Crônicas 2
por José António Baço
(Textos publicados no jornal "A Notícia")

 

50 - New-mediots, a geração dos idiotas digitais

Digitalienação. Não sei se a palavra já foi inventada, mas é o termo que me ocorre para falar na tal revolução digital. Há o lado bom, que é o desenvolvimento da tecnologia, das novas mídias e da inteligência artificial. Mas há o lado podre, uma espécie de efeito colateral, que é o surgimento de uma geração de idiotas incapazes de entender o mundo: os new-mediots, uma versão moderna daquilo que a geração analógica chamava "alienados".
Olhando de longe, tudo parece uma maravilha. Os caras estão ligados à internet, têm acesso à informação e conseguem comunicar em tempo real por meio de engenhocas cada vez mais sofisticadas. Têm toda a espécie de traquitanas: ipods, celulares com máquinas fotográficas, computadores com webcams, jogos portáteis e sabem tudo sobre aquela nova tecnologia que as pessoas normais ainda nem sonham existir.
Mas continuam idiotizados.
Os estudiosos dizem que estamos a viver a era da informação. Errado. Talvez seja uma era da comunicação. É preciso estabelecer a diferença: comunicar é uma coisa, informar é outra. Não basta ter acesso à informação. É preciso dispor de instrumentos mentais que permitam interpretar a informação e ler o mundo. Os new-mediots vivem soterrados pela informação, mas não entendem patavina do que se passa.
É a alienação total. Os caras não gostam de política e se refugiam no velho álibi de que os políticos são todos iguais. Acham que Djavan é nome de loja. Que Mulah Omar é "mula ao mar". Que Condoleeza Rice é marca de arroz. Que "Falcões de Bush" é uma petshop. Que "Casablanca" é a casa do presidente dos States. Que Humphrey Bogart é uma banda de heavy metal. E até se orgulham pelo fato de nunca terem lido um livro na vida.
Vivem um tempo de culto ao instantâneo, ao imediato e à banalidade do consumo. Só interessa o "eu", o aqui e o agora. Resultou um imenso fosso entre as gerações analógica e digital. O homem analógico pensa com o cérebro, pela associação de idéias. Um new-mediot pensa com a mão e o mouse. Há uma espécie de rejeição do pensamento, como antecipou Kostas Axelos.
Se o leitor tentar imaginar o futuro, é justo que sinta um frio na espinha. Porque será essa geração que, em teoria, irá comandar o mundo daqui para a frente. Há razões para temer. Com tamanha alienação em relação ao mundo real, é fácil imaginar um destino: serão uma presa dócil para qualquer projeto totalitário. Perspicaz foi Orwell quando disse que a imagem do futuro era a de uma bota a esmagar um rosto por toda a eternidade.
Quem viver verá.
É como diz o velho deitado: "new media, old idiots".
José António Baço, jornalista e publicitário


49 - Lula devorado

"Saturno Devorando os Seus Filhos" é uma obra violenta de Franciso de Goya, criada já no final da vida do pintor, o período das suas "pinturas negras". Quem vê não consegue ficar indiferente. O deus mitológico segura o cadáver ensangüentado e decapitado de um filho enquanto ainda devora um dos seus braços. O que mais perturba é a expressão de Saturno, uma mistura de ódio, medo e desespero. Os olhos inquietos e as mãos como garras exigem o olhar do espectador.
Para quem não conhece a história, os pais de Saturno profetizaram que um dos seus filhos lhe tomaria o trono. Para se prevenir, ele passou a devorar os herdeiros. A lógica é que Saturno gera e ao mesmo tempo destrói.
É a metáfora exata para entender a situação política no Brasil. Só uma sociedade alicerçada na exclusão e no desrespeito pelos mais pobres poderia gerar um político como Lula, surgido dos movimentos populares. Essa sociedade "saturnina" (Saturno representa a oligarquia a devorar o homem) criou Lula e agora precisa devorá-lo.
Não se trata de atacar ou defender o presidente, mas de discutir as relações históricas e o caráter predatório das elites brasileiras. É preciso entender a lógica conservadora dos donos do poder, que ao longo dos séculos tornaram o País uma das sociedades mais injustas do mundo. O poder pertence sempre aos predadores. Nada muda.
Lula foi uma exceção e encontra paralelo no mito de Saturno. As "Saturnálias" são uma festa durante a qual as relações sociais são invertidas e os escravos passam a mandar nos senhores. É um acontecimento de caráter transitório, claro. Depois tudo tem de voltar ao lugar e os atores sociais reassumem os seus papéis. As denúncias de corrupção no atual governo são o sinal evidente de que a festa acabou. O tempo de Lula parece estar chegando ao fim. E com um agravante. O filho imprevidente facilitou o trabalho aos que o querem devorar.
Outro detalhe do quadro de Goya merece ser citado. Na obra original, Saturno aparece com o pênis ereto (detalhe posteriormente apagado), o que indicia um certo prazer. É a metáfora do gozo dos políticos do tradicional círculo do poder. Os mesmos que ao longo de décadas têm empurrado o País para o atraso ressurgem, hipócritas, com o ar vitorioso de paladinos da moralidade.
Lula pode ser devorado. O PT pode ser devorado. Mas será que a história acaba? Afinal, o mito pode se cumprir. Porque, diz a lenda, um dia Saturno será destronado por outro dos seus filhos. E a exemplo do que aconteceu na mitologia, será um novo tempo: o fim do atraso, do ódio de classe e da arrogância das elites.
É como diz o velho deitado: "Tudo já foi dito. Mas como ninguém ouve, é preciso repetir".
José António Baço, jornalista e publicitário


