TIO OLAVO
 
BATE BOCA 
de
Edson Athayde
Publicitário
Crónicas publicadas no "DN"

 
 


Seja imbecil, seja feliz

Começar um ano é sempre uma boa maneira de tentar fazer as coisas sob um outro ponto de vista. Estava a pensar nisto quando, por acidente, tropecei num mesmo dia num filme e numa música que tinham como tema a burrice.

Como é óbvio, nem o filme nem a música eram brilhantes. Por algum motivo que desconheço, a humanidade passa a maior parte do tempo a gastar a sua melhor energia criativa a falar da inteligência do que da cretinice. Como se a maioria da pessoas que encontramos no nosso dia a dia não fossem idiotas reincidentes, parvalhões declarados, gente com dois neurónios (que mal se conhecem e raramente se cumprimentam).

Aliás, para não parecer parcial, para os outros somos percebidos, na maioria das vezes, da mesma maneira: somos imbecis de pai e mãe, cretinos mal amanhados, patetas de plantão.

Não, não venha me fazer essa cara de "comigo não é assim". É, ponto final. Você tem tanto respeito pela inteligência alheia como pelo raciocínio de uma ameba albina.

O filme de que falei chama se Zoolander , acaba de entrar em cartaz e trata se de uma comédia pastelão moderninha, razoavelmente divertida e que deve ser vista acompanhada por um balde de pipocas doce. A música é de um grupo chamado Simply Red e uma balada romântica sobre um tipo que está a namorar uma linda mulher que é tão burra, mas tão burra, que o tal namorado cada vez que se encontra com ela pensa em se suicidar.

A verdade é que não há imbecil que não seja profundamente feliz. Nunca encontrei um beócio stressado ou um energúmero entristecido por não atingir as suas metas.

O cretino é por definição a pessoa mais bem resolvida do mundo.

Ele tem o mundo nas mãos, não tem dúvidas sobre nada (para duvidar de alguma coisa é primeiro conhecer a coisa e saber que há alternativas para ela).

Um certo filósofo uma vez afirmou que a "ignorância tem asas de águia e olhos de coruja". É uma bela frase, embora não consiga perceber o seu significado. Diga se de passagem, raramente percebemos o significado do que quer que seja. Apenas intuímos que percebemos o que nos dizem e daí tiramos ilações e certezas. Deve ser por isso que há discussões, brigas e guerras: cada um percebe o que bem lhe apetece e que lhe traz mais vantagens, daí para uma cena de porradaria é um passo.

Vamos lá, vamos lá, voltemos ao tema do início do ano. Já estamos em 2002, quando há algum tempo atrás dizia se que não chegaríamos nem a 2000. Já que fazemos parte daquela ínfima parte da nossa raça que teve a sorte de ser contemporânea do século XXI, poderíamos fazer diferente dos nossos antepassados. Vamos deixar de tentar parecer inteligentes, até porque ninguém acredita. Vamos partir do princípio de que nada sabemos e daí tentar descobrir o que vale a pena saber. Mire se num exemplo de sucesso: o George W. Bush, se não fosse um palerma, nunca chegaria a presidente dos EUA. Ou como diria o meu Tio Olavo: "Os imbecis deixam as suas impressões digitais no que dizem."


Sonhar não paga imposto

Acredite, sonhar não paga imposto, não engorda, não faz mal à saúde. Sonhar não é proibido (aliás, trata se de uma das poucas coisas boas da vida que a lei permite e onde o Estado não interfere). Sonhar é democrático, sonha o rico, sonha o pobre, sonha se bem num colchão de penas e às vezes melhor no chão frio de uma calçada (o melhor sonho é o daquele de quem mais precisa). Sonhar não tem sexo, não tem complexo, não tem nexo. Sonhar é como respirar, para fazer basta o ar. Qual foi o seu último sonho?
Há quem sonhe com riquezas, há quem sonhe com amores, há quem sonhe com a fama, com o sucesso, com balões de gás amarelos, há quem sonhe que está a comer gelado de baunilha com calda de chocolate quente dependurado num trapézio, servido pela Vera Fischer nua. Qual foi o seu último sonho?
Só não sonha quem não tem alma. Dizem quem os porcos não sonham. Já os cães sonham todos as horas, os gatos todos os dias, os passarinhos quando estão a voar. Os índios não sabiam o que era o sonho, confundiam tudo, se calhar era por isso que eram tão felizes. Qual foi o seu último sonho?
O sonho é sempre uma hipérbole, um exagero, um paradoxo. O sonho do baixinho é que o planeta seja povoado só por anões. O sonho do feio é que não haja espelhos. O sonho da gorda é que o mundo acabe em mel para que possa morrer doce. O sonho do general é ser uma bailarina de can can, estrela do Moulin Rouge. O sonho do idiota é ter asas (é por isso que se os cretinos voassem nunca veríamos o céu). O sonho do padre saiu na capa da última Playboy. O sonho da rapariga de olhar triste, que passa a vida na janela, casou com uma prima ruiva e dentuça e foi morar para Badajoz. Qual foi o seu último sonho?
Algumas pesquisas atestam que sonhamos todas as noites, várias vezes, mas nem sempre lembramos. Victor Hugo dizia: "Poucos trabalham para realizar os seus sonhos, a maioria apenas ressona." Já Anatole France exclamava: "A loucura é o sonho de uma pessoa. A razão é, sem dúvida, a loucura de todos." Por outro lado, La Fontaine afirmava: "Cada um transforma em realidade tanto quanto pode dos seus sonhos." Qual foi o seu último sonho?
Segundo Freud, nós somos o que sonhamos. Por isso seremos tanto maiores quanto for o que projectamos. Se sonhar pequeno, será insignificante. Se nada sonhar, nada será. Aproveite que um novo ano está a começar para rever mais que as suas metas, para fazer mais do que promessas. De compromissos com a realidade a sua vida e o inferno já estão cheios. Aproveite para sonhar sonhos enormes, sonhos fantásticos, sonhos impossíveis. O máximo que pode acontecer é algum desses sonhos se realizar. Mais aí, como tudo na vida que vale a pena viver, o sonho deixa de ser sonho.
Aliás, já agora, qual foi o seu último sonho?
Feliz 2002, são os meus votos e do meu Tio Olavo.


