Mário Cesariny
OBRA
 

exercício espiritual

É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia  
é preciso dizer azul em vez de dizer pantera  
é preciso dizer febre em vez de dizer inocência  
é preciso dizer o mundo em vez de dizer um homem  

É preciso dizer candelabro em vez de dizer arcano  
é preciso dizer Para Sempre em vez de dizer Agora  
é preciso dizer O Dia em vez de dizer Um Ano  
é preciso dizer Maria em vez de dizer aurora  


ortofrenia

Aclamações
dentro do edifício inexpugnável
aclamações
por já termos chapéu para a solidão
aclamações
por sabermos estar vivos na geleira
aclamações
por ardermos mansinho junto ao mar
aclamações
porque cessou enfim o ruído da noite a secreta alegria por escadas de caracol
aclamações
porque uma coisa é certa: ninguém nos ouve
porque outra é indubitável: não se ouve ninguém

(Pena Capital)


Poema

Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

(1923)
Pena Capital


“Parada”

 Com um grande termómetro no chapéu
e um certo ar marcial de género equidistante
todos saíram hoje das suas casas na duna
para a rua a soprar o vento que vem de longe
a certeza que há de vir de longe
a formiga que vem de muito muito longe

Os prisioneiros polícias dos polícias prisioneiros
nas montras nos passeios por baixo dos bancos
passam os pontos escuros para o outro lado
sem esquecer o espelho
sem esquecer o aranhiço meticulosamente pequenino para fazer a surpresa
sem esquecer a borboleta tonta que sobe no horizonte
da cor do sol
o pescoço da nossa felicidade
(Pena Capital)


"Calçada do cardeal"

Pequeno tambor orgia modesta
o lago tranquilo a descoloração
tintura de brancos e verdes floresta
o lago tranquilo a prostituição
candura doçura nos olhos em festa
mão no coração

A bola de vidro rola vis à vis
com as flores que altas são no jardim.
Há justos e réprobos porque o Senhor quis
vingar se de nós porque sim.


XIX

Muito acima das nuvens seja o centro
das nossas misteriosas poéticas
o irresistível anseio de viajar
um só movimento trabalhado à mão
nos ermos mais altos
mais desaparecidos.


TODOS POR UM
 
A manhã está tão triste
que os poetas românticos de Lisboa
morreram todos com certeza
 
Santos
Mártires
e Heróis
 
Que mau tempo estará a fazer no Porto?
Manhã triste, pela certa.
 
Oxalá que os poetas românticos do Porto
sejam compreensivos a pontos de deixarem
uma nesgazinha de cemitério florido
que é para os poetas românticos de Lisboa não terem de
recorrer à vala comum.


RUA DO OURO
 
Ai dele que tanto lutou e afinal
está tão só. Tão sózinho. Chora.
Direcção da Companhia Tantos de Tal.
Cinquenta e três anos. Chove, lá fora.
 
Chora, porquê? Ora, chora.
Uma crise de nervos, coisa passageira.
É, talvez, pela mulher que o adora?
(A ele ou à carteira?)
 
Seis horas. Foi se o pessoal.
O homem que venceu está sózinho.
Mas reage: que diabo. Afinal... 
E olha para o cofre cheínho.
 
Sim estou só ainda bem porque não? ele diz
batendo com os punhos na mesa.
Lutei e venci. Sou feliz
E bate com os punhos na mesa.
 
Seis e meia. Ó neurastenia
o homem que venceu está de borco
e sente uma grande agonia
que afinal é da carne de porco
que comeu no outro dia.
 
É da carne de porco ele diz
vendo a chuva que cai num saguão.
É da carne de porco. Sou feliz.
E ampara a cabeça com as mãos.
 
Durante toda a vida explorou o semelhante.
Por causa dele arruinaram se uns cem.
Agora, tem medo. E o farsante
diz que é feliz diz que está muito bem.
 
Sim, reage. Que diabo. Terei medo?
E vê as horas no relógio vizinho.
Mas, ai, não é tarde nem cedo.
Ele, que venceu, está sózinho.
 
Venceu quem? Venceu o quê? Venceu os outros
Os outros, os que o queriam vencer!
Arruinou os, matou os aos poucos.
Então não o queriam lá ver?
 
Sim, reage: Esta noite a Leonor
amanhã de manhã o Sálemos
e depois? Ah o novo motor
veremos veremos veremos
 
Mas pouco do que diz tem sentido.
Tudo hoje lhe é vago uniforme miudinho.
O homem que venceu está vencido.
O dinheiro tapou lhe o caminho.
 
Os filhos? esperam que ele morra.
A mulher? espera que ele morra.
O sócio? Pede a Deus que ele morra!
Só a Anita não quer que ele morra!
 
Ai, maldita carne, murmura
vendo a água que há no saguão.
Tinha demasiada gordura!
E veste o casaco e o gabão.
 
Passa os olhos pelo lenço. Acabou se.
Vai sair. Talvez vá jantar?
É inverno. Lá fora, faz frio.
 
O homem que venceu matou se
na margem mais escura do rio
ao volante dum belo Packard.


POEMA

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco.


HISTÓRIA DO CÃO

eu tinha um velho tormento
eu tinha um sorriso triste
eu tinha um pressentimento

tu tinhas os olhos puros
os teus olhos rasos de água
como dois mundos futuros

entre parada e parada
havia um cão de permeio
no meio ficava a estrada

depois tudo se abarcou
fomos iguais um momento
esse momento parou

ainda existe a extensa praia
e a grande casa amarela
aonde a rua desmaia

estão ainda a noite e o ar
da mesma maneira aquela
com que te viam passar

e os carreiros sem fundo
azul e branca janela
onde pusemos o mundo

o cão atesta esta história
sentado no meio da estrada
mas de nós não há memória

dos lados não ficou nada