48 - A Belíndia, a luta de classes e a cerveja

Houve um tempo em que os intelectuais estavam sempre a falar na tal Belíndia. Diziam que o Brasil era uma mistura entre a Bélgica rica e a Índia pobre. Sempre pensei que estivessem a falar de política, sobre a luta de classes: ricos de um lado, pobres do outro.
Mas que nada. Tem a ver com a cerveja. Faz alguns meses um instituto brasileiro divulgou uma pesquisa que revelou um fato interessante: a cerveja é o sonho de consumo das classes D e E. Isso sim é uma luta de classes: as classes A, B e C têm a cerveja e o pobres das classes D e E são os excluídos.
É duro ficar no lado Índia da Belíndia. O meu contato com o país asiático resume-se às noitadas no trabalho, quando a gente encomenda comida no restaurante aqui do lado. A cozinha indiana é algo picante e de sabor muito agradável. Pede uma loira gelada. Que eu não dispenso, claro.
Mas os indianos não têm tanta sorte. Dizem que é um sufoco para encontrar bebidas alcoólicas na Índia. E em alguns estados há mesmo uma lei seca. Para achar uma boa cerveja, só nos restaurantes e hotéis de maior qualidade. É o problema de ser pobre por aquelas bandas: nem se pode beber para esquecer.
Aliás, há uma tradição de fazer bebidas caseiras porque não há dinheiro para melhor. Mas é complicado. Em abril, por exemplo, morreram mais de 20 pessoas intoxicadas por metanol numa dessas zurrapas.
É claro que eu prefiro o lado Bélgica da Belíndia. Qualquer bom amante das loiras sabe que a Bélgica é o paraíso: você pode beber uma marca diferente todos os dias e não repete umazinha sequer ao longo do ano. Dizem que há mais de 500 marcas. É um delírio. Aliás, Delirium Tremens, a minha favorita.
Nem o frio do inverno europeu assusta a rapaziada. Aliás, até tem um certo charme. Eu, por exemplo, já adquiri um hábito quando estou por lá: à noite ponho a cerveja na janela. Não é preciso geladeira. Com as temperaturas baixas (com neve, inclusive) a cerveja gela rápido. E os belgas não são bobos. Se o sujeito não está a fim de bebidas frias, resolve a coisa com uma sopa. Sopa de cerveja, claro.
Na Bélgica a cerveja é objeto de culto. Faz parte da história. O imperador Júlio César, durante a conquista dos territórios que formaram o império romano, andou por lá e levou porrada dos antepassados dos belgas. O imperador concluiu que a macheza dos sujeitos tinha a ver com a cerveja (seria uma espécie de poção mágica). Mas o grande mala da história foi Napoleão Bonaparte. Imaginem que o tipo quis impedir os monges belgas de fabricarem a bebida. Ainda bem que os religiosos não foram na onda e continuaram com as sua loiras na clandestinidade.
Bebedores do mundo, uni-vos. Pelo fim da Belíndia e por uma sociedade justa, com cerveja para todos.
É como diz o velho deitado: "Luta de classes? Eu prefiro a guerra das cervejas, porque a gente confraterniza com o inimigo".
José António Baço, jornalista e publicitário.


47 - O velho barbudo volta a atacar

A respeitável BBC Radio 4, lá das terras de Sua Majestade, realizou recentemente uma votação para escolher o maior pensador de todos os tempos. Ora, quem pergunta quer saber. Mas os senhores da estatal britânica quase caíram da cadeira quando viram o resultado. O eleito foi Karl Marx. E com uma goleada sobre o segundo colocado, o filósofo e historiador escocês David Hume (27,93% contra 12,67%). Mais atrás ficaram Wittgenstein, Nietzsche, Platão, Kant, São Tomás de Aquino, Sócrates, Aristóteles e sir Karl Popper (vá de retro).
Então, uma hipotética conversa entre um inglês e um brasileiro:
Brasileiro: O Marx não estava enterradíssimo no cemitério da história?
Inglês: Já vi o obituário muitas vezes. Mas parece que o velho barbudo é duro na queda.