Estética assassinada

1
Só estou por aqui há dez anos, mas arrisco me a afirmar que estas eleições vão ficar marcadas como aquelas em que a estética foi assassinada em praça pública sem que ninguém fosse preso por isso.
Nunca tantos fizeram coisas tão feias e confusas em tão pouco tempo. Por todo o País estão espalhados os cartazes mais estranhos e desenxabidos de que há memória. Salvo raras excepções, é tudo verdadeiramente mau. Feito com os pés. Pobre. Obtusa. Incompreensível.
A coisa é tão notória que até a revista Notícias Magazine dedicou ontem a capa e mais umas 15 páginas a tratar do tema. Vale a pena ver a edição. É um verdadeiro show de horrores. E que dá o que pensar.
Se as pessoas que aprovaram aqueles cartazes são as mesmas que querem governar, podemos afirmar que o País vai mal. Se elas não conseguem ter critério nem para decidir como é que vão dar a cara num cartaz, imagina o que vão fazer depois de eleitas.
Tenho a certeza de que alguns foram apenas enganados. Disseram para eles que o que estava na moda agora era ser criativo, posar sem a gravata, fazer trocadilhos de gosto duvidoso, estampar setas em movimento, borrões de tinta, cores vibrantes e (de preferência) sem remeter para o universo cromático do próprio partido. O resultado é uma catástrofe digna de um Ben Laden publicitário. E que demonstra o estado de confusão mental que se abate sobre a política aqui do burgo.
Mas como estas não são as últimas eleições do País, fica o conselho para a próxima: o povo gosta de coisas bonitas, quem gosta de pobreza são os intelectuais. Ou, como diria o meu Tio Olavo:
"Numa democracia, o direito de ser visto ou ouvido não inclui automaticamente o direito de ser levado a sério."
2
Já agora, a propósito das eleições, o meu Tio Olavo enviou me uma série de frases que falam sobre os políticos e a política. Vale a pena ler tais citações, no momento em que estamos prestes a ir a votos. Por exemplo:
"O político é um sujeito que vive às claras, aproveitando as gemas e sem desprezar as cascas."
"O estômago sadio é sempre conservador. Poucos radicais têm boa digestão."
"Não é raro que o diâmetro do cérebro de um político seja inferior ao do seu bolso."
"Político é como cozinheiro: quem faz o melhor bocado nem sempre o come."
"90 % dos políticos dão aos 10 % restantes uma péssima reputação."
"Todo poder é emprestado e há de retornar aos seu legítimo dono."
"Se votar resolvesse alguma coisa, votar seria ilegal."
"Vote no candidato que promete menos. Você ficará menos decepcionado."
"A melhor plateia para um comício é uma plateia inteligente, educada e ligeiramente bêbada."


Vidas

1) Andam a circular pela Internet milhares de textos e anedotas sobre o Ben Laden e a sua turma. A maioria de mau gosto. Em meio a esse pântano de piadas infames, recebi outro dia uma que se destaca pelo facto de ter algum conteúdo político e de ser de uma fina ironia. A anedota é mais ou menos a seguinte: o Ben Laden está num bar a discutir um plano com o Saddam Hussein. Nisto chega um repórter da CNN e ao ver os tipos pergunta o que eles estão ali a fazer. O Ben Laden responde:
Estamos a planear a III Guerra Mundial.
O repórter fica curioso e pergunta:
E como é que vai ser isso?
O Saddam responde:
Vamos atirar um bomba nos EUA e matar 15 milhões de americanos e um esquilo.
Surpreso, o repórter pergunta:
Um esquilo? Mas porquê um esquilo?
O Saddam vira se para o Ben Laden e diz com um ar divertido:
Estás a ver? Ninguém se preocupa com a vida dos 15 milhões de americanos.

2) Viver e morrer. Como diria o meu Tio Olavo, "não é que eu não queira morrer. Eu só quero é não estar lá quando isso acontecer." Viver e morrer. Às vezes, estar morto é a melhor coisa que pode acontecer à nossa imagem. Quem morre costuma ser melhor do que costumava ser. Mas, é claro, há sempre excepções. Na semana passada, por exemplo. Morreu o Beatle George Harrison. Dizem que era o Beatle tímido, o Beatle silencioso, o Beatle menos Beatle dos Beatles. Pode ser. O que, no caso de George, só prova que às vezes menos é mais. Até por ter morrido de morte morrida e não de morte matada (como Lennon), o desaparecimento de George serve apenas como uma discreta nota final na histórica sinfonia dos Beatles. George não virou mártir de nada, nem provocou comoções internacionais. George apenas morreu, como, de resto, irá morrer toda a gente que estiver viva. O que só lembra que, Beatle ou não, temos de encarar a morte de frente. E lembra que se não formos ao enterro dos outros eles não irão ao nosso.
3) De vez em quando lembro me nas minhas crónicas de criticar Portugal. Faço isso porque acredito que só se critica aquilo que é importante, que é relevante, que vale a pena criticar. Ninguém perde tempo a falar de algo que não tenha interesse, que não sirva para nada, que não tenha qualidades (daí lembrarmos dos defeitos). Também de vez em quando faço elogios ao País (que costumo tratar por "nosso"). Curiosamente, consigo incomodar mais gente com os meus elogios do que com as minhas críticas. Os portugueses não estão acostumados a ser elogiados (e muito menos a se elogiarem). Mas a verdade é que merecem. E quem diz isso é um rapaz que está a fazer exactos dez anos que vive por cá.
Cheguei aqui na terrinha no dia 1 de Dezembro de 1991. De lá até hoje muita coisa aconteceu comigo e com o País. Mas uma coisa continua intacta: a minha paixão por esta nação. Como todos os apaixonados, há dias que brigo com a amada, que juro ir embora, que sonho com outras amantes. Mas a paixão é maior do que tudo isso e, quando menos percebi, já estava por cá há uma década. Espero que seja apenas a primeira de muitas. E não gostaria de deixar passar este meu aniversário sem agradecer a todos os portugueses terem deixado eu fazer com que este país também fosse meu. E, parafraseando o poeta, costumo dizer que Portugal vale a pena se a sua alma não é pequena.


