Alexandre O'Neill
OBRA
 

Sei os teus seios

Sei os teus seios.
Sei-os de cor.
Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.
Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.
Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!
Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!
Porque não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p'la manhã?
Quantas vezes
Interrogastes, ao espelho, os seios?
Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!
Quantos seios ficaram por amar?
Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!
Seios decrépitos e no entanto belos

Como o que já viveu e fez viver!
Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em deseperadas, quarentonas lágrimas...
Seios fortes como os da Liberdade
-Delacroix-guiando o Povo.
Seios que vão à escola p'ra de lá saírem
Direitinhos p'ra casa...
Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes filhos alheios!
Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...
O amor excessivo dum poeta:
"E hei-de mandar fazer um almanaque
da pele encadernado do teu seio"
Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!
Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.
Botas, botirrafas
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!
Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!
"Oculta, pois, oculta esses objectos
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos"
Raimundo Lúlio, a mulher casada
Que cortejastes, que perseguistes
Até entrares, a cavalo, p'la igreja
Onde fora rezar,
Mudou-te a vida quando te mostrou
("É isto que amas?")
De repente a podridão do seio.
Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...
Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...
Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...
Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!

Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne.

Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser


HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.


Um adeus português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
Ee avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia a dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde mores ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal.

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.


SIGAMOS O CHERNE
(Depois de ver o filme “O Mundo do Silêncio”, de
Jacques-Yves Cousteau)
 
Sigamos o cherne, minha Amiga!
Desçamos ao fundo do desejo
Atrás de muito mais que a fantasia
E aceitemos, até, do cherne um beijo,
Senão já com amor, com alegria..."
 
Em cada um de nós circula o cherne,
Quase sempre mentido e olvidado.
Em água silenciosa do passado
Circula o cherne: traído
Peixe recalcado…
 
Sigamos, pois, o cherne, antes que venha,
Já morto, boiar ao lume de água,
Nos olhos rasos de água,
Quando, mentido o cherne a vida inteira,
Não somos mais que solidão e mágoa…
 
No Reino da Dinamarca, 1958


Fados literários

As fatrasias, versos anfigúricos (ou sem sentido) de fábrica popular (dói-me a barriga nas costas, / o coração nas orelhas; / não posso cantar dum braço / por causa das sobrancelhas), encontram correspondentes eruditos, entre outros, nos chamados fados «literários», à feitura dos quais não devia ser alheio o compadrio entre o espírito da boémia e a boémia do espírito que em alguns meios académicos (Coimbra, p. ex.) animou, como pôde, a vida portuguesa neles represada. Menos soltos imaginativamente que as fatrasias, os fados «literários» parece que têm, em contrapartida, uma capacidade de demolição do discurso que as primeiras desconhecem. Os elencos vocabulares e os mecanismos que os põem em movimento são deliberadamente artificiosos (como se vê nos nossos dois exemplos, especialmente no fado zombeteiro) e querem mostrar, pelo menos no segundo, parece-me, como o discurso pode assumir o ridículo de ser importante. É o falar caro que todos nós gozamos, mas que, sectorialmente, pode representar uma forma sisuda de manter classe ...
Na ocasião em que, «para a Europa», a nacional-indigência não inventou nada de melhor que as nado-mortas letras das oito canções finalistas, será um exercício de auto-reanimação dar-vos a conhecer, ou a relembrar, um fado «esdrúxulo» dedicado à zombaria e um fado «tautofónico» todo entregue ao respeito:

Zombaria

Eu zombo de homens teutónicos,
Eu zombo dos argentários,
Eu zombo dos pitagóricos,
Eu zombo dos usurários.
Eu zombo dos dialécticos,
Eu zombo até dos sofísticos,
Eu zombo dos casuísticos,
Eu zombo já dos magnéticos;
Eu zombo dos cinegéticos,
Eu zombo dos bons eufónicos;
Eu zombo dos sons harmónicos,
Eu zombo dos bons topázios,
Eu zombo dos tais pascácios,
Eu zombo de homens teutónicos.
Eu zombo já dos gramáticos,
Eu zombo dos elegíacos,
Eu zombo desses siríacos,
Eu zombo dos esquipáticos;
Eu zombo até dos didácticos,
Eu zombo dos santanários;
Eu zombo dos proletários,
Eu zombo dos económicas;
Eu zombo dos pobres cómicos,
Eu zombo dos argentários.
Eu zombo dos privilégios,
Eu zombo dos sacrifícios;
Eu zombo dos artifícios,
Eu zombo dos sortilégios
Eu zombo dos sacrilégios',
Eu zombo dos tais históricos;
Eu zombo dos alegóricos;
Eu zombo até já dos clínicos
Eu zombo dos próprios cínicos,
Eu zombo dos pitagóricos.
Eu zombo dos patológicos.
Eu zombo dos fidelíssimos;
Eu zombo dos modestíssimos.
Eu zombo dos mitológicos;
Eu zombo dos pedagógicos,
Eu zombo dos breviários;
Eu zombo dos perdulários,
Eu zombo dos cabalísticos;
Eu zombo dos humorísticos,
Eu zombo dos usurários.