Brasileiro: Não acredito nessa eleição. Os caras da rádio são todos comunistas. Só pode ser.
Inglês: Foi uma votação democrática. Aliás, dizem que os sujeitos até estavam torcendo pelo David Hume.

Brasileiro: Bem... a coisa até podia passar despercebida se não fosse na Inglaterra. Não é o país do liberalismo e da tal terceira via?
Inglês: Pelo menos uma coisa eu posso garantir: a Margareth Thatcher não votou nele.

Brasileiro: Mas por que razão um em cada três ingleses iria votar no autor de uma teoria que o mundo considera morta e enterrada?
Inglês: Talvez as teorias do velho filósofo não estejam assim tão ultrapassadas.

Brasileiro: Ahááá... te peguei, meu. Tu é marxista.
Inglês: Shiuu... fale baixo ou ainda acaba por me comprometer. Sempre que alguém quer desqualificar um interlocutor começa logo com essa coisa de chamar: "marxista, marxista, marxista". É um saco.

Brasileiro: Mas tu tá defendendo o cara.
Inglês: Ora, eu li Marx e acho que a coisa não é tão simples. O homem foi brilhante. Não dá para passar uma borracha por cima da obra dele como se não tivesse existido. Você não acredita nos ingleses? Ora, os brasileiros estão sempre elogiando o tal primeiro-mundo...

Brasileiro: Os ingleses estão todos malucos. E votaram num maluco.
Inglês: Já leu Marx?

Brasileiro: Claro que não.
Inglês: Peraê. Então explique lá. Como alguém pode ser antimarxista sem jamais ter lido Marx?

Brasileiro: Não viu a URSS? O Muro de Berlim? O Gorbachev...
Inglês: Onde foi que o Marx escreveu que o mundo deveria ser como a URSS?

Brasileiro: Sei lá. Já disse que nunca li. Mas todo mundo sabe que isso de marxismo é um atraso.
Inglês: O que é marxismo? Eu já li Marx e confesso que não sei o que é ser marxista.

Brasileiro: Ora, o marxismo é... é... é... sei lá... ah... deixa de chatear. Todo mundo sabe o que é...


É como diz o velho deitado: "Nove entre dez antimarxistas nunca leram Marx. Aliás, nunca leram nada".

José António Baço, jornalista e publicitário.


46 - Ler os jornais no verão

De volta à silly season. O hemisfério Norte está a viver o ponto alto do verão e todo mundo está indo de férias. Sem fatos relevantes para publicar, os meios de comunicação abrem espaço para as notícias mais estranhas. É difícil acreditar em certas coisas, mas parece que é tudo verdade. Um rápido clipping dos noticiários permitiu recolher estas verdadeiras pérolas:
Quarenta cabras por Chelsea Clinton - Tem maluco para tudo. Mas o nigeriano GodwiKipkemoi Chepkurgor é candidato a ganhar o troféu de maior figurinha carimbada do manicômio. O sujeito decidiu simplesmente pedir Chelsea Clinton, filha de Bill e Hillary Clinton, em casamento. E, seguindo uma tradição da sua terra, ofereceu ao pai da "noiva" um dote: nada menos do que 20 vacas e 40 cabras. O sujeito, um funcionário do governo da Nigéria, diz que a paixão é coisa séria e começou em 2000, quando o casal Clintovisitou o país com a filha. O jovem casadoiro enviou a proposta por meio de cartas ao ministro dos Negócios Estrangeiros do seu país e ao embaixador dos Estados Unidos no Quênia. E se comprometeu a viajar até aos EUA para falar pessoalmente com o pai da pretendida. Pelo que se sabe, Bill Clinton ainda não respondeu se aceita as cabras e as vacas.
Sodomizado por um cavalo - Aconteceu numa cidadezinha chamada Enumclaw, na região de Seattle, nos EUA. Um grupo de desconhecidos desovou o cadáver de um homem de 40 anos no hospital local e bateu em retirada. Os médicos fizeram exames no corpo e encontraram sérias lesões internas - ruptura no cóloe outros órgãos. A polícia partiu para a investigação e descobriu a causa da morte: ele tinha sido sodomizado por um cavalo. Surpreendente?
O acidente aconteceu num sítio que, segundo os policiais, era um lugar especializado em zoorastia. Tratava-se de uma espécie de clube que oferecia, aos seus clientes, animais como cavalos, cães ou cabras. Também foram encontradas gravações com cenas de sexo entre homens e animais. O homem é mesmo um bicho esquisito.
Pingüins gays - O leitor ouviu falar, há algum tempo, do problema dos pingüins gays no zoológico de Bremherhaven, na Alemanha? Os seis machos que vivem no zôo teriam virado a asinha e começaram a dispensar as fêmeas. Para resolver a situação, os alemães receberam um apoio importante vindo da Suécia: quatro pingüins fêmeas com a missão de seduzir os desertores e trazê-los de volta ao mundo hetero. Passadas algumas semanas, as notícias informam que não está funcionando. Os machos continuam a preferir as relações homossexuais. Parece que só há um caminho a seguir: a fêmeas voltam para a Suécia e os machos são mandados para um zoológico qualquer na Espanha. Lá vale casamento gay.
É como diz o velho deitado. "É isso aí, bicho!"
José António Baço, jornalista e publicitário.


