António Nobre
OBRA
 


CANÇÃO DA FELICIDADE

Felicidade! Felicidade!
Ai quem me dera na minha mão!
Não passar nunca da mesma idade,
Dos 25, do quarteirão.

Morar, mui simples, n'alguma caza
Toda caiada, defronte o Mar;
No lume, ao menos, ter uma braza
E uma sardinha p'ra n'ella assar ....

Não ter fortuna, não ter dinheiro,
Papeis no Banco, nada a render:
Guardar, podendo, n'um mialheiro
Economias p'r'o que vier.

Ir, pelas tardes, até á fonte
Ver as pequenas a encher e a rir,
E ver entre ellas o Zé da Ponte
Um pouco torto, quazi a cair.

Não ter chymeras, não ter cuidados
E contentar-se com o que é seu,
Não ter torturas, não ter peccados,
Que, em se morrendo, vai-se p'r'o Céu!

Não ter talento; suficiente
Para na Vida saber andar,
E quanto a estudos saber sómente
(Mas ai sómente!) ler e contar.

Mulher e filhos! A Mulherzinha
Tão loira e alegre, ]ezus! ]ezus!
E, em nove mezes, veI-a choquinha
Como uma pomba, dar outra á luz

Oh! grande vida, valha a verdade!
Oh! grande vida, mas que illuzão!
Felicidade! Felicidade!
Ai quem ma dera na minha mão!


PARA AS RAPARIGAS DE COIMBRA .

Tristezas têm-nas os montes,
Tristezas têm-nas o Céu,
Tristezas têm-nas as fontes,
Tristezas tenho-as eu!

O choupo magro e velhinho,
Corcundinha, todo aos nós,
És tal qual meu Avôzinho:
Falta-te apenas a voz.

Minha capa vos acoite
Que é para vos agazalhar:
Se por fora é côr da noite,
Por dentro é côr do luar ...

Ó sinos de Santa Clara,
Por quem dobraes, quem morreu?
Ah, foi-se a mais linda cara
Que houve debaixo do Céu!

A sereia é muito arisca,
Pescador, que estás ao Sol:
Não cae, tolinho, a essa isca ...
Só pondo uma flor no anzol!

A Lua é a hostia branquinha,
Onde está Nosso Senhor:
É duma certa farinha
Que não apanha bolor.

Vou a encher a bilha e trago-a
Vazia como a levei!
Mondego, q'ué da tua agoa,
Q'ué dos prantos que eu chorei?

No inverno não tens fadigas,
E tens agoa, para leões!
Mondego das raparjgas,
Estudantes e violões I

- É só porque o mundo zomba
Que pões luto? Importa lá!
Antes te vistas de pomba ...
-Pombas pretas tambem ha!

Therezinhas I Ursulinas!
Tardes de novena, adeus!
Os corações ás batinas
Que diriam? sabe-o Deus.

Ó bôca dos meus dezejos"
Onde o padre não poz sal,
São morangos os teus beijos,
Melhores que os do Choupall

Manoel do Pio repoiza.
Todas as tardes, lá vou
Ver se quer alguma coiza,
Perguntar como passou.

Agora, são tudo amores
Á roda de mim, no Caes,
E, mal se apanham douctores,
Partem e não voltam mais ....

Aos olhos da minha fronte
Vinde os cantarao encher:
Não ha, assim, segunda fonte
Com duas bicas a correr.

Os teus peitos são dois ninhos
Muito brancos, muito novos,
Meus beijos os passarinhos
Mortinhos por pôrem ovos.

Nossa Senhora faz meia
Com linha branca de luz:
O novelho é a Lua-Cheia,
As meias são pr'a Jezus.

Meu violão é um cortiço,
Tem por abelhas os sons,
Que fabricam, valha-me isso,
Fadinhos de mel, tão bons.

Ó Fogueiras, ó cantigas,
Saudades! recordações!
Bailae, bailae, raparigas!
Batei, batei, corações!
Coimbra, 1890.