Factóides

As palavras, sempre as palavras. Elas andam por aí na boca do povo, escritas em muros, papéis, computadores. Esprema uma palavra e ela conta tudo, mesmo quando ela foi feita para não dizer nada.

Os neologismos são um bom exemplo disso. Os neologismos dizem muito sobre a evolução de uma sociedade. Os neologismos sãó criados quando as pessoas: precisam de palavras novas para definir coisas que antes não existiam (e, vamos ser sinceros, cada vez mais existem coisas que nuncâ existiram antes). E um neologismo que tem tudo para entrar na moda em Portugal é a palavra "factóide".

0 factóide é o facto que não é necessariamente um facto. É o facto inventado, travestido, recriado, induzido para se tomar notícia. Segundo um dicionário ingIês um factóide é "algo fictício ou não provado, mas apresentado como facto, para efeito de propaganda, e incorporado por insistente repetição". Já um outro dicionário (no caso, brasileiro) diz que um factóide é um "facto, verdadeiro ou não, divulgado com sensacionalismo, no propósito deliberado de gerar impacto diante da

Em época de eleições é fácil ver a quantidade industrial de factóides, criados pelos diversos candidatos. É a chamada agenda de campanha, que leva os políticos a lugares que não frequentatam no dia a dia (feiras, creches, asilos, esquadras), a falarem sobre números, relatórios, projectos que ninguém tem a capacidade de guardar na memória, nem tempo de verificar a sua veracidade ou o seu pé na realidade.

Aliás, os candidatos que não acreditam que possam ganhar são os mais eficientes produtores de factóides. Inventam planos que só por obra de magia poderiam ser concretizados. Mas como não vão ganhar, tanto faz. É esse raciocínio que leva, por exemplo, um candidato a uma autarquia a pronunciar se sobre questões sobre as quais não tem a mais pequeria influência, como prometer acabar com o desemprego ou mudar os horários das telenovelas.

Quando um candidato diz que Lisboa precisa de mais 1500 polícias, ninguém se lembra de perguntar onde, quando e porquê. São 1500; nem 1258, nem 979. 1500 é um número grande, gordo e exacto, como todos os números deveríam ser. 0 factóide tem essa quahdade, é redondo, não tem a ponta por onde se lhe pegue, agarra nos olhos e nos ouvidos.

As sondagens eleitorais são um campo fértfl para factóides. No caso de Lisboa elas rondain o surrealismo. Qualquer pessoa com um mínimo de senso, ao ler as sondagens, chega à brilhante conclusão que elas não dizem nada. Com as margens de erro assumidas e com a dura realidade dos números de abstençâo presumida serem altíssimos, qualquer um dos dois candidatos favoritos pode sagrar se vencedor. Mas não é isto que os media afirmam. Às vezes um, ás vezes outro, é sempre apresentado um candidato à frente nas sondagens. Pois não estão, nem à frente, nem ao lado, nem atrás. E se estâo nalguma parte, não há meios de mensurar isso.

Um diz que "faz", outro diz que "fica", outro diz que "cumpre". Puros factóides. "Fazer", "ficar" e "cumprir" são verbos, não deveriam adjectivar o que quer que seja. E têm tanta profundidade politica quanto "eu como", "eu ando" ou "eu transpiro".

De factóide em factóide, o eleitor vai ficando mais ou menos desinteressado em votar. E com vontade de mandar colar um cartaz na rua a dizer:"E EU COM ISSO"

Ou como dizia o mei Tio Olavo: "= melhor cartaz eleitoral que já vi foi o de um candidato a uma Câmara no interior do Brasil. O cartaz mostrava a foto do candidato (que era negro) e dizia em letras garrafais: "Não Vote em Branco"


Como vai, vai bem?

Nos anos 50 houve um presidente brasileiro chamado Dutra. Era um marechal gordinho e bonacheirão. Na época, os EUA estavam em plena política de boa vizinhança com a América do Sul. E o então presidente americano Truman foi ao Brasil fazer uma visitinha. O problema é que o marechal Dutra não falava inglês. Na verdade, o marechal Dutra não entrou para a história exactamente pela sua inteligência. Truman já sabia disto e foi instruído a não tentar fazer grandes conversas com o marechal. Truman tencionava apenas fazer curtas perguntas retóricas que não exigissem como resposta mais do que um inglês instrumental. E foi assim que mal avistou o marechal Dutra no aeroporto do Rio de Janeiro, Truman estendeu lhe a mão e disse com aquela simpatia artificial tipicamente americana: "Hou dou you do, Dutra?" E Dutra, com um ar ligeiramente assustado, respondeu: "How tru you tru, Truman?" Perguntas retóricas. Sempre fui encantado por elas. Não sei quem foi que as inventou, mas era de certeza um tipo torcido. As perguntas retóricas não servem para nada. Mas ao mesmo tempo não podemos viver sem elas. O melhor exemplo são os cumprimentos. Todos os dias falamos para alguém: "Como vai, tudo bem?" Até parece que realmente queremos saber como vão as coisas com os outros. Mentira. Estamos literalmente nas tintas com relação à vida da maioria do planeta. "Como vai, tudo bem?" A resposta é invariavelmente: "Tudo bem." O que não passa de mais retórica. Nada vai bem. Ou, pelo menos, nem tudo vai bem com ninguém. Há sempre uma avó que caiu da escada, um cunhado que decidiu morar na sua casa e passa a vida a passear de cuecas pela sala, um cão que mordeu um vizinho que, em represália, anda a ameaçar morder a sua mulher a dias. Imagine se as pessoas passassem a responder com sinceridade ao "Tudo bem?". Num instante ninguém mais perguntava. Dávamos um "bom dia" seco e saíamos correndo, com medo de ter que ouvir as mazelas alheias. E a maneira como atendemos o telefone? Faz algum sentido perguntar a quem está do outro lado da linha "Estou?". Esta pergunta se for levada ao pé da letra deixa de ser retórica e passa a ser filosófica. "Estou ou não estou, eis a questão. Estou, sim, logo existo." Se não estivéssemos ao telefone, como poderíamos perguntar se estávamos? A não ser que não estivéssemos nunca, que o universo, o tempo e a história não passassem de uma grande abstracção, que a nossa existência fosse apenas uma invenção, e, assim, seríamos apenas o atendedor de chamadas de nós mesmos. As perguntas retóricas podem levar as pessoas ao delírio. É o caso de quando falamos com os bebés. Quantas vezes não nos virámos para um sobrinho recém nascido e perguntámos: "Então, estás com saudades do tio?" Quando indagamos isto, estamos à espera do quê? O pobre miúdo só sabe chorar, comer e dormir. O máximo que podemos ter como resposta é um arroto. Que por acaso também será retórico. Ou como diria o meu Tio Olavo: "Perguntar não ofende. Mas há certas respostas que deveriam ser acompanhadas por um murro na cara."