45 - Você é um intelectual?

Um desafio à inteligência do leitor. Acha que pode ser considerado um intelectual? Então, vamos fazer um teste. É preciso entender as poucas linhas que seguem:
"... as ciências pós-modernas põem por terra as categorias ontológicas estáticas e as hierarquias típicas da ciência moderna. No lugar de atomismo e reducionismo, as novas ciências colocam em tensão a rede dinâmica de relações entre o todo e a parte; em vez de essências individuais fixas (como nas partículas newtonianas), elas conceitualizam interações e fluxos (campos quânticos). De maneira intrigante, estas características homólogas surgem em numerosas e aparentemente díspares áreas da ciência, desde a gravidade quântica, passando pela teoria do caos e até a biofísica dos sistemas auto-organizados".
Entendeu, leitor (a minha tradução do inglês é passível de erros)? Se entendeu, pode se considerar um perfeito intelectual dos nossos tempos. Se ficou a boiar, então junte-se a Batman e Robin, os meus dois neurônios bêbados, porque eu também não pesquei nadinha. Mas não desespere, porque nem tudo está perdido.
O texto é uma fraude. É um excerto de "Transgressing the Boundaries: Towards a Transformative Hermeneutics of Quantum Gravity" (Uma Transgressão de Fronteiras: em Direção a uma Hermenêutica Transformativa da Gravidade Quântica), escrito pelo professor Alan Sokal, da Universidade de Nova York, e publicado há quase uma década na revista americana "Social Text".
É o famoso caso Sokal. Algumas semanas depois da publicação, o professor escreveu um artigo para outra revista a revelar a patranha. Disse que tinha feito uma colagem de termos usados pelos acadêmicos e produzido um besteirol com o estilo emaranhado dos pensadores ditos pós-modernos (em especial os franceses). Não por acaso Felix Guattari, Gilles Deleuze, Jacques Derrida ou Jean-François Lyotard eram fontes citadas no texto. Aliás, até o "Pedagogia do Oprimido", do nosso Paulo Freire, aparece na referências bibliográficas.
O caso virou piada nos meios acadêmicos. O texto parece com tantas outras bobagens que os "intelectuais" lêem e fazem de conta que entendem. O próprio autor explicou que a farsa era uma forma de, entre outras coisas, denunciar a falta de rigor dos intelectuais.
O problema é que hoje, passados quase dez anos da impostura do Caso Sokal, as coisas só fizeram piorar. Há discursos incompreensíveis nos meios acadêmicos e intelectuais. Tem gente nas universidades a discutir seriamente temas ao nível da "quintessência neurastênica da repimpoca da parafuseta". E o mais alarmante: quanto mais incompreensível e intrincado for o discurso, maior será o prestígio do intelectual. É a tal pós-modernidade: é complicado ser simples.
É como diz o velho deitado: "É um autêntico Sokal no estômago".
José António Baço, publicitário


44 - O triunfo dos porcos

O Partido dos Trabalhadores, do presidente Lula da Silva, foi considerado, durante muito tempo, uma reserva da ética na política. Mas ao que parece os petistas não resistiram à tentação do poder e, quando no governo, muitos dos seus líderes se envolveram em corrupção. É o que vem sendo anunciado pela impresa nas últimas semanas, com o escândalo do “mensalão”.

