Charles Baudelaire
OBRA
 

Anda, gata linda

Anda, gata linda, descansa sobre o meu coração,
E deixa os meus olhos mergulharem nos frios
Poços em brasa dos teus olhos encantados que dardejam
Raios metálicos de verde e ouro.

As minhas mãos fascinadas acariciam à vontade
A tua cabeça e dorso flexível, e quando
O teu corpo eléctrico enche de prazer
Os meus dedos vibrantes e inebriados, então

Transformas-te na minha mulher; pois o olhar dela,
Tal como o teu, Ó mais adorável das criaturas,
É gelado, profundo e cortante como uma lança.

E em torno do seu cabelo e das feições esfíngicas,
Em torno da sua figura morena flutuam, levemente misturados,
Um ar subtil e um perfume perigoso.


VIII - A Musa Venal

Ó musa da minha alma, que amas tanto o luxo,
Quando vier Janeiro e os ventos boreais,
Durante o negro tédio dos serões nevados
Irás ter um tição que te aqueça os pés roxos?

Reanimarás tu esses ombros marmóreos
Com os raios nocturnos que a janela filtra?
Sentindo a bolsa lisa, o palácio vazio,
Irás colher o oiro da celeste abóbada?

Precisas, pra ganhar o pão de cada noite,
Como um miúdo de coro, agitar o turíbulo
E cantar os Te Deums em que mal acreditas,

Ou, como um saltimbanco, exibir os encantos
E o teu riso inundado de invisível pranto
Para desafogares o baço do teu povo.
(Tradução de Fernando Pinto do Amaral)


A música

Arrasta me por vezes como um mar, a música!
Rumo à minha estrela,
Sob o éter mais vasto ou um tecto de bruma,
Eu levanto a vela;

Com o peito prà frente e os pulmões inchados
Como rija tela,
Escalo a crista das ondas logo amontoadas
Que a noite me vela;

Sinto vibrar em mim as inúmeras paixões
De uma nau sofrendo;
O vento, a tempestade e as suas convulsões

Sobre o abismo imenso
Embalam me. Outras vezes é a calma, esse espelho
Do meu desespero!.

As Flores do Mal
(Tradução de Fernando Pinto do Amaral)

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“As metamorfoses do vampiro”

Da boca de morango a mulher, todavia,
Esmagando os seios contra o ferro do espartilho
E torcendo se como uma cobra nas brasas,
Deixou correr palavras que a almíscar cheiravam:
– “Eu tenho húmidos lábios, conheço a ciência
De perder numa cama a antiga consciência.
Nos meus seios gloriosos seco todo o pranto
E faço os velhos rir com o riso das crianças.
Correspondo, pra quem me vê nua e sem véus,
Tanto ao sol como à lua, às estrelas e aos céus!
Na volúpia sou tão perita, caro sábio,
Quando um homem sufoco em meus temidos braços
Ou me abandono a alguém que me mordisque o busto,
Tímida e libertina, frágil e robusta,
Que até nestes colchões assombrados de espanto
Por mim se tentariam os impotentes anjos!”

Depois de me sugar dos ossos o recheio,
Quando, com languidez, pra ela me virei
Querendo um beijo de amor, eu vi apenas um
Odre a escorrer, viscoso e tão cheio de pus!
Os dois olhos fechei, num assombro gelado,
E quando os pude abrir na viva claridade,
Ao meu lado, em lugar do manequim possante
Que parecera ter feito provisão de sangue,
Tremiam na desordem restos de esqueleto
Que iam reproduzindo o som e um catavento
Ou de um letreiro, preso a um varão de ferro,
A abanar com o vento nas noites de Inverno.


(Tradução de Fernando Pinto do Amaral)
(Poema “condenado” em 1857 pelo tribunal correccional e excluído de “As Flores do Mal”)

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“Lesbos”

Mãe das volúpia gregas, dos jogos latinos,
Lesbos, de beijos lânguidos ou jubilosos,
Tão quentes como sóis, frescos quais melancias,
Ornamentando as noites e os dias gloriosos,
Mãe das volúpias gregas, dos jogos latinos,

Lesbos, lá onde os beijos são como cascatas
Lançando se sem medo em abismos sem fundo,
Correndo e soluçando em bruscas gargalhadas,
Tempestuosos, secretos, ferventes, profundos,
Lesbos, lá onde os beijos são como cascatas!

Lesbos, onde as Frinés uma à outra se atraem,
Onde nunca ficou sem eco um só suspiro;
Como a Pafos, também as estrelas te admiram
E Vénus, com razão, tem ciúmes de Safo!
Lesbos, onde as Frinés uma à outra se atraem,

Lesbos, terra das noites quentes, langorosas,
Fazendo com que ao espelho, ah, que estéril volúpia!
Donzelas de olhos vagos, amando os seus corpos,
Da sua puberdade acarinhem os frutos;
Lesbos, terra das noites quentes, langorosas,

Deixa o velho Platão franzir sobrolho austero;
Consegues o perdão com beijos incontáveis,
Terra nobre e amável, rainha do império,
E com esses requintes sempre inesgotáveis.
Deixa o velho Platão franzir sobrolho austero.

Consegues o perdão com o eterno martírio
Que as almas ambiciosas suportam sem tréguas,
Atraídas pra longe plo radiante sorriso
Vagamente entrevisto à beira de outros céus!
Consegues o perdão com o eterno martírio!

Que Deus irá ousar, Lesbos, ser teu juiz
E condenar te a fronte, pálida do esforço,
Se com balanças de oiro não pesou o rio
De lágrimas que ao mar deitaram tuas fontes?
Que Deus irá ousar, Lesbos, ser teu juiz?

Que nos querem as leis do justo e do injusto?
Virgens de alma sublime, honra do Arquipélago,
A vossa religião, como outra, é augusta
E o amor rir se á do Céu e do Inferno!
Que nos querem as leis do justo e do injusto?

Pois Lesbos escolheu me entre todos, na terra,
Pra cantar o segredo das virgens em flor
E desde a infância entendo esse negro mistério,
Desenfreada mistura de risos e choro;
Pois Lesbos escolheu me entre todos, na terra.

E desde então vigio do pico leucádico,
Como uma sentinela com o olhar seguro,
Atenta dia e noite a veleiro ou fragata
Cujas formas, ao longe, atravessem o azul;
E desde então vigio do pico leucádico

Pra saber se as marés são indulgentes, boas,
E entre alguns soluços, que na rocha ecoam,
Uma tarde trarão para Lesbos, que perdoa,
O adorado cadáver de Safo, que fora
Saber se as marés são indulgentes e boas!

Da masculina Safo, poeta e amante,
Pla triste placidez mais bela do que Vénus!
– O olho azul é vencido plo negro, essa mancha,
Ou círculo tenebroso traçado plas penas
Da masculina Safo, poeta e amante!

– Mais bela do que Vénus erguida no mundo,
Difundindo os tesouros da serenidade
E o esplendor da sua loira juventude
Nesse velho Oceano, com a filha encantado;
Mais bela do que Vénus erguida no mundo!

– De Safo, que morreu no dia da blasfémia,
Quando, insultando o rito e o culto inventado,
Fez do seu corpo belo o pasto mais supremo
De um bruto cujo orgulho puniu a impiedade
Da que morreu no dia da sua blasfémia.

E assim, é desde então que Lesbos se lamenta
E, apesar dos louvores que lhe tece o universo,
Embriaga se, à noite, com o som da tormenta
Que ascende para os céus da sua costa deserta!
E assim, é desde então que Lesbos se lamenta!

(Tradução de Fernando Pinto do Amaral)
(Poema “condenado” em 1857 pelo tribunal correccional e excluído de “As Flores do Mal”)

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O ESTRANGEIRO

– De quem gostas mais?, diz lá, estrangeiro.
De teu pai, de tua mãe, de tua irmã ou do teu irmão?
– Não tenho pai, nem mãe, nem irmãos.
– Dos teus amigos?
– Eis uma palavra cujo sentido sempre ignorei.
– Da tua pátria?
– Não sei onde está situada.
– Da beleza?
– Amá la ia de boa vontade se a encontrasse.
– Do oiro?
– Odeio o tanto quanto vós a Deus.
– Então que amas tu singular estrangeiro?
– Amo as nuvens... as nuvens que passam... as
maravilhosas nuvens!