Outrora

Antigamente, o antigamente era chamado de outrora. Bons tempos aqueles em que o passado tinha um nome tão bonito e sonoro. Quem falava do outrora não falava de uma coisa qualquer. O outrora era sempre acompanhado de um suspiro fundo e uma afirmação de que algo já tinha sido muito melhor do que hoje. Como uma vez escreveu Milôr Fernandes: "Falar do passado é falar do presente pelas costas." Já falar do outrora é pior. Falar do outrora é humilhar o presente, é deixar bem claro que ele não tem futuro nenhum. Junto com o outrora desapareceram hábitos e costumes tão bonitos como passear com a família depois da missa ou beijar a namorada no banco da praça, a ouvir uma banda a tocar no coreto. Aliás, também desapareceram a praça, a banda, o coreto e a namorada fugiu com o homem gorila de um circo libanês. Nos tempos de outrora, tudo era perfeito. Ou, pelo menos, parecia perfeito. O mundo ainda não era colorido e resistia em tons de sépia contra todas as maldades. As raparigas casavam virgens, os filhos respeitavam os pais, os compromissos eram feitos para serem honrados. Nos tempos de outrora, o homem ainda acreditava em si mesmo. Isto porque o outrora (como o homem) era um ingénuo. Não surpreende que tenha sido extinto, como também vão ser extintos os papagaios, os golfinhos e os fãs da Barbra Streisand. Fico a pensar em para onde vão as palavras que caem em desuso. O que será que acontece com as palavras que, passados os seus momentos de glória, são relegadas ao esquecimento? Imagino que são recolhidas, como cães abandonados, por funcionários de uma qualquer repartição pública. E é lá que eles travam o seguinte diálogo: Chefe temos um problema. Fugiu o outrora. Não pode ser, Constantino. Já é a terceira palavra que foge este mês. Ainda conseguimos agarrar o alvíssaras, o homessa e o catadupa. Entretanto, tivemos que atirar no catatau. Acho que ele feneceu. Não pode ter fenecido. Já ninguém fenece. No máximo morreu, faleceu, extinguiu se, cessou de viver. O fenecer é que feneceu, há muitos anos. Que péssimo exemplo, Constantino. Francamente, usar a palavra fenecer depois dela já estar morta... são pessoas como você que tomam o nosso trabalho difícil. Desculpe, chefe. É que estou nervoso. Temo pelo pior só de imaginar que o outrora está por aí, livre para actuar. O que iremos fazer? Temos que ser radicais. Carregue a sua pistola com alguns neologismos e vá já para a rua. Traga me o outrora vivo ou morto. Mas, chefe, quanto mais palavras recolhemos, mais palavras temos para recolher. É como se a língua hoje em dia tramasse contra nós. Isto já foi mais fácil. Outrora... O que disse? Eu estava a dizer que outrora... Arrá! Apanhei te, calhorda! Estás preso, outrora. Pensavam que enganavam me. Mas sempre desconfiei que tu e o Constantino fossem cúmplices. E como soube? Pelo nome. Ninguém mais chama se Constantino hoje em dia. Ou, como diria o meu Tio Olavo: "Outrora as coisas eram bem diferentes. Para ter uma ideia, o ar ainda era limpo e o sexo ainda era sujo."


Ilógicas histórias

1 Recebi um e mail que demonstra um bocadinho do que nós, latinos, pensamos sobre a nossa maneira de ser.
O e mail diz o seguinte: "A ONU decidiu realizar um debate sobre a fome. Para tanto, enviou uma mensagem pedindo que todos "respondessem, por favor, honestamente sobre a questão da escassez de comida nos seus países.""
A mensagem causou uma enorme confusão. Os holandeses, por mais que pensassem, não conseguiam descobrir o significado da palavra "escassez". Os franceses desconheciam totalmente o conteúdo da expressão "por favor". Os africanos tinham dúvidas sobre o que era aquela coisa chamada "comida".
Mas o pior aconteceu no Brasil, na Espanha, na Itália e em Portugal. Dois meses depois, mesmo após imensos debates nos parlamentos e nos media, ninguém conseguia perceber o que a ONU queria dizer com a palavra "honestamente".
2 É fácil perceber que o inicial apoio aos EUA contra o talibãs está a esmorecer. Está a se tornar cada vez mais aceitável ficar em cima do muro, vendo as razões de ambas as partes. O que me faz lembrar de um velha lenda judaica, que fala de uma desavença entre Jacob e Salomão que, estando em desacordo, foram falar com o rabino e ver quem é que estava com a razão.
O rabino recebeu os em casa e pediu que Jacob explicasse a sua versão. Jacob dissertou brilhantemente e ao fim o rabino disse: "Jacob, você está com a razão."
Salomão ficou enfurecido. Disse que também queria mostrar o seu ponto de vista e então contou o que tinha se passado na sua opinião. Foi tão ou mais eloquente que Jacob. Ao fim, o rabino disse: "Salomão, você está com a razão." E assim, os dois, Jacob e Salomão, saíram da casa do rabino pacificados, cada qual com a sua razão.
Mas Sara, a mulher do rabino que a tudo assistiu, ficou extremamente descontente com o resultado da consulta. Voltou se contra o marido e argumentou que aquilo não era justo, que dois oponentes não podem ter igualmente razão, que ele, o rabino, deveria ter tomado o partido de um dos lados e dado a razão apenas a quem merecia. O rabino ouviu Sara atentamente, pensou um bocado e disse, ciente de que estava a fazer justiça: "Afinal, Sara, você é que está com a razão."
3 Diz a lógica que há mais maneiras de se matar um rato do que atirando nele um piano de cauda. Mas a lógica diz muitas coisas. A maior parte delas sem lógica.
Não sou o Carrilho, mas o pouco que estudei de Filosofia faz me ver que, desde Aristóteles, pouco evoluímos além do raciocínio dedutivo. E o raciocínio dedutivo, como sabem, levou ao silogismo (meu Deus!, estou a ficar velho e chato, nunca pensei que um dia escreveria uma frase assim).
E o silogismo levou a todos os tipos de disparates, muitas vezes apresentados como uma simples questão de lógica.
Senão, vejamos: as guerras são coisas barulhentas; a paz é silenciosa; como saímos às ruas e não ouvimos os ruídos das bombas, logo, estamos em paz. As más notícias vêm rápido; as boas notícias demoram; como ainda não aconteceu nada mais visivelmente pavoroso do que os atentados do 11 de Setembro, há muita gente por aí a afirmar que, logo, o pior já passou. Vale lembrar que foi a partir de lógicas como estas que as grandes guerras do passado encontraram terreno fértil para vingar.
Ou, como diria o meu Tio Olavo, a respeito do andar dos acontecimentos e apoiando se na lógica: "Não adianta reclamar. Depois que a pasta de dente sai do tubo é quase impossível pô la de volta."


