António Ramos Rosa
OBRA
 

Um caminho de palavras...

Sem dizer fogo – vou para ele. Sem enunciar as pedras, sei que as piso – duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que eu sei, já lá está, mas não estão os meus passos e os meus braços. Por isso caminho, caminho porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo, caminho e descubro o meu caminho.
Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedra, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.

Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim

E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe

Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.


Poema dum Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só
Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Por que não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Por que me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço
Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música
São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo numa só noite comprida
num quarto só

Este homem que pensou
com uma pedra na mão
tranformá-la num pão
tranformá-la num beijo

Este homem que parou
no meio da sua vida
e se sentiu mais leve
que a sua própria sombra


Teu corpo principia

Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.

Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.

Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)

Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.

Silêncio e sol – verdade,
respiração apenas.

Amor, eu sei que vives
num breve país.

Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.

Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.

O maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.

O vida perfumada
cantando devagar.

Enleio-me na clara
dança do teu andar.

Por uma água tão pura
vale a pena viver.

Um teu joelho diz-me
a indizível paz.


Uma voz na pedra

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


AQUI MEREÇO-TE

O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respiro é branca.
E corto o ar com um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
É aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálpebras transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra.
A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra ao horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
incessante alimento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar da sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.
Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.
Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos da água pelas veredas,
as mãos das ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.
Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.
É este o reino de insectos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hálito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha.


Não posso adiar o amor...

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração


Introdução de Helena Domingues a quem este poema foi dedicado pelo Poeta.

Ao homem, ao poeta, ao mestre, ao amigo que diz e põe em prática "Para um amigo tenho sempre um relógio no fundo da algibeira".
Quantas vezes, esse relógio foi posto à minha disposição…
E que belas palavras me dedicou neste MOMENTO

MOMENTO

Nenhum sopro de ausência. Só a paixão
suave
de um sol íntimo
no seu ninho verde e alaranjado.
Simplicidade de substância volátil,
desejo no seu silêncio,
luxo indolente, frescura de vértebras solares.
intimidade perfeita
e que demora numa cândida estância.
Tudo se tornou interno neste espaço interior,
na delícia extrema de um sossego de folhas.
O que era fugaz converteu-se em tempo enamorado
e em tranquila doçura de hábitos.

A palavra

A palavra é uma estátua submersa, um leopardo
que estremece em escuros bosques, uma anémona
sobre uma cabeleira. Por vezes é uma estrela
que projecta a sua sombra sobre um torso.
Ei la sem destino no clamor da noite,
cega e nua, mas vibrante de desejo
como uma magnólia molhada. Rápida é a boca
que apenas aflora os raios de uma outra luz.
Toco lhe os subtis tornozelos, os cabelos ardentes
e vejo uma água límpida numa concha marinha.
É sempre um corpo amante e fugidio
que canta num mar musical o sangue das vogais.


O espaço do olhar é tão claro e aberto
que nós estamos no mundo antes de o pensarmos
e nada nele indica que exista um outro lado
de sombras incertas e silêncios abismais
Vivemos no seio da luz onde o inteiro vibra
com a sua evidência de claro planeta
e ainda que divididos vivemos no espaço uno
porque é o único em que podemos respirar
As nossas sombras não nos acolhem como folhas
envolvendo o fruto o nosso desespero vem de mais fundo
e nele não podemos manter-nos temos de ascender
ao móvel girassol do nosso olhar
ainda que seja só para ver a fulva monotonia do deserto
A vocação da pupila é o imediato universal
quer caminhemos numa rua quer viajemos pelo mundo
quer ainda diante de uma página em branco
A palavra pode anteceder a visão mas também ela é atraída
para o luminoso espaço em que desenha os seus contornos
Como poderia a palavra fingir o que lhe foge
sem a superfície de um solo iluminado?


Não há outra tentação para o amor e para a poesia
a tentação de não dizer nada para dizer tudo

Não sonhei mas vi no silêncio de uma tarde de verão
o teu vulto melodioso junto a uma árvore negra e vermelha
o calor era tão lento que tu quase gritavas
lentamente a tarde era do Eros absoluto
lentamente o desejo de te possuir queimava me
e no desejo de fluir nuamente nas tuas veias
abrasava me
a tua cor era profunda como a terra lenta e vermelha
e lentamente como um astro uma sombra
abria as comportas da tua noite
e inundava te.


Tu és a liberdade de um corpo
que quer viver na violenta agonia das multidões
tu és a vida dilacerada que respira
na nudez dos seios
nas mãos obscuras nas mãos claras
tu vives pelo sol de todos nós
tu és pura como uma lágrima num muro
tu ascendes ao sol com todo o teu sangue
tu és a liberdade do desespero amante
eu amo te
com a tua sombra nua
com o teu abandono de onda
amo te porque és o amor que no desespero
é a vida verdadeira.


