham das fábricas,
riam ou choravam.
Eram todos iguais.

Todos tinham olhos
para a luz, procuravam
os caminhos.
Todos tinham boca,
entoavam cantos
à primavera.
Todos.

Por isso
procurei entre as uvas
e o vento
o melhor dos homens.
Agora tendes que ouvir-me.
(tradução de Albano Martins)


Angela Adonica

Hoje deitei-me junto a uma jovem pura
como se na margem de um oceano branco,
como se no centro de uma ardente estrela
de lento espaço.

Do seu olhar largamente verde
a luz caía como uma água seca,
em transparentes e profundos círculos
de fresca força.

Seu peito como um fogo de duas chamas
ardia em duas regiões levantado,
e num duplo rio chegava a seus pés,
grandes e claros.

Um clima de ouro madrugava apenas
as diurnas longitudes do seu corpo
enchendo-o de frutas estendidas
e oculto fogo.


Ode à Poesia

Quase cinquenta anos
a caminhar
contigo, Poesia.
Ao princípio
enleavas me os pés
e eu caía de borco
na terra escura
ou enterrava os olhos
no charco
para ver as estrelas.
Mais tarde estreitaste me
com os dois braços da amante
e subiste
pelo meu sangue
como uma trepadeira.
No minuto seguinte
convertias te em taça.

Belo
foi
ires escorrendo sem te consumires,
ires entregando a tua água inesgotável,
ires vendo que uma gota
caía sobre um coração queimado
e dessas mesmas cinzas revivia.
Porém
nem isso me bastou.
Tanto andei contigo
que te perdi o respeito.
Deixei de ver te como
Náiade vaporosa,
pus te a fazer de lavadeira,
a vender pão nas padarias,
a fiar com as simples tecedeiras,
a bater o ferro na metalurgia.
E vieste comigo
andando pelo mundo,
mas já não eras
a florida
estátua da minha infância.
Falavas
agora
com voz férrea.
As tuas mãos
foram duras como pedras.
O teu coração
foi um abundante
manancial de sinos,
fizeste para mim pão com fartura,
ajudaste me
a não cair de borco,
procuraste me
companhia,
não uma mulher,
não um homem,
mas milhares, milhões.
Juntos, Poesia,
fomos
ao combate, à greve,
ao desfile, aos portos,
à mina,
e eu ri me quando saíste
com a testa suja de carvão
ou coroada com serrim fragrante
das serrações.
Já não dormíamos na estrada.
Esperavam nos nos grupos
de operários com camisas
recém lavadas e bandeiras vermelhas.

E tu, Poesia,
até aí desgraçadamente tímida,
marchaste
à cabeça
e todos
se habituaram ao teu traje
de estrela quotidiana,
pois mesmo que algum relâmpago denunciasse a tua família
tu cumpriste a tarefa,
andando passo a passo com os homens.
Eu pedi te que fosses
utilitária e útil,
como metal ou farinha,
pronta a ser arado,
ferramenta
pão e vinho,
pronta, Poesia,
a lutar corpo a corpo
e a cair esvaída em sangue.

E agora,
Poesia,
obrigado, esposa,
irmã ou mãe
ou noiva,
obrigado, onda do mar,
flor branca e bandeira,
motor de música,
grande pétala de oiro,
sino submarino,
celeiro
inesgotável,
obrigado
terra de cada um
dos meus dias,
vapor celeste e sangue
dos meus anos,
porque me acompanhaste
da mais enrarecida altura
à simples mesa
dos pobres,
porque puseste na minha alma
sabor ferruginoso
e fogo frio,
porque me ergueste
à altura insigne
dos homens vulgares,
Poesia,
porque a teu lado
enquanto me gastava
tu foste sempre
aumentando essa frescura firme,
esse ímpeto cristalino,
como se o tempo
que a pouco e pouco me converte em terra
fosse deixar correr eternamente
as águas do meu canto.

(Tradução de Fernando Assis Pacheco)


Madrigal escrito no Inverno

No fundo do mar profundo,
na noite de longas riscas,
como um cavalo atravessa correndo
o teu calado calado nome.

Dá me lugar no teu ombro, aí, abriga me,
aparece me no teu espelho, de repente,
sobre a folha solitária, nocturna,
brotando do escuro, detrás de ti.