VIAGENS NA MINHA TERRA

Ás vezes, passo horas inteiras
Olhos fitos n'estas brazeiras,
Sonhando o tempo que lá vae;
E jornadeio em phantazia
Essas jornadas que eu fazia
Ao velho Douro, mais meu Pae.

Que pittoresca era a jornada!
Logo, ao subir da madrugada,
Promptos os dois para partir:
-Adeus! adeus! é curta a auzencia,
Adeus - rodava a diligencia.
Com campainhas a tinir!

E, dia e noute, aurora a aurora,
Por essa doida terra fóra,
Cheia de Côr, de Luz, de Som,
Habituado á minha alcova
Em tudo eu via coiza nova,
Que bom era, meu Deus! que bom!

Moinhos ao vento! Eiras! Solares!
Antepassados! Rios! Luares!
Tudo isso eu guardo, aqui ficou:
Ó payzagem etherea e doce,
Depois do Ventre que me trouxe,
A ti devo eu tudo que sou!

No arame oscilante do Fio,
Amavam (era o mez do cio)
Lavandiscas e tentilhões ...
Agoas do rio vão passando
Muito mansinhas, mas, chegando
Ao Mar, transformam-se em leões!

Ao Sol, fulgura o Oiro dos milhos!
Os lavradores mail-os filhos
A terra estrumam, e depois
Os bois atrelam ao arado
E ouve-se além no descampado
N'um impeto, aos berros: - Eh! bois!

E, em quanto a velha mala-posta,
A custo vae subindo a encosta
Em mira ao lar dos meus Avós,
Os aldeãos, de longe, álerta,
Olham pasmados, bocca aberta ...
A gente segue e deixa-os sós.

Que pena faz ver os que ficam!
Pobres, humildes, não implicam,
Tiram com respeito o chapéu:
Outros, passando a nosso lado,
DIziam: «Deus seja louvado!,.
«Louvado seja!» dizia eu.

E, meiga, tombava a tardinha ...
No chão, jogando a vermelhinha,
Outros vejo a discutir.
Carpiam, mysticas, as fontes ...
Agoa fria de Traz-os-Montes
Que faz sede só de se ouvir!

E, na subida de Novellas,
O rubro e gordo Cabanellas
Dava-me as guias para a mão:
Isso ... queriam os cavallos!
Que eu não podia chicoteal-os …
Era uma dôr de coração.

Depois, cançados da viagem,
Repoizavamos na estalagem
(Que era em Casaes, mesmo ao dobrar ... )
Vinha a Sra. Anna das Dores
“ Que hão-de querer os meus Senhores?
Há pão e carne para assar …”

Oh! ingenuas mezas, honradas!
Toalhas brancas, marmeladas,
Vinho virgem no copo a rir ...
O cuco da sala, cantando ...
(Mas o Cabanellas, entrando,
Vendo a hora: «É preciso partir».)

Caia a noite. Eu ia fóra,
Vendo uma estrella que lá mora,
No Firmamento portuguez:
E ella traçava-me o meu fado
“Serás Poeta e desgraçado!»
Assim se disse, assim se fez.

Meu pobre Infante, em que scismavas,
Porque é que os olhos profundavas
No Céu sem par do teu Paiz?
Ias, talvez, moço troveiro,
A scismar n'um amor primeiro:
Por primeiro, logo infeliz ...

E o carro ia aos solavancos.
Os passageiros, todos brancos,
Resonavam nos seus gabões:
E eu ia álerta, olhando a estrada,
Que em certo sitio, na Trovoada,
Costumavam sair ladrões.

Ladrões! Ó sonho! Ó maravilha!
Fazer parte d'uma quadrilha,
Rondar, á Lua, entre pinhaes!
Ser Capitão! trazer pistolas,
Mas não roubando, - dando esmolas
Dependuradas dos punhaes ...