A insanidade traz felicidade

Não sei bem porquê, mas as pessoas vivem a querer passar por normais. É um desperdício de tempo. Como diria o meu Tio Olavo: "De perto, ninguém é normal." Ou ainda: "No dia em que me conhecer de verdade vou sair correndo."
Um pouco por essas razões, vivo a dizer a quem convive comigo para não exagerar na seriedade. Uma coisa é ser sério, outra é ser sisudo. Só assim, penso, é possível encarar a realidade. Um pouco de leveza nunca fez mal a ninguém. Outro dia, enviaram me um e mail que mais ou menos ensina como tocar a vida mantendo um nível saudável de insanidade. É um manual que não deve ser seguido à risca, mas que traz algumas boas sugestões como:
1) No seu horário de almoço, sente se no seu carro estacionado, coloque os seus óculos escuros e aponte um secador de cabelos para os carros que passam. Veja se eles diminuem a velocidade.
2) Encoraje os seus colegas de mesa a fazer uma dança das cadeiras sincronizada consigo.
3) Insista que o seu e mail é xena.princesa.guerreira@telepac.pt ou elvis.o.rei@telepac.pt.
4) Coloque a sua lata de lixo sobre a mesa e escreva "Entra" nela.
5) Sempre que alguém lhe pedir para fazer alguma coisa, pergunte se quer batatas fritas a acompanhar.
6) Sempre que alguém lhe falar alguma coisa, responda com "isso é o que você pensa".
7) Termine todas as suas frases com "de acordo com a profecia".
8) Escreva sem usar qualquer tipo de pontuação.
9) Sempre que possível, salte ao invés de andar.
10) Pergunte às pessoas de que sexo elas são. Ria histericamente depois que elas responderem.
11) Descubra onde o seu chefe faz as compras e compre exactamente as mesmas roupas. Use as um dia depois do seu chefe usá las. Isso é especialmente efectivo se o seu chefe for do sexo oposto.
12) Coloque uma tela de mosquitos ao redor do seu posto de trabalho. Toque um CD com sons da floresta o dia inteiro.
13) Com cinco dias de antecedência, avise aos seus amigos que não pode ir à festa deles, porque "não está no clima".
14) Faça os seus colegas de trabalho chamarem lhe pelo seu apelido, Duro na Queda.
15) Quando sair do Multibanco, grite.
16) Sempre que o seu chefe pedir uma opinião, depois de responder acrescente: "Garante me as vozes na minha cabeça."
17) Na hora do jantar, anuncie para os seus filhos: "Devido à nossa situação económica, teremos de mandar um de vocês embora."
18) Todas as vezes que você vir uma vassoura, grite: "Amor, a sua mãe chegou!"
19) Ao sair do prédio da sua empresa, corra na direcção do parque de estacionamento sempre a gritar: "Salve se quem puder, eles estão soltos."
20) Mande um e mail com uma cópia deste texto para toda a sua lista de endereços, mesmo que eles tenham pedido para você não mandar e mails como este.
Amigo, siga estas instruções. Seja insano e seja feliz.


Paranóias

Diz o dicionário que "anacrónico" é algo "oposto à cronologia; contrário aos usos da época a que se refere; destoante; estranho". Neste sentido, há dois (maus) filmes em cartaz que conseguem a proeza de serem duplamente anacrónicos: o foram na época em que foram lançados (nos EUA) e o são agora, passados os eventos do 11 de Setembro.
Estou a referir me a Operação Swordfish e a O Planeta dos Macacos. Se ainda não viu nem um nem outro (coisa que, francamente não recomendo, há de certeza outros filmes em cartaz que merecem mais atenção), peço o favor de não ler esta crónica, pois vou falar das histórias sem preocupação em contar os seus finais.
A começar pelo Planeta dos Macacos, que, justamente, termina com uma nave a sobrevoar Washington e a aterrar no Capitólio sem que um míssil a tivesse abatido. Quando vi a cena (antes dos atentados) achei a perfeitamente ridícula. Era óbvio para mim, e para o resto da humanidade, que os EUA eram uma grande fortaleza e que o seu espaço aéreo era das coisas mais protegidas do planeta. De resto, as teses apresentadas em filmes como O Planeta dos Macacos sempre foram a de que só coisas como um acidente genético, uma pane entre robots, uma invasão de extraterrestes ou a evolução mal controlada dos macacos é que poderiam ameaçar (ou exterminar) a civilização ocidental ou (mais exactamente) o modus operandi dos norte americanos. Está bem, está bem, o James Bond há anos vem enfrentando loucos que desejam controlar o mundo. Mas o James Bond é um personagem inglês e, como sabe, os ingleses são estranhos em tudo.
Operação Swordfish é um monumento ao politicamente incorrecto que, inesperadamente, apresenta um vilão que, neste momento, pode encontrar alguns defensores. John Travolta aparece como um louco que pretende roubar dinheiro para financiar o extermínio de terroristas internacionais. Aliás, o filme termina com a explosão de um iate onde se encontrava um terrorista árabe em tudo parecido com Bin Laden (já agora, porque o DN escreve sempre Ben Laden, em vez de Bin Laden, como todos os outros jornais?). Para conseguir o seu intento, Travolta não se importa de matar a sangue frio vários personagens. E um dos seus diálogos é, no mínimo, elucidativo. A certo momento, ele pergunta: qual é o mal de matar uma criança se, com isso, irá conseguir reduzir a mortalidade infantil do planeta?
Sem comentários.
Se o cinema de Hollywood sempre foi uma espécie de farol do american way of life (com todas as suas qualidades e defeitos), torna se importante monitorizar as suas próximas produções. As paranóias cinematográficas são, via de regra, uma projecção exagerada das paranóias reais. E, num momento em que tudo parece demasiado louco, resta saber até aonde vai a imaginação dos guionistas. Ou, infelizmente, dos terroristas.
Ou, como diria o meu Tio Olavo: "Nada é tão mal como parece. Na maior parte das vezes, é pior."


