Eugénio de Castro
OBRA
 

A MINHA FILHA VIOLANTE

Acorda cedo como os passarinhos,
vem logo direita à minha cama;
Sacode-me com jeito, por mim chama
E abre-me os olhos com os seus dedinhos.
Estremunhado, zango-me. - "Beijinhos,
"Não quer beijinhos?" com voz d'ouro exclama:
Da minha ira empalidece a chama,
E, acarinhando-a, pago os seus carinhos.
Senhor! que amor de filha tu me deste!
Dá-lhe um caminho brando e sem abrolhos,
Dá-lhe a virtude por amparo e guia;
E destina também, ó Pai celeste,
Que a mão com que ela agora me abre os olhos
Seja a que há de fechar-mos algum dia!


O DILÚVIO

Há muitos dias já, há já bem longas noites
que o estalar dos vulcões e o atroar das torrentes
ribombam com furor, quais rábidos açoites,
ao crebro rutilar dos coriscos ardentes.

Pradarias, vergéis, hortos. vinhedos, matos,
tudo desapar'ceu ao rude desabar
das constantes, hostis, raivosas cataratas,
que fizeram da Terra um grande e torvo mar.

À flor do torvo mar, verde como as gangrenas,
onde homens e leões bóiam agonizantes,
imprecando com fúria e angústia, erguem se apenas,
quais monstros colossais, as montanhas gigantes.

É aí que, ululando, os homens como as feras
refugiar se vão em trágicos cardumes,
O mar sobe, o mar cresce. e os homens e as panteras,
crianças e reptis caminham para os cumes.

Os fortes, sem haver piedade que os sujeite,
arremessam ao chão pobres velhos cansados.
e as mães largam. cruéis, os filhinhos de leite,
que os que seguem depois pisam, alucinados.

Um sinistro pavor; crescente e sufocante,
desnorteia, asfixia a turba pertinaz:
ouvem se urros de dor, e os que vão adiante
lançam pedras brutais aos que ficam p’ra trás.

Raivoso, o touro estripa os míseros humanos
que o estorvam, ao correr em fuga desnorteada,
e pelo ar tenebroso as águias e os milhanos
fogem, com vivo horror, daquela estropeada.

Cresce a treva infernal nos cavos horizontes;
o oceano sobe e muge em raivas cavernosas,
e as ondas, a trepar pelos visos dos montes,
fazem de cada vez cem vítimas chorosas!

Os negros vagalhões, nos bosques mais cimeiros.
silvam e marram já, em golpes iracundos;
resplendem raios mil em rútilos chuveiros,
e os corvos, a grasnar, desolham moribundos.

Blasfémias, maldições elevam se à porfia;
fustigado p’lo raio, aumenta o furacão;
cada ruga do mar acusa uma agonia,
cada bolha, ao estalar, solta uma imprecação.

Cresce n mar, sobe o mar... e traga, rudemente.
da m ais alta montanha o píncaro nevado.
e um tremendo trovão aplaude a vaga arlente,
que envolve, ao despenhar se, o último condenado.

Cresce o mar, sobe o mar, que já topeta os céus:
e, levada p’lo fero e desabrido norte,
sua espuma, a ferver, molha o rosto de Deus,
que lhe encontra um sabor nauseabundo de morte...

Cresce o mar, sobe o mar... Cada vaga é uma torre!
No céu, o próprio Deus melancólico pasma...
E, pelos vagalhões acastelados, corre
a Arca de Noé, qual navio fantasma...


EPÍGRAFE

Murmúrio de água na clepsidra gotejante,
Lentas gotas de som no relógio da torre,
Fio de areia na ampulheta vigilante,
Leve sombra azulando a pedra do quadrante,
Assim se escoa a hora, assim se vive e morre...

Homem, que fazes tu? Para quê tanta lida,
Tão doidas ambições, tanto ódio e tanta ameaça?
Procuremos somente a Beleza, que a vida
É um punhado infantil de areia ressequida,
Um som de água ou de bronze e uma sombra que passa...