E a mala-posta ia indo, ia indo,
O luar, cada vez mais lindo,
Caia em lagrymas, - e, emfim,
Tão pontual, ás onze e meia,
Entrava, soberba, na aldeia
Cheia de guizos, tlim, tlim, tlim!

Lá vejo ainda a nossa Caza
Toda de lume, côr de braza,
Altiva, entre arvores, tão só!
Lá se abrem os portões gradeados,
Lá vêm com velas os criados,
Lá vem, sorrindo, a minha Avó.

E então, Jezus! quantos abraços!
Qu'é dos teus olhos, dos teus braços,
Valha-me Deus! como elle vem!
Toda admirada, de mãos juntas,
Toda me enchia de perguntas,
Como se eu viesse de Bethlem !

-E os teus estudos, tens-me andado?
Tomára eu ver-te formado!
Livre de Coimbra, minha flôr!
Mas vens tão magro, tão sumido ...
Trazes tu no peito escondido,
E que eu não saiba, algum amor?

No entanto entrava no meu quarto:
Tudo tão bom, tudo tão farto!
Que leito aquelle! e a agoa, Jezus !
E os lençoes! rico cheiro a linho!
-Vá, dorme que vens cançadinho.
Não adormeças com a luz!

E eu deitava-me, mudo e triste.
(- Reza tambem o Terço, ouviste?)
Versos, bailando dentro em mim ...
Não tinha tempo de ir na sala,
De novo: - Apaga a luz! - Que rala!
Descança, minha Avó, que sim!

Ora, ás occultas, eu trazia
No seio, um livro e lia, lia,
Garrett da minha paixão ...
D'ahi a pouco a mesma reza:
- Não vás dormir de luz acceza,
Apaga a luz! (E eu ainda...não!)

E continuava, lendo, lendo ...
O dia vinha já rompendo,
De novo: - Já dormes, diz?
- Bff! ... e dormia com a ideia
N'aquella tia Dorotheia,
De que falla Julio Diniz.

Ó Portugal da minha infancia,
Não sei que é, amo-te a distancia,
Amo-te mais, quando estou só ...
Qual de vós não teve na Vida
Uma jornada parecida,
Ou assim, como eu, uma Avó?


PURINHA

o Espírito, a Nuvem, a Sombra, a Quimera,
Que (aonde ainda não sei) neste Mundo me espera;
Aquela que, um dia, mais leve que a bruma,
Toda cheia de véus, como uma Espuma,
O Senhor Padre me dará pra mim
E a seus pés me dirá, toda corada: Sim!
Há-de ser alta como a Torre de David,
Magrinha como um choupo onde se enlaça a vide
E seu cabelo em cachos, cachos de uvas,
E negro como a capa das viúvas ...
(À maneira o trará das virgens de Belém
Que a Nossa Senhora ficava tão bem!)
E será uma espada a sua mão,
E branca como a neve do Marão,
E seus dedos serão como punhais,
Fusos de prata onde fiarei meus ais!
E os seus seios serão como dois ninhos,
E seus sonhos serão os passarinhos,
E será sua boca uma romã,

Seus olhos duas Estrelinhas da Manhã!
Seu corpo ligeiro, tão leve, tão leve,
Como um sonho, como a neve,
Que hei-de supor estar a ver, ao vê-la,
Cabrinhas-montesas da Serra da Estrela ...
E há-de ser natural como as ervas dos montes
E as rolas das serras e as águas das fontes,
E há-de ser boa, excepcional, quase divina,
Mais pura, mais simples, que moça e menina.
Deus, pela voz dos rouxinóis há-de gabá-la

E os rios ao passar hão-de cantá-la.
Seu virgem coração há-de ser tão branquinho,
Que não há neste Mundo a que igualá-lo: o linho
Que, em roca de cristal, fiava a minha Avó
Parecerá de crepe, e a neve ... far-me-á dó,
Mais a farinha do moleiro e a violeta,
E a Lua para mim será como uma Preta!