A guerra das TV

Além de ter nome de empregada doméstica brasileira, a rede de TV Al Jazira tem introduzido, através da sua actuação pouco isenta, um dado novo na guerra que estamos a viver. Diferente das outras grandes guerras antigas, agora o inimigo pode falar à vontade com todos nós, pode entrar nas nossas casas na hora que bem entender e fazer as ameaças que bem lhe convier. No sábado, por exemplo, um senhor de barbas avisou me que não devo morar em prédios demasiados altos e que devo evitar andar de avião. Disse me que se cometesse tais pecados (obviamente contra a honra do grande Islão) estaria a dar um bom motivo para que dessem cabo da minha pessoa. E foi embora, penso, tranquilamente, participar de alguma actividade desportiva própria dos talibãs, como o futebol e o extermínio de mulheres.
As imagens do tal barbudo devem ter corrido o mundo. E a Al Jazira, que não sei se é possível ser captada directamente em Portugal, pôde demonstrar mais uma vez o seu poder enquanto porta voz de terroristas e mentecaptos. Quase em simultâneo ficamos a saber que as cartas com antraz estão a voar por aí e a atacar jornais e TV's dos EUA. Uma delas tinha como alvo um dos mais famosos telejornalistas americanos, o âncora da NBC Tom Brokaw. Ou seja, o alvo preferencial dos inimigos são mesmos os símbolos da América. Primeiro as torres, agora os peões da livre imprensa, os ícones dos media. Eles querem matar imagens familiares, querem espalhar o pânico a partir dos lares americanos, das donas de casa, dos pais de família. Querem (e estão) a deixar bem claro que ninguém está impune. Que o perigo está atrás da porta, dentro de cartas, na água que bebemos, no hamburguer que comemos.
E se o alvo são os símbolos, é fácil de prever que a próxima paragem do terror será Hollywood. E, claro, as grandes corporações americanas: Microsoft, IBM, McDonald's, Coca Cola e tantos outros nomes e marcas com as quais o mundo se acostumou a conviver desde a segunda metade do século XX até hoje, período da grande globalização.
O patético é que há muita gente por aí (um pouco por todo o planeta) a ficar feliz com o drama vivido pelos EUA. A possível falência do modelo globalizado da cultura e da economia, atende perfeitamente aos anseios de certa esquerda acéfala e incapaz de aprender qualquer coisa que valha a pena da história. Essa gente é do tipo que não se incomoda em atirar, junto com a água, o bebé para fora da bacia. E vê no horizonte um mundo mais equilibrado no que toca às correlações de forças. Como se o equilíbrio pudesse ser alcançado pelas acções de assassinos desequilibrados.
Por enquanto, os chamados países periféricos podem continuar a ver a guerra através da TV. Mas não devemos nos esquecer que as outras grandes guerras também eram conflitos de certa maneira localizados até que quase toda gente teve que se meter "à batatada". A verdade é que continuo desconfiado de que esta guerra também é comigo.
Não sei porquê, mas tive a impressão que o barbudo que apareceu lá na Al Jazira olhava fixamente para os meus olhos. Na falta de arma melhor, apontei lhe o controlo remoto e mudei de canal. Infelizmente, fiquei com a ideia de que o meu acto de guerra não foi lá o mais eficaz.
Ou como diria o meu Tio Olavo: "Nunca houve uma boa guerra ou uma má paz."


Alguém aí me ama?

Na sexta feira passada, fui atropelado dentro de um cinema. Não, não, a sala não foi invadida por um automóvel. Fui atropelado por um filme. Pelo menos, foi essa a sensação que senti, quando acabei de ver A. I., a nova longa metragem de Steven Spielberg, em cartaz por todo o País.

A. I. merece ser visto e revisto. E, num momento de extremo desecanto sobre a evolução humana, assistir a este filme pode ajudar nos a entender um pouco mais de nós mesmos e, já agora, a sentir um resto de esperança quanto às qualidades da nossa espécie.

A. I. enquadra se naquela categoria de filmes que propõe uma visão de um futuro não muito distante onde a Terra aparece transformada num lugar em que é impossível viver, onde os robôs, dotados de superinteligência artificial, parecem melhores seres que os humanos.

Trata se de uma fábula moderna, mistura de Blade Runner com Pinóquio, e que, basicamente, trata da eterna questão do que é amar e ser amado.

Na primeira cena de A. I., vemos o personagem de Willian Hurt divagar sobre a criação de um robô especial, um robô capaz de amar. O grande paradoxo do filme é que o robô que ama até é inventado. O problema é que quem ama não é, necessariamente, correspondido. E durante duas horas e meia vemos a saga do personagem robô à procura de uma verdadeira prova de amor.