O problema de se juntar aos porcos é que a gente acaba por se sujar, mas eles se divertem com a lama. Os caras do PT sabiam o que podia ocorrer quando estabeleceram alianças com esses partidecos de malandros candidatos a malandros oficiais (sorry, Chico). E agora que o deputado Roberto Jefferson jogou farofa no ventilador não adianta virem posando de virgens. Quem pisou na bola tem que pagar, não importa o partido ou o cargo que ocupa.
Sem pizza. E o tempo vai se encarregar de punir os culpados. Mas de imediato há uma distorção que preocupa. Essa avalanche de denúncias tem um efeito perverso: velhos cadáveres políticos estão a se levantar nesse pantanal chamado Brasília. O excesso de revelações - a cada dia surge uma nova denúncia - acabou por provocar uma espécie de amnésia coletiva. O passado foi simplesmente apagado e antigos vendilhões, os mesmos que em outros tempos levaram o país ao caos da miséria, agora se sentem com legitimidade para posar de Madres Teresas de Calcutá, como se fossem poços de virtude.
Há uma inversão de valores muito perigosa. A mesma canalhada das oligarquias e do fisiologismo (muitos são filhotes da ditadura) ressurge agora como possuidora dos valores éticos da nação. A confusão só favorece essa gente. A estratégia é fazer o povão acreditar que direita e esquerda são a mesma coisa, que os políticos são todos iguais. Se as pessoas acham que política é coisa suja e se afastam, o campo fica livre para os bandalhos.
Só num País muito confuso é que um corrupto confesso como o deputado Roberto Jefferson pode ser considerado por tanta gente como uma espécie de herói nacional. Triste um país onde o herói é o corrupto que denuncia os outros corruptos.
O leitor com um pouquinho de memória pode perguntar se esse Roberto Jefferson não é o mesmo da tropa de choque do Collor. Exatamente. Mas todo mundo esqueceu. O tal deputado, na época com muitos buracos a mais no cinto, era um símbolo do atraso político, da ética duvidosa. Aliás, se o PT convidou justamente esse sujeito para aliado - e até lhe passou um cheque em branco - então merece a sorte que está a ter.
Mas há pessoas com responsabilidades públicas, sejam da direita ou da esquerda. Um dia desses ouvi numa rádio catarinense um político local a comentar os acontecimentos. Só faltou pedir a beatificação de Roberto Jefferson. Dizia ele que o deputado até tinha os seus defeitos ("até", imaginem), mas que estava a prestar um serviço ao País. E foi mais longe: disse que Jefferson tem hoje, em arquivo, uma das mais completas bases de dados sobre a corrupção no país (formada por denúncias recebidas por e-mail). É o que faria dele um homem poderoso.
Deixem ver se eu entendi. Quer dizer que um sujeito de biografia pouco recomendável agora é um guardião da moralidade do País? É claro que denunciar a corrupção é um serviço que se presta à nação. E todos os que estão metidos nessa bandalheira, sejam de que partido forem, devem responder aos rigores da lei. Mas tratar como herói um corrupto boquirroto é um paradoxo que faz entender a expressão "terceiro mundo".
É o triunfo dos porcos.
É como diz o velho deitado: "O pior corrupto não é o que nos rouba o dinheiro, mas o que nos rouba a esperança".
José António Baço, jornalista e publicitário


JORNALISMO EM PORTUGAL
43 - O arrastão que levou a nossa inteligência

Fantochada, s. f., porção de fantoches; cena de fantoches; fig., cena burlesca; palhaçada. (Dicionário Online Universal – Texto Editores)

Fantochada é a palavra que um português comum poderia usar para descrever a atuação da comunicação social no episódio conhecido como o "arrastão" da praia de Carcavelos. A notícia, que correu o mundo, certamente provocou arranhões na imagem de Portugal, um país que depende muito das receitas do turismo.
Mas o que aconteceu?
Para o leitor não familiarizado com o assunto, uma breve descrição dos acontecimentos. Ou melhor, dos não-acontecimentos. Tudo ocorreu numa sexta-feira, 10 de junho, feriado que marca o simbólico Dia de Portugal. Os noticiários das três principais redes de televisão de sinal aberto do país – a estatal RTP e as privadas SIC e TVI – tinham como manchete o tal arrastão. Os números eram tão impressionantes quanto delirantes: 500 jovens, com uma sincronia capaz de fazer inveja até aos mais brilhantes estrategistas militares, teriam feito um mega-arrastão, agredindo e roubando pessoas na areia.
Poucos minutos depois a polícia ocupou a praia com um aparato de impor respeito. Os meios de comunicação mandaram os seus repórteres para o local. A televisão começou a emitir flashes ao vivo. Nos estúdios, comentaristas especializados (sociólogos, criminólogos ou antropólogos) teciam as mais inteligentes teorias. Um deles chegou mesmo a anunciar o início de uma nova era na criminalidade do país, a era do arrastão. E destacou a irônica simbologia: tudo isso acontecia no Dia de Portugal. A população, apanhada de surpresa, ficou estarrecida.
Mas qualquer cidadão com dois dedos de testa podia perceber que alguma coisa estava fora de lugar. Não havia fatos.