Mas em que Pátria, em que Nação é que me espera
Esta Torre, esta Lua, esta Quimera?
Fui ter com minha Fada e disse-lhe: "Madrinha!
Onde haverá na Terra assim uma Rainha?"
E a minha Fada, com sua vara de encantar,
Um reino me apontou, lá em baixo, ao pé do Mar ...

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!

E no dia do meu recebimento!
Manhã cedo, com luar ainda no Firmamento,
Quando ainda no Céu não bole uma Asa,
A minha Noiva sairá de casa
Maila sua Mãe, mailos seus Irmãos.
E há-de sorrir, e hão-de tremer-lhe as mãos ...
E a sua Ama há-de segui-la até à porta,
E ficará, coitada! como morta!
E há-de ser triste vê-la, ao longe, ainda ... olhando,
Com o avental seus olhos enxugando ...
E hão-de cercá-la sete Madrinhas;
Que hão-de ser sete virgens pobrezinhas,
Todas contentes por estrear vestido novo!
E, ao vê-las, suas mães sorrirão dentre o Povo ...
E o povo da freguesia
Esperará mais eu, no adro de Santa Iria.
E hão-de mirar-me com seu ar curioso,
E hão-de cercar-me, num silêncio respeitoso.
E eu hei-de-Ihes falar das colheitas, da chuva,
E dir-me-ão "que já vai pintando a uva ... "

E animados então (o Povo é uma criança!)
Porque o Sr. Doutor lhes deu confiança,
"Que Deus o ajude" dirá um, e o Regedor:
"Vá coa Graça de Nosso Senhor!"
E eu hei-de agradecer, sorrir, gostar.
Mas o Anjo, no entanto, não deve tardar ...
E d'entre o grupo exclamará um Velho, então:
"Já nasce o dia!" eu olharei ... mas não:
É a minha Noiva que parece dia,
Luzente como a cal de Santa Iria!
E ao vê-la tão branca, de branco vestida,
Ao longe, ao longe, hei-de cuidar ver uma Ermida!
E dirá o Pastor, com espanto tamanho,
Que é uma Ovelha que fugiu do seu rebanho!
E o João Maluco dirá que é o Luar de Janeiro!
E o Pescador explicará ao bom Moleiro
Que é tal-qualzinha a sua Lancha pelo Mar!
E o Moleiro dirá que é o seu Moinho a andar!
Que assim já foram as velhinhas cismarão,
E as netas, coitadas! que, um dia, o serão ...
Mas o Anjo assomará, à porta da capela,
E eu branco e trémulo hei-de ir ter com ela.
E a estrela deitar-me-á a bênção dos seus olhos
E uma aldeã deitar-lhe-á violetas, aos molhos!
E a Bem-Amada entrar na igreja há-de ...
E há-de casar-nos o Senhor Abade.
E, em seguida, será a nossa boda,
E festas haverá, na aldeia toda.
E as mais raparigas do sítio, solteiras,
Hão-de bailar bailados sobre as eiras,
Com trinta moedas de oiro sobre o peito!
E cantigas dirão a seu respeito
E a Noiva em glória, perpassando nas janelas,
Sorrirá com simplicidade para elas.
E a noite, pouco e pouco, descerá ...
E tudo acabará.
E depois e depois, o Anjo há-de se ir deitar,
E a sua Mãe há-de a abraçar ... E hão-de chorar!
E a sua alcova deitará sobre o jardim,
Onde uma fonte correrá, entre alecrim:
E, ao ouvi-la cantar, deitadinha na cama,
O Anjo adormecerá, cuidando que é a sua Ama ...
Mas qual a vila, qual a aldeia, qual a serra
Que este Palácio de Ventura encerra?
Fui ter com minha fada e disse-lhe: "Madrinha!
Acaso nunca te mentiu tua varinha?"
E a minha fada com sua vara de condão
Nos ares escreveu com três estrelas: "Não!"