A perspectiva da história, que desloca a questão do amor da sua tradicional versão romântica (rapaz ama rapariga) para um foco familiar (o robô quer ser amado pela sua mãe adoptiva, única pessoa para a quem amar foi programado), faz com que as emoções apresentadas sejam fortes e incrivelmente verdadeiras. Só um paralelepípedo sem sentimentos conseguiria ver A. I. e não se sentir minimamente tocado.

Saí do cinema um pouco melhor do que quando entrei. Pelo menos, fiquei com a sensação de que ainda há humanos com sensibilidade e capazes de fazer coisas belas, coisas que mexem positivamente connosco e que vale a pena partilhar.

Spielberg não é apenas um génio, é um génio bom. Poderia aplicar a sua inteligência a fazer explodir prédios ou qualquer outra coisa terrível.

Em vez disso, ele mal consegue disfarçar, em A. I., que na verdade nos ama. E que gostaria imenso de ser amado.

A propósito do filme, fui falar com o meu Tio Olavo. Pedi lhe que procurasse, na sua vasta colecção de frases e citações, algumas que falassem sobre o tema "Amor". O velho não se fez rogado e encontrou as seguintes pérolas: "O amor é uma bobagem feita a dois" (Napoleão Bonaparte); "Amor é o que acontece entre homens e mulheres que se não conhecem" (W. Somerset Maughan); "Gostar é, provavelmente, a melhor maneira de ter. Ter deve ser a pior maneira de gostar" (José Saramago); "Quando se ama de mais, não se ama o bastante" (conde de Bussy Rabutin); "Uma das mais deliciosas manifestações de amor é a falta de respeito" (Mário Quintana); "O amor vive de inanição e morre de excesso de alimentação" (Alfred de Musset); "O amor é um egoísmo entre dois" (Madame de Staël); "É mais fácil amar a humanidade inteira do que o vizinho" (Eric Hoffer).

Ou, como diria o meu Tio Olavo: "A melhor definição de amor não vale um beijo."


O meu quadrado

Via de regra, acho este meu quadrado (este espaço onde quase semanalmente escrevo as minhas crónicas) um pouco grande.

Não que o quadrado seja enorme, mas é que hoje em dia está cada vez mais difícil encontrar temas realmente bons para escrever.

Hoje não estou a achar isto.

Este meu quadrado parece mínimo com relação ao que está a acontecer ao mundo depois do ataque aos EUA.

Já tentei argumentar inúmeras vezes, mas não consigo convencer as pessoas que vivem em meu entorno de que a coisa é séria e que tem a ver connosco.

Não parece, pelo que vejo.

Vive se em Portugal como se nada estivesse a acontecer.

Fora uma ou outra demonstração de solidariedade ou o súbito aparecimento de piadas de mau gosto, o povo aqui da aldeia recusa se a admitir que entramos numa nova ordem mundial e que o facto de os EUA se considerarem em guerra não é irrelevante para as nossas vidas.

Não, não estou com medo do apocalipse (embora até isso seja uma possibilidade), apenas não creio que a minha vida (e, já agora, a sua) será exactamente a mesma daqui a algumas semanas (depois de os EUA terem finalmente retaliado as agressões e já tivermos descoberto as consequências dos seus actos).

Não sei se o mundo vai ser pior ou melhor.

Mas vai ser diferente. Aliás, já é diferente. Mais cedo ou mais tarde isto iria acontecer e só os idiotas de plantão acreditam que os EUA estão lá muito longe e que o Islão não é aqui.

O raciocínio é estúpido, porém compreensível.

O mundo ocidental ficou demasiado acostumado com as guerras localizadas em sítios fora de mão.

Matou se e morreu se nas últimas décadas alarvemente mas nunca no centro de Paris, Londres e Nova Iorque.

E aqui em Portugal, espécie de Suíça sem banco, relógio e queijo, podíamos sempre dar com os ombros e dizer que não era connosco.

A verdade é que não pedimos esta guerra. Mas, não adianta enfiar a cabeça na areia, ele já está servida.

Fora isto, tenho a consciência de que este meu quadrado não me protege de nada e que é tão efémero quanto as Twin Towers. O papel onde hoje está impresso este quadrado amanhã vai estar a embrulhar um peixe ou a servir de apoio para que um cão ou um gato possa se aliviar mais tranquilo.

Este meu quadrado não é importante, como eu não sou importante. Apenas, por agora, estou vivo.

O mesmo não podem dizer os milhares de pessoas que morreram terça feira nos EUA. Mas pelos vistos nem elas eram assim tão importantes. Pelo que li ontem, secas as lágrimas de crocodilo, a rapaziada divertiu se à brava no Benfica Porto do último sábado.

E o Dia sem Carros promete ser um sucesso.

Perto de tanta alegria fica difícil imaginar que estamos todos a viver no mesmo planeta.

Perguntei ao meu Tio Olavo o que ele achava destas coisas.

Ele virou me as costas e pediu para que eu o deixasse em paz por uns dias.

eathayde@lisbon.fcb.com


Brasil a branco e preto

Na semana passada, a maioria dos portugueses foi apresentada a uma das figuras mais importantes do Brasil: o senhor Sílvio Santos.

A comparação é meio forçada, mas para facilitar as coisas, Sílvio Santos é o Berlusconi brasileiro (misturado com o Herman José, o Carlos Cruz, o Rangel, o Belmiro e um bocadinho do Marco Paulo).

Só quem viveu no Brasil nos últimos 30 anos tem a noção do peso da criatura no imaginário brasileiro. Daí que aquele país tenha parado para ver (e viver) o sequestro da filha de Sílvio e a mais que improvável (nem a mente mais perversa de um autor de novelas teria imaginado tal sequência de desaires) tomada como refém do próprio Sílvio.

As histórias, como sabe, terminaram bem (dentro do possível).

Mas contribuíram de certeza para três coisas (duas no Brasil e uma em Portugal).

A primeira tem a ver com a dura realidade de que ninguém no Brasil é intocável. Por incrível que pareça, isso é uma novidade para os brasileiros. Deve ser uma questão geracional.