Imagem poderosa
O que dizer dos jornalistas? Como seria possível profissionais de comunicação caírem na esparrela de noticiar um não-acontecimento? Aliás, o acontecimento foi o próprio circo televisivo que se armou.
Um jornalista tem a obrigação de exercer o elementar exercício do bom senso. O raciocínio é básico. Se há um crime – roubos e agressões – isso pressupõe que haja agressores, vítimas, objetos roubados, motivos, queixas na polícia. Mas a televisão só conseguiu mostrar depoimentos inconsistentes de testemunhas que nada viram. Ou seja, usou e abusou de gente que se deixa seduzir pelo desejo de aparecer na telinha. É o problema de ter que noticiar ao vivo.
As referências ao Brasil eram incontornáveis e Carcavelos foi comparada ao Rio de Janeiro. Um dos repórteres de televisão encontrou um jovem brasileiro na praia e fez uma entrevista. O que ele viu? Nada. Mas admitiu que era triste ver que uma prática comum no Brasil estivesse a ocorrer também em Portugal. O jornalista precisava deste estereótipo para estabelecer o paralelo entre os "arrastões" dos dois países (era mesmo uma forma de justificar a introdução da palavra "arrastão" na semântica da cobertura jornalística).
Por falar em estereótipos, racismo e xenofobia estiveram no centro da questão. É certo que nunca se falou em "negros" (a praia fica perto de zonas habitadas por africanos e descendentes), mas sempre que se falava em "roubos" a foto que aparecia era a de um grupo de jovens negros a correr. Uma imagem poderosa, mas instrumentalizada de forma preconceituosa pelos editores (os jovens estavam a fugir da confusão, com a chegada da polícia).

Cobertura risível
O que restou desse autêntico besteirol jornalístico?
Uma população que, em sua maioria, acredita que houve mesmo um arrastão. Por isso as reações contra os estrangeiros subiram de tom nas camadas menos informadas. O pior é que a extrema-direita se sentiu com legitimidade para sair às ruas de Lisboa numa manifestação claramente xenófoba a pedir um Portugal para os portugueses (excluem os negros nascidos no país, claro). Enquanto isso, os meios de comunicação, que deveriam esclarecer os fatos – e mesmo pedir desculpas aos portugueses por tamanha barrigada – permanecem no silêncio.
Menos mal que algumas pessoas tentam restituir a verdade dos acontecimentos. Uma delas é a jornalista Diana Andringa, que na quinta-feira (30/6) fez uma apresentação pública de um documentário de sua autoria, intitulado Era uma vez um arrastão, na Videoteca de Lisboa. É um exercício demolidor de desconstrução desse pseudoarrastão. E nem foi preciso muito trabalho de investigação, porque foi quase suficiente fazer uma colagem dos noticiários de televisões e jornais.
Todo professor de jornalismo deveria baixar uma cópia desse filme. É um trabalho sério, mas que faz rir. Porque mostra como a cobertura do episódio feita pela comunicação social portuguesa foi ridícula e risível. Uma autêntica fantochada.
Pode ver o filme aqui.
(*) Jornalista, doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade Nova de Lisboa, cronista de A Notícia (Joinville, SC)


42 - Silly, silly, silly

Verão na Europa. É aquela época em que todo mundo sai de férias ao mesmo tempo. As estradas ficam intransitáveis. Os aeroportos parecem formigueiros. As praias viram um mar de gente (quase é preciso sair na porrada para arranjar um lugarzinho na areia). E como todo mundo está na folga, inclusive os governos, a imprensa fica sem notícias. É o fenômeno chamado silly season. Ou seja, sem fatos importantes a acontecer, a comunicação social começa a dar espaço às notícias mais esquisitas.

Vamos dar uns pulinhos?

Há malucos para tudo. Mas existe por aí um grupo de cientistas que instituiu o dia 20 de julho de 2006 como o Dia Mundial do Pulo. Sabem qual o objetivo? Os caras dizem que se, nesse dia, todas as pessoas no mundo saltarem ao mesmo tempo, o impacto permitirá pôr o planeta em outra órbita. O resultado seria o fim do aquecimento global, o aumento das horas de sol durante o dia e um clima mais equilibrado. Está tudo explicado no site www.worldjumpday.org. Se gostou da idéia e também quer dar os seus pulinhos, fique a saber que pelo horário de Brasília tem que saltar exatamente às 8:39:13. Pensando bem, não seria interessante usar esse mesmo sistema para pôr o governo em outra rota?

O artista sacaneia os museus.