Flor da doce luz completa,
acode me com a tua boca de beijos,
violenta de separações,
determinada e fina boca.

Pois digo te, no mais longe dos longes,
de um esquecimento a outro moram comigo
os carris, o grito da chuva:
o que a escura noite preserva.

Acolhe me no tear da tarde,
quando o anoitecer vai urdindo
o seu vestuário e palpita no céu
uma estrela cheia de vento.

Traze me a tua ausência até ao fundo,
pesadamente, com os olhos tapados,
atravessa me a tua existência, admitindo
que este meu coração está destruído.

(tradução de Fernando Assis Pacheco)


Walking around

Acontece que me canso de ser homem.
Acontece que entro nas alfaiatarias e nos cinemas
abatido, impenetrável, como um cisne de feltro
vogando numa água de orizem e de cinza.

O cheiro das barbearias faz me gritar em lágrimas.
Eu só quero um descanso de pedras ou de lã,
eu só quero não ver as lojas e os jardins,
mercadorias, óculos, ascensores.

Acontece que me canso destes pés, destas unhas,
e do cabelo e da sombra.
Acontece que me canso de ser homem.

E no entanto seria delicioso
assustar um notário com um livro cortado
ou dar morte a uma freira com um soco no ouvido.
Seria lindo
ir pela rua com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.

Não quero continuar a ser raiz nas trevas,
vacilante, estendido, tiritando de sono,
para baixo, nas tripas molhadas da terra,
absorvendo e pensando, comendo dia após dia.

Não quero para mim tanta desgraça.
Não quero continuar raiz e sepultura,
subterrâneo solitário e adega com mortos,
transido, morrendo de desgosto.

Por isso a segunda feira arde como o petróleo
quando me vê chegar com esta cara de cárcere
e uiva no seu decurso como roda ferida,
e dá passos de sangue quente em direcção à noite.

E empurra me para certos cantos, certas casas húmidas
para os hospitais onde os ossos saem pela janela,
para certas sapatarias que cheiram a vinagre,
para ruas espantosas como fendas.

Há pássaros cor de enxofre com horríveis intestinos
pendentes da entrada das casas que eu odeio,
há dentaduras esquecidas numa cafeteira,
há espelhos
que deviam ter chorado de vergonha e de espanto,
há guarda chuvas em todo o lado, e veneno, e umbigos.

Eu passeio com calma, com olhos, com sapatos,
com fúria, com esquecimento,
passo, atravesso escritórios e centros ortopédicos,
e pátios onde há roupa a secar num arame:
cuecas, toalhas e camisas que choram
lentas lágrimas sujas.

(tradução de Fernando Assis Pacheco)


Morre lentamente

Morre lentamente quem se transforma em escravo do hábito,
repetindo todos os dias os mesmos trajectos,
quem não muda de marca,
não arrisca vestir uma cor nova e não fala com quem não conhece.

Morre lentamente quem faz da televisão seu guru.

Morre lentamente quem evita uma paixão,
quem prefere o negro ao invés do branco e os pingos nos iis a um
redemoinho de emoções,
exactamente o que resgata o brilho nos olhos,
o sorriso nos lábios e coração aos tropeços.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está infeliz no
trabalho,
quem não arrisca o certo pelo incerto para ir atrás de um sonho.

Morre lentamente quem não se permite, pelo menos uma vez na vida,
ouvir conselhos sensatos.

Morre lentamente quem não viaja, não lê,
quem não ouve música,
quem não encontra graça em si mesmo.

Morre lentamente quem passa os dias queixando se da sua má sorte,
ou da chuva incessante.

Morre lentamente quem destrói seu amor próprio,
quem não se deixa ajudar.

Morre lentamente quem abandona um projecto antes de iniciá lo,
nunca pergunta sobre um assunto que desconhece e nem responde quando
lheperguntam sobre algo que sabe.

Evitemos a morte em suaves porções, recordando sempre que estar vivo
exige um esforço muito maior que o simples ar que respiramos.


Posso escrever...

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.

Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei a e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive a em meus braços.
Beijei a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Importa lá que o meu amor não pudesse guardá la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê la perdido.

Como para chegá la a mim o meu olhar procura a.
O meu coração procura a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê la perdido.

Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.