O sequestrador era novo e provavelmente pareceu lhe natural atacar a filha de um milionário e o próprio (mesmo sendo ele tão popular que gabava se de não ter seguranças e de circular pelas ruas de São Paulo como se de uma aldeia piscatória tratasse). O sequestrador já nasceu numa geração de criminosos em que não pegam certos valores (como se criminosos tivessem princípios, mas vá lá, não complique o meu raciocínio), como o de que não se deve molestar quem é artista e alegra a vida das pessoas (principalmente, no caso, as camadas mais populares; a mãe do sequestrador deveria ser mais uma das milhões de fãs do Sílvio Santos).

O segundo efeito, mais difuso, tem a ver com o facto de Sílvio, que sempre incentivou no seu canal de televisão (o SBT), a exploração das mazelas alheias, ter provado do próprio veneno. Com o surrealismo do Ratinho (aquela versão mais gorda e despudorada do Jerry Springer) ter sido convocado pelo SBT para apresentar ao vivo as negociações para que o sequestrador libertasse o Sílvio. Nem filmes como Truman Show ou EdTV levaram o delírio da novela da vida real a tal ponto. E, tendo em vista os excelentes índices de audiência do SBT ao explorar a tragédia pessoal do seu dono, fica a dúvida se o Sílvio não toma gosto pela coisa e passa dar prémios em directo para quem conseguir sequestrá lo.

A terceira nota, a que tem a ver com Portugal, é ainda mais dura.

Há quase um mês que o Brasil não sai dos noticiários portugueses nas secções relacionadas a desastres e crimes.

Com tal visibilidade negativa, fica realmente difícil provar que o Brasil não é o inferno que pintam.

E isso atrapalha a leitura que o comum cidadão português faz do Brasil e dos brasileiros. Para se ter uma ideia, estava outro dia no metro e ouvi o diálogo entre duas velhinhas. Uma delas estava estarrecida com a violência do crime da Praia do Futuro e culpava o Brasil pela tragédia. A outra quis argumentar: afinal, o autor intelectual do crime até era português. Ao que a primeira retrucou: "Pois é, portou se como um brasileiro."

Vamos lá, minha gente. Nem tanto ao mar, nem tanto a terra. Vamos ser razoáveis. Não quero escamotear a realidade, mas o que se passou nas últimas semanas é apenas um retrato do desordenado e colorido Brasil a branco e preto. É um pedaço do Brasil, mas não é o Brasil inteiro. E nenhuma sociedade ou país, hoje em dia, está livre de momentos maus.

Ou, como diria o meu Tio Olavo: "Vivemos numa época de igualdade. Hoje em dia, todas as classes são criminosas."


Todas as pessoas têm direito a férias. Até eu que não sou exactamente uma pessoa (há dúvidas científicas sobre o assunto) tirei alguns dias para viajar (o que levou ao meu súbito desaparecimento deste honroso quadrado durante quase um mês). Mas a coisa não parece tão líquida quando se trata do gerente do mundo. O presidente dos EUA, George W. Bush, resolveu que estava com a cabeça cansada e decidiu ir de férias. A notícia surpreendeu os americanos. Primeiro, porque eles não sabiam que Bush tinha uma cabeça (ou pelo menos, que a utilizava para mais coisas que pendurar as orelhas). Segundo, porque o rapaz mal tinha assumido o seu posto e teoricamente deveria se dedicar mais ao nobre papel de cuidar da vida do planeta. De qualquer forma, a onda de protestos foi maior noutra zona que não a da cidadania. Os humoristas americanos estão desesperados pela falta de material novo. É que Bush é um insubstituível fornecedor de disparates. Ele, quase diariamente, comete todos os tipo de tropeços de raciocínios e gaffes em geral. Prova disso é uma colecção de frases estúpidas proferidas por Bush e reunidas pelo meu Tio Olavo (que teve a delicadeza de me enviar para que possa partilhá la consigo). O que vai ler a seguir foi mesmo dito por Bush. Acredite se quiser. Por exemplo:

A grande maioria de nossas importações vem de fora do país.

Se não tivermos sucesso, corremos o risco de fracassarmos.

Marte está essencialmente na mesma órbita... Marte está mais ou menos à mesma distância do Sol, o que é muito importante. Nós vimos fotos onde existem canais, pensamos, e água. Se há água, isso significa que há oxigénio. Se há oxigénio, significa que podemos respirar.

O holocausto foi um período obsceno na História da nossa nação. Quero dizer, na História deste século. Mas todos vivemos neste século. Eu não vivi nesse século.

Eu creio que nos dirigimos de modo irreversível no sentido de mais liberdade e democracia mas isso pode mudar.

Uma palavra resume provavelmente a responsabilidade de qualquer governante. E essa palavra é estar preparado.

A verbosidade leva a coisas obscuras, inarticuladas.

Eu tenho feito bons julgamentos no passado. Eu tenho feito bons julgamentos no futuro.

Eu não sou parte do problema. Eu sou republicano.

O futuro será melhor amanhã.

Nós vamos ter o povo americano melhor educado do mundo.

Pessoas que são realmente muito estranhas podem assumir posições chave e provocar um tremendo impacte na História.

Eu mantenho todas as declarações erradas que fiz.

Nós temos um firme compromisso com a NATO. Nós fazemos parte da NATO. Nós temos um firme compromisso com a Europa. Nós fazemos parte da Europa.

Um número baixo de votantes é uma indicação de que menos pessoas estão indo votar.

Quando me perguntaram quem provocou a revolta e as mortes em Los Angeles, a minha resposta foi directa e simples. A quem devemos culpar pela revolta? Os revoltosos. Os revoltosos são os culpados. Quem devemos culpar pelas mortes? Os que mataram são os culpados.

Ilegitimidade é algo que deveríamos falar em termos de não tê la.

Nós estamos preparados para qualquer imprevisto que possa ocorrer ou não.

Para a NASA, o espaço ainda é alta prioridade.

Muito francamente, os professores são os únicos profissionais que ensinam nossas crianças.

O povo americano não quer saber de nenhuma declaração errada que George Bush possa fazer ou não.

Todos somos capazes de errar mas não estou preocupado em esclarecer os erros que possa ter cometido ou não.

Não é a poluição que está prejudicando o meio ambiente. As impurezas em nosso ar e água é que fazem isso.

É tempo para a raça humana entrar no sistema solar." 

 
 

 

 
 


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