Tem uns sujeitos que se divertem a sacanear os outros. É o caso de um grafiteiro chamado Banksy, que vive a sabotar exposições nos museus. O cara tem por hábito incluir - à socapa - peças de sua autoria entre as obras expostas nos museus. E muitas vezes as "intervenções" demoram a ser descobertas. As proezas do tal Banksy incluem lugares como o The Metropolitan Museum Of Art, Museum of Modern Art (MoMa), Brooklin Museum e o American Museum of Natural History. A cara-de-pau do sujeito é tanta que ele ainda expõe as suas aventuras no seu site (www.banksy.co.uk). O caso mais recente aconteceu no British Museum e não deixa de ser divertido. O sabotador pôs em exposição uma pintura rupestre pré-histórica, uma pedra onde estavam desenhados um touro e um homem primitivo a empurrar um carrinho de supermercado. O problema é que ninguém percebeu e o museu só foi ver a aldrabice quando o próprio autor tratou de revelar a sacanagem.

O motel que voa.

O sonho de todo marmanjo é levar uma mulher às alturas na hora do sexo. Agora ficou fácil, pelo menos para os que têm a carteira recheada. A empresa aérea britânica Virgin Atlantic, reconhecida pela sua capacidade de inovar no marketing, está a desenvolver um novo conceito de vôos. Para as viagens de longo curso, as classes executivas passam a contar com bancos que, aos pares, se transformam em cama de casal. Graças a esse truquezinho, os aviões da empresa podem ser transformados em autênticos motéis sobre asas. O problema, ao que consta, é a insonorização. Por melhor que esteja o rala-e-rola, ninguém pode gritar ou gemer muito alto, sob risco de incomodar os outros passageiros. Virgin? Só no nome.

É como diz o velho deitado: "É a tal insanidade temporária. O lado bom é que só acontece duas vezes por ano. O lado mau é que cada vez dura seis meses".
José António Baço, publicitário e jornalista


41 - Cinto-negro procura
emprego no Congresso Nacional

Anúncio classificado.
Cinto-negro em taekwondo procura emprego como assessor de deputado no Congresso Nacional.
Depois de ver as cenas de empurra-empurra na volta do deputado José Dirceu à casa, acredito que os meus préstimos podem ser úteis para qualquer político que queira fazer valer os seus pontos de vista, em especial quando o "debate" possa resultar em alguns olhos roxos.
Dou garantias de eficiência. Como sou ambidestro - bato com a mesma força com a esquerda e com a direita -, isso elimina problemas ideológicos e permite que eu ingresse em qualquer bancada (ou seria pancada?). Esquerda, direita ou centro: não importa a tendência política, porque sou pau para toda obra. Estou disponível, inclusive, para trabalhar para qualquer um dos 300 picaretas. Aliás, também posso dar algumas aulinhas de aritmética. Porque a pessoa que viu só 300 picaretas por certo não sabe fazer contas.
O salário é a negociar, mas estou aberto a qualquer esquema do tipo "mensalão". E passo recibos, porque, ao contrário dos políticos, não me importo de pagar os impostos. Ah... uma dúvida: aquela coisa de receber 1 milhão de reais no final do ano é mesmo a sério? Eu topo, mas prefiro em euros, porque nem preciso fazer o câmbio.
Sei que esse esquema do "mensalão" pode acabar, agora que alguém deu com a língua nos dentes. Mas também aceito receber salário de deputado (incluindo 13º, 14º e 15º salários, claro). Todos sabemos que os deputados brasileiros, pobrezinhos, ganham uma miséria. Mas tudo tem solução. Para compensar, eu gostaria de incluir também aquela verba suplementar para passagens aéreas. Ou seja, passo a semana em Brasília a de(bater) com os opositores políticos e nos finais de semana também volto para as bases. Ou seja, viajo para a Cote D'Azur, porque o verão europeu está mesmo a convidar para uma cervejinha numa praia do Mediterrâneo.
Os senhores deputados viajam bastante para o exterior e sabem como a vida é difícil na Riviera. O sujeito está ao sol em Nice e de repente dá uma vontade danada de andar uns quilômetros e ir até à Itália comer um nhoque. Essas coisas acontecem. Aliás, não sei se já ouviram falar a respeito, mas diz a lenda que o nhoque é um prato que dá sorte. E os deputados, em especial aqueles acostumados a tetas, propinas e esquemas pouco lícitos, estão mesmo a precisar.
Nada como uma boa mandinga para espantar o azar. Eu recomendo um restaurante qualquer ali em San Remo, que é bem pertinho. Ih mas para ir até à Itália é preciso ter um meio de transporte. Por isso, se conseguir o emprego, gostaria de incluir também aquela verba de locomoção, hospedagem e alimentação.
E também um adicional de insalubridade, porque trabalhar na lama faz mal para a saúde.
Parece bem? Mas tenho uma dúvida
Se os deputados têm tantas mordomias e levam esse vidão, então por que há tantos corruptos? E por que, raios, estão sempre a brigar?
É como diz o velho deitado: "Esqueçam o cinto-negro. Os cretinos merecem é uma surra de cinta de couro".
José António Baço, jornalista e publicitário em Portugal