Respeito

Respeito o poder do galo.
Respeito a voz do leão,
Respeito as tetas da vaca,
Respeito a pele do cação.
Respeito o ferrão da abelha,
Respeito as penas do pato,
Respeito as unhas do gato,
Respeito as cãs duma velha;
Respeito o velo da ovelha,
Respeito o nobre cavalo,
Respeito o rim-rim do ralo,
Respeito o fim da baleia,
Respeito a voz da sereia,
Respeito o poder do galo.
Respeito o mau papagaio,
Respeito o bom pintarroxo,
Respeito a forma do mocho,
Respeito o verde do gaio,
Respeito o fino garraio,
Respeito as pernas do anão,
Respeito os pés do pavão,
Respeito a velha serpente,
Respeito a língua da gente,
Respeito a voz do leão.
Respeito a cor da rolinha,
Respeito o zum do besoiro,
Respeito as armas do toiro,
Respeito o fel da pombinha,
Respeito o pôr da galinha.
Respeito o mal da macaca,
Respeito o pêlo da alpaca.
Respeito a tal cegarrega.
Respeito o bico da pega.
Respeito as tetas da vaca.
Respeito as asas do grilo,
Respeito a feia minhoca,
Respeito o berro da foca,
Respeito o vil crocodilo,
Respeito o curso do esquilo,
Respeito o ser tubarão,
Respeito os dentes do cão.
Respeito os coices da mula.
Respeito o gosto da lula
Respeito a pele do cação.

E muito obrigado pela atenção que nos dispensaram!


Duas moscas ou a mesma? 
 
1
 
- Onde já vi esta mosca?
- Mas em toda a parte, filha,
desde o bolo de noivado
à minha tépida v'rilha!
 
2
 
Eis a mosca popular
aferroada aos miúdos,
avioneta escolar
para fugir aos estudos!


Daqui...

Daqui, desta Lisboa compassiva,
Nápoles por suíços habitada,
onde a tristeza vil e apagada
se disfarça de gente mais activa;

daqui, deste pregão de voz antiga,
deste traquejo feroz de motoreta
ou do outro de gente mais selecta
que roda a quatro a nalga e a barriga;

daqui, deste azulejo incandescente,
da soleira de vida e piaçaba,
da sacada suspensa no poente,
do ramudo tristolho que se apaga;

daqui, só paciência, amigos meus!
Peguem lá o soneto e vão com Deus...


FALA

Fala a sério e fala no gozo
Fá la pela calada e fala claro
Fala deveras saboroso
Fala barato e fala caro
Fala ao ouvido fala ao coração
Falinhas mansas ou palavrão
Fala à miúda mas fá la bem
Fala ao teu pai mas ouve a tua mãe
Fala francês fala béu béu
Fala fininho e fala grosso
Desentulha a garganta levanta o pescoço

Fala como se falar fosse andar
Fala com elegância muito e devagar.


Poema pouco original do medo

O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis
Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo
(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos
sim
a ratos


III

Sê como és: o sol é bom,
o ar vivaz.
Do azul aos azuis, do verde aos verdes,
a terra é menina e o tempo rapaz.

Também tu és menina
(um bichinho rebelde, de tão natural!)
e correr descalça era mesmo o que querias,
mas seria indecente nesta capital...

E enquanto, doutro verde possuído,
em versos me explico, bem ou mal,
à primavera corres, já descalça,
por uma relva ideal!


“A Traição”

quando do cavalo de tróia saiu outro
cavalo de tróia e deste um outro
e destoutro um quarto cavalinho de
tróia tu pensaste que da barriguinha
do último já nada podia sair
e que tudo aquilo era como uma parábola
que algum brejeiro estivesse a contar te
pois foi quando pegaste nessa espécie
de gato de tróia que do cavalo maior
saiu armada até aos dentes de formidável amor
a guerreira a que já trazia dentro de si
os quatro cavalões do vosso apocalipse


"A história da moral"

Você tem me cavalgado,
seu safado!
Você tem me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.

Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá lo.


O TEU NOME

Flor de acaso ou ave deslumbrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo,
De todas as cores do dia!


AUTO RETRATO

O'Neill (Alexandre), moreno português
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill.)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe demais e ri se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...


PARA O LUÍS

Não te rias do cerimonial
dos graúdos.
Eles conhecem a moral
e os usos.

Mesmo ridículos, são temíveis.
Perpetuam as formas.
Eles não gostam dos esquivos.
Cumpre as normas.

A norma é forma, já o sabes,
mas aprende, também,
que uma forma, adoptada,
tem o que tem.

E se, a tal caminho,
não quiseres aceder,
põe Lianor, na fonte,
a render, a render.

Esquece a Bárbara e os outros
amores de redenção.
Luís, tu que és dos loucos,
escuta a voz da razão.

E a razão, a mais prática,
bem te diz que desistas
e aprendas a gramática
videirinha dos dias.


AMIGO

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra "amigo".

"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!

"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!

"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!


O Beijo

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.
Querela de aves, pios, escaracéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (não é meu...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo como a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam, loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...


VELHA FÁBULA EM BOSSA NOVA

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora
não querer.

( Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe...)