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas! lindas meninas
Do Reino de Portugal!

O nosso Lar!
Minha Madrinha!, ajuda-me a sonhar!
Que a nossa casa se erga d' entre uma eminência,
Que seja tal qual uma residência,
Alegre, branca, rústica, por fora.
Que digam: "É o Senhor Abade que ali mora ... "
Mas no interior ela há-de ser sombria,
Como eu com esta melancolia:
E salas escuras, chorando saudades ...
E velhos os móveis, de antigas idades ...
(E, assim, me iluda e, assim, cuide viver
Noutro século em que eu deveria nascer.)
E nas paredes telas de Parentes ...
E janelas abertas sobre os poentes ...
(E a Quimera lerá o seu livro de rezas ... )
E cravos vermelhos por cima das mesas ...
E o relógio dará as horas devagar,
Como as palpitações de quem se vai finar ...

E, o dia todo, neste claustro e solidão,
Passarei a esquecer, ao canto do fogão;
E a cismar e a cismar sem que me veja alguém
Na Dor, na Vida, em Deus, nos mistérios do Além?
E eu o Astrólogo, o Bruxo, o Aflito, o Médio,
Rogarei aos Espíritos remédio
E um bom Espírito virá tratar do Doente
E há-de fugir com susto a outra gente.
E a Noite descerá, pouco e pouco, no entanto,
E a Noite embrulhará o Aflito no seu manto!
Mas a Purinha, então, vindo da rua,
Toda de branco surgirá, como uma Lua!
E, ao vê-la, acordarei, meu Deus de França!
E pela mão me levará, como uma criança.
E eu pálido! e eu tremendo! e o Anjo pelo caminho,
"Não te aflijas ... " dirá, baixinho ...

E, assim, será piedosa para os mais:
E há-de entrar na miséria dos casais,
Nos montes mais altos, nos sítios mais ermos,
E será a Saúde dos Enfermos!
E quando pela estrada encontrar um velhinho
Todo suado, carregadinho,
(Louvado seja Nosso Senhor!)
Há-de tirar seu lenço e ir enxugar-lhe o suor!
E às aves, em prisão, abrirá as gaiolas.
E aos sábados, o dia das esmolas,
A Santa descerá ao patamar da escada,
(Envolta, sem saber, numa capa estrelada)
Esmolas, distribuindo a este e àquele: e aos ceguinhos
E mais aos aleijadinhos,
Mais aos que deitam sangue pela boca,
Mais aos que vêm cantar, numa rabeca rouca,
Amores, naufrágios e A Nau Catrineta,
Mais aos Aflitos que andam no Planeta,
Mais às viúvas dos Degredados ...
E tudo seja pelos meus pecados!
E há-de coser (serão os remendos de flores)
As velas rotas dos pescadores
E a luz do seu olhar benzerá essas velas
E nunca mais hão-de rasgar-lhas as procelas!
E acenderá os círios ao Senhor,
(Que sejam como ela no talhe e na cor)
Quando houver temporal... e eu vier prà sacada
Ver os relâmpagos, ouvir a trovoada!
E nisto só resumir-se-á a sua vida:
Vestir os Nus, aos Pobres dar guarida,
Falar à alma que na angústia se consome,
Dar de comer a quem tem fome,
Dar de beber a quem tem sede ...

E, lá, do Alto, Jesus dirá aos Homens: "Vêde ... "
E eu hei-de em minhas obras imitá-la.
E amá-la como à Virgem e adorá-la.
E a Virgem há-de encher com a mesma paixão
As marés-vazas deste pobre coração
Que tanto teve e hoje nada tem,
Nem mesmo aquilo que vós tendes, Mãe.
E será a Mamã que me há-de vir criar,
Admirável Joaninha d'Arc,
Meu novo berço duma Vida nova!
E há-de ir comigo para a mesma cova,
Pois que no dia em que eu morrer
Veneno tomará, numa colher ...
Mas em que sítio, aonde? aonde? é que se esconde
Esta Bandeira, esta Índia, este Castelo, aonde? aonde?
Fui ter com minha Fada, e disse-lhe: "Madrinha!
Mas pode haver, assim, na Terra uma Purinha?"
E a minha Fada com sua vara de marfim
Nos ares escreveu com três estrelas: "Sim!"