40 - Sexo, suor e gordurinhas

O homem é mesmo um bicho esquisito. A história da humanidade está cheia de grandes besteiras, como as guerras, a destruição do meio ambiente ou a concentração da riqueza que expõe os mais fracos à fome, à doença e à exploração. Mas a infâmia da espécie é feita também por aquelas pequenas coisas que não fazem o menor sentido. É difícil entender certos casos.
Sexo: é uma paranóia que ganha cada vez mais adeptos nos Estados Unidos. Há instituições religiosas como uma tal Silver Ring Thing (Coisa do Anel de Prata), que pretende convencer os jovens a aderirem à abstinência sexual. Dizem que é a melhor maneira de deter as doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez indesejada na adolescência. Os caras usam música e teatrinhos para passar a mensagem. E quem adere compra o tal anel de prata, que é uma forma de sacramentar o compromisso.
Ser virgem ou não ser? É problema de cada um. Mas há uma coisa fora de lugar: é que essa insanidade tem o apoio financeiro do governo Bush. A coisa é tão delirante que não é preciso ser virgem para aderir. Para cooptar mais pessoas, os caras inventaram o estranho conceito de "segunda virgindade". Ou seja, a pessoa pode ter horas e horas de rala-e-rola que ainda pode assumir o tal compromisso de castidade.
Suor: o verão está a bater com força no hemisfério Norte. Dá pena ver os executivos todos engravatados em temperaturas que oscilam entre os 30 e os 40ºC. É irracional, mas parece que o sucesso de um executivo é medido pela qualidade do terno que ele usa. Mesmo que por baixo do paletó o sujeito esteja empapado de suor. Mas nem tudo está perdido. Os japoneses, por exemplo, ainda recentemente chegaram à conclusão de que "elegância" dos seus trabalhadores custa caro. O problema é que os sujeitos trabalham de paletó e gravata e por isso têm de ter o ar-condicionado sempre funcionando a mil. É antiecológico e a conta da energia elétrica fica salgada. Tanto que os manda-chuvas das empresas tomaram uma decisão: daqui para a frente, no calor os executivos devem optar por roupas mais leves. Só mesmo uma dorzinha no bolso para trazer os sujeitos à razão. E os engravatados brasileiros no calor tropical? Tadinhos.
Gordurinhas: Todo mundo sempre ouviu dizer que o progresso traria um aumento na expectativa média de vida das pessoas. Mas agora vêm uns pesquisadores a dizer o contrário. Ao que parece, a expectativa de vida em muitos países desenvolvidos pode começar a baixar ainda neste século (entre dois e cinco anos). Baixar? Sim. Tudo por culpa da obesidade, que começa a ser um problema também para as crianças. O futuro será um fardo pesado. É que as novas gerações têm hábitos alimentares nada adequados (muita fast-food) e levam vidas sedentárias, porque trocam as atividades esportivas pelo computador ou pela televisão. O alerta, claro, só está a ser feito porque o combate à obesidade vai consumir os recursos financeiros dos sistemas de saúde desses países. A aventura capitalista promete o paraíso pelo consumo e pela abundância. Ou seja, abundância de ataques cardíacos, câncer e doenças que nem sonhamos mas ainda vão surgir. Intrigante.
É como diz o velho deitado: "Parem o mundo que eu quero descer".
José António Baço, jornalista e publicitário em Portugal.


39 - A sua opinião é mesmo sua?

Se existe uma coisa que está na moda são os tais think tanks (podemos traduzir por "bancos de idéias"). Mas não deixa de ser estranho haver tão pouca gente a discutir os seus efeitos na sociedade. Ou, o que é pior, ainda existir muita gente que sequer ouviu falar neles. O fato é que os think tanks se tornaram respeitável fonte de poder paralelo: influenciam a opinião pública, a mídia e as políticas dos governos. E, por conseqüência, a vida de todos nós.
Para o leitor menos familiarizado com o tema, uma rápida descrição. Os think tanks reúnem pensadores dedicados a analisar as mais diversas questões e elaborar linhas de ação. Há mesmo políticos que os usam como bengalas para tomar suas decisões. Para apresentar exemplos práticos, muitos dos falcões do presidente George W. Bush estão relacionados com think tanks, entre eles Dick Cheney, Donald Rumsfeld ou Condoleeza Rice.
Os números não são exatos, mas estima-se que existam cerca de 4.500 em todo o planeta, a metade nos Estados Unidos. Não têm fins lucrativos e são raros os que assumem filiações políticas. O discurso dessas