É por ti que escrevo que não és musa nem deusa
mas a mulher do meu horizonte
na imperfeição e na incoincidência do dia a dia
Por ti desejo o sossego oval
em que possas identificar te na limpidez de um centro
em que a felicidade se revele como um jardim branco
onde reconheças a dália da tua identidade azul
É porque amo a cálida formosura do teu torso
a latitude pura da tua fronte
o teu olhar de água iluminada
o teu sorriso solar
é porque sem ti não conheceria o girassol do horizonte
nem a túmida integridade do trigo
que eu procuro as palavras fragrantes de um oásis
para a oferenda do meu sangue inquieto
onde pressinto a vermelha trajectória de um sol
que quer resplandecer em largas planícies
sulcado por um tranquilo rio sumptuoso


Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança
de um peito que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto


Nos nossos olhos...

Nos nossos olhos há uma ingenuidade imediata
que é mais do que uma ponte para o dia
porque é o dia mesmo no seu espaço de luz,
na sua lenta fatalidade, na sua urgência solar.
Escrevo talvez para sorver uma laranja de sombra
que é uma encantação do tempo no espaço liso da casa.
Estou atento ao menor frémito do silêncio
que talha na palavra as pálpebras do sossego.
Talvez eu escreva um verso como um talismã
ou pouse a minha palma sobre um ombro
de uma figura de água delicada,
vazia de sentido mas como uma estrela branca
ou uma harpa azul com seus flancos de ouro.
Se no silêncio a que o poema conduz
eu desenhasse o ouvido vegetal
da tranquila cobra de veludo e pólen
que dorme à beira de um regato verde
talvez pudesse atravessar o dia
com a lentidão fresca de um barco deslumbrado
abrindo o caminho na árvore azul do mar.


MARIA AMÉLIA

Mesmo que eu fale para mim só
as palavras poderão ressoar noutro mundo
ou em ti?
Que será necessário para que tu me ouças
quando estou perdido?
Eu estarei na terra à sombra de uma árvore
tu estarás deitada repousando
Saberás que vou ter contigo?
Se não puder dizer nem uma palavra
se tiver perdido a noção do espaço
se tiver perdido a continuidade do tempo
poderás vir ter comigo
E dizer me: António
eu sou a Maria Amélia?


PARA SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN

Vejo te sempre vertical num apogeu azul
em que celebras as coisas e pronuncias os nomes
com a claridade das cúpulas e das evidências solares
Em ímpetos claros vais figurando o cristal
que dos actos transferes para as palavras límpidas
O ar te deslumbra na sua extrema seda
em ângulos fugitivos Tão perto e tão remoto
o intacto rosto! Não ser? Estar estar
atentamente até que o silêncio seja o cimo
que tudo vai reunindo e consagrando no visível
Que possessão de vida que doçura tão forte
te liga a tanto fundo oculto a tanta festa
silenciosa! Tudo se vai definindo em sombra e cor
e as sílabas latentes soletram as evidências
simples e prodigiosas Através delas o espaço
das coisas se identifica ao ser absoluto
Em harmoniosa fluência e na atmosfera límpida
os vocábulos dizem a amizade do universo
Tão inteira e tão firme na grande realidade
que se levanta como uma onda e te expõe frente a frente!
Aproximas te do mar dos montes e das nuvens
e sustentas a atenção pura no número dos teus versos
O teu dom de ser acende se na coisas e no verbo
e os volumes vivos unificam se em assombro
Tua vasta alegria é um ócio resplandecente
que propaga e ondula o ouro maravilhado
Toda te convertes em presságio e fragância
e a tua vida freme em ti como uma rosa no espaço
És o dia a claridade do dia dominado
e de cimo em declive és o oriente amanhecendo
Frágil é o teu poder? Frágil e perfeitíssimo
num universo em que a criatura encontra o equilíbrio
justo e a delícia da certeza que é o espaço
De súbito as palavras têm um aroma a vento
e modulam as curvas como sinuosas barcas
Insinuam por vezes matizes de palácios
com pátios interiores onde desliza a água
Nada é um sonho por mais leve que seja
porque tudo é um trabalho sobre a madeira do mundo
Que potência cálida e tão certa entre as árvores
que enlaces naturais e que cintilantes cimos!
O teu destino é já música e sortilégio simples
de uma triunfal harmonia tão límpida e tão firme
que é de todos Porque em ti o mundo se redime
e toda a magia é a realidade da palavra