Meninas, lindas meninas!
Qual de vós é o meu Ideal?
Meninas, lindas meninas
Do Reino de Portugal!


O sono de João

o João dorme ... (Ó Maria,
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar ... )
Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria ... um morango!
Podia engoli-lo um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores ...
Mas os outros são menores!

O João dorme ... Que regalo!
Deixá-lo dormir, deixá-lo!
Calai-vos, águas do moinho!
Ó Mar! fala mais baixinho ...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar ...

O João dorme, o Inocente!
Dorme, dorme eternamente
Teu calmo sono profundo!
Não acordes para o Mundo,
Pode levar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é ...

Ó Mãe, canta-lhe a canção,
Os versos do teu Irmão:
«Na vida que a Dor povoa,
Há só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir ...
Tudo vai sem se sentir».

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho ... até morrer!

E tu vê-lo-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo ...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João ... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Diz àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar...
E os anos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha também)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas,
Morrerá sem o sentir,
Isto é, deixa de dormir:
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é donde ele veio ...
Mas para isso, ó Maria!
Pede àquela cotovia
Que fale mais devagar:
Não vá o João acordar ...


Fala ao coração.

Meu Coração, não batas, pára!
Meu Coração, vai te deitar!
A nossa dor, bem sei, é amara,
A nossa dor, bem sei, é amara:
Meu Coração, vamos sonhar...
Ao Mundo vim, mas enganado.
Sinto me farto de viver:
Vi o que ele era, estou maçado,
Vi o que ele era, estou maçado.
Não batas mais! vamos morrer...
Bati à porta da Ventura
Ninguém ma abriu, bati em vão:
Vamos a ver se a sepultura,
Vamos a ver se a sepultura
Nos faz o mesmo, Coração!
Adeus, Planeta! Adeus, ò Lama!
Que a ambos nós vais digerir.
Meu Coração, a Velha chama,
Meu Coração, a Velha chama:
Basta por Deus! vamos dormir...


"Lusitânia no Bairro Latino"

1

............................................ Só!

Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó.
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês de Abril!
Que triste foi o seu fado!
Antes fosse pra soldado,
Antes fosse prò Brasil...

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar...
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram de sua lã.

António era o pastor desse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar,
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar...
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e todas puras
E só lhes minguava a fala
Pra serem perfeitas criaturas...
E quando na Igreja das Alvas Saudades
Que era da minha Torre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam me,
Eu persignava me, rezava «Ave Maria...»
E as doces ovelhinhas imitavam me.

Menino e moço, tive uma Torre de leite,
Torre sem par!
Oliveiras que davam azeite...
Um dia, os castelos caíram do Ar!

As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho... mas rotas e velhas!

Que triste fado!
Antes fosse aleijadinho,
Antes doido, antes cego...

Ai do Lusíada, coitado!

Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem no andar águas do Sena.,.
É negra a sua farinha!
Orai por ele! tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade...

Ó minha
Terra encantada, cheia de sol,
O campanário, ó Luas Cheias,
Lavadeira que lava o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
O ceifeira que segas cantando
O moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando,..
Flores dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, bregas de Verão!

Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?

Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca de fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! Ó sol! foguetes Ó toirada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões de água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades de Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!

Onde estais? onde estais?

O minha capa de estudante, às ventanias!
Cidade triste agasalhada entre choupais!
Ó dobres dos poentes às Ave Marias!
Ó Cabo do Mundo! Moreia da Maia!
Estrada de Santiago! Sete Estrelo!
Casas dos pobres que o luar, à noite, caia...
Fortalezas de Lipp! Ó fosso do Castelo,
Amortalhado em perrexil e trepadeiras,
Onde se enroscam como esposos e lagartas!
Sr. Governador a podar as roseiras!
Ó bruxa do Padre, que botas as cartas!
Joaquim da Teresa! Francisco da Hora!
Que é feito de vós?
Faláveis aos barcos que nadavam, lá fora,
Pelo porta voz...
Arrabalde! marítimo da França,
Conta me a história da Fermosa Magalona,
E do Senhor de Calais,
Mais o naufrágio do vapor Perseverança,
Cujos cadáveres ainda vejo à tona...
Ó farolim da Barra lindo, de bandeiras,
Para os vapores a fazer sinais,
Verdes, vermelhas, azuis, brancas, estrangeiras,
Dicionário magnífico de Cores!
Alvas espumas, espumando a frágua,
Ou rebentando à noite, como flores!
Ondas do mar! Serras da Estrela de água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastores!

Onde estais? onde estais?

Convento de águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadessa secular é a Lua
E cujo Padre capelão é o Vento...
Água salgada desses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
O Mar jazigo de paquetes, de ossos,
Que o sul, às vezes, arrola à praia
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos 1
Corpo de Virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu...
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta...
Bocas abertas que ainda soltam ais...
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa...)
O defuntos do Mar! Ó roxos arrolados!

Onde estais? onde estais?

O Boa Nova, ermida à beira mar,
Única flor, nessa vivalma de areias!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios...
O Santana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita...
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela praia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. Dom Pedro, Rei Soldado,
Atracou, diz a História,
No dia,.. não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor da Areia,
Onde o senhor apareceu a uma velhinha...
Algas! farrapos do vestido da Sereia!
Lanchas da Póvoa, que ides ã sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças.
Sol pôr, entre pinhais...
Capelas onde o sol faz morte, nas vidraças!

Onde estais?


2

Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera de maré,
Que não tarda aí, avista se lá fora!
E quando a onda vem, fincando a com toda a forca,
Clamam todas à urra: «Agora! agora! agora!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos probes!

Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...
Maim de Jesus!

É tal e qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!


Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matosinhos!


Os mestres ainda são os mesmos dantes
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vasco da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!


O lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os varões assinalados...»

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira,..
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!


3

Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha estas mocas, olha estas Marias!
Caramba! dá lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faz te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá lhes beijos, aperta as contra o peito.
Que hão de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!

Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo. à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam nos de rastros
Que eles mal sabem andar.

Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela é a Lua Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Vê! dentre o povo em êxtase, olha a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda não os tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mas ela sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel:
Abelhas de oiro tomam lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue da Sexta Feira...
Passa o último, o Sudário!
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o sol pôr...

Que pena faz vê lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal...

E a procissão passa. Preia mar de povo!
Maré cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su'alma beata.

Trazem imagens da Função nos seus chapéus.

Poeira opaca. Abafa se. E, no céu, ferro e oiro,
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam. Vai correr se o toiro.
Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.

Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão de ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!


À porta dum casal. um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.

Dança de roda moças o coveiro.
Clama um ceguinho:
«Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!»
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos fechados!
Reumáticos! Anões! Delíriums trémens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...

Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não me vêm pintar?

Paris, 1891 1892


AO CAIR DAS FOLHAS
À minha irmã Maria da Glória

Pudessem suas mãos cobrir meu rosto,
Fechar me os olhos e compor me o leito,
Quando, sequinho, as mãos em cruz no peito,
Eu me for viajar para o Sol posto.

De modo que me faça bom encosto,
O travesseiro comporá com jeito.
E eu tão feliz! por não estar afeito,
Hei de sorrir, Senhor! quase com gosto.

Até com gosto, sim! Que faz quem vive
Órfão de mimos, viúvo de esperanças,
Solteiro de venturas, que não tive?

Assim, irei dormir com as crianças
Quase como elas, quase sem pecados...
E acabarão enfim os meus cuidados.


SONETO

Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os Rios,
Sucedem se uns aos outros, igualmente.

Nunca desperto de manhã, contente.
Pálido sempre com os lábios frios,
Ora, desfiando os meus rosários pios...
Fora melhor dormir, eternamente!

Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter como têm os mais rapazes,
Olhos boiados em sol, lábio vermelho!

Quero viver, eu sinto o, mas não posso:
E não sei, sendo assim enquanto moço,
O que serei, então, depois de velho.


AO CANTO DO LUME

Novembro. Só! Meu Deus, que insuportável Mundo!
Ninguém, vivalma... O que farão os mais?
Senhor! a Vida não é um rápido segundo:
Que longas estas horas! Que profundo
Spleen o destas noites imortais!

Faz tanto frio. (Só de a ver, me gela a cama...)
Que frio! Olá, Joseph! Deita mais carvão!
E quando todo se extinguir na áurea chama,
Eu deitarei (para que serve? já não ama)
Às cinzas brancas, o meu pobre coração!

Lá fora o Vento como um gato bufa e mia...
Ó pescadores, vai tão bravo o Mar!
Cautela... Orçai! Largai a escota! Ave, Maria !
Cheia de Graça... Horror! Mortos! E a água tão fria...
Que triste ver os Mortos a nadar!

Spleen! Que hei de eu fazer? Dormir, não tenho sono,
Leva me a carne a Dor, desgasta me o perfil.
Nada há pior que este romântico abandono!
Ó meus Castelos em espanha! Ó meu Outono
De Alma! Ó meu cair das folhas, em Abril!

A Vida! Horror! Ó vós que estais no último alento!
Que felizes, sois prestes a partir!
Ó Morte, quero entrar no teu Recolhimento!...
Oiço bater. Quem é? Ninguém: um rato... o Vento...
Coitado! é o Georges, tísico, a tossir...

Mês de Novembro! Mês dos tísicos! Suando
Quantos a esta hora, não se estorcem a morrer!
Vê se os Padres as mãos, contentes, esfregando...
Mês em que a cera dá mais e a botica, e quando
Os carpinteiros têm mais obra pra fazer...

Oiço um apito. O trem que se vai... Engatar te
Quem me dera o vagão dos sonhos meus!
Lá passa, ao longe. Adeus! Quisera acompanhar te...
Boa viagem! Feliz de quem vai, de quem parte!
Coitado de quem fica... Adeus! adeus!
Que ilusão, viajar! Todo o Planeta é zero.
Por toda a parte é mau o Homem e bom o Céu.
Américas! Japão! Índias; Calvário!... Quero
Mas é ir à Ilha orar sobre a cova do Antero
E a Águeda beber água do Botaréu...

Via a Ilha loira, o Mar! Pisei terras de Espanha,
Países raros, Neves, Areais;
Cantando, ao luar, errei nas ruas da Alemanha...
Armei na França minha tenda de campanha...
E tédio, tédio, tédio e nada mais!

Que hei de eu fazer! Calai essas canções imundas,
Cervejarias do Quartier! Rezai, rezai!
Paisagem, onde estás? Ó luar, águas profundas!
Ó choupos, à tardinha, altivos, mas corcundas,
Tal como aspirações irrealizáveis, ai!

Não me tortura mais a Dor. Sou feliz. Creio
Em Deus, numa Outra Vida, além do Ar.
Vendi meus livros, meu Filósofo queimei o.
Agora, trago uma medalha sobre o seio
Com a qual falo, às noites, ao deitar.

(E a chuva cai...) Meu Deus! Que insuportável Mundo!
Vivalma! (O Vento geme...) O que farão os mais?
Senhor! A Vida não é um rápido segundo:
Que longas horas estas horas! Que profundo
Spleen mortal o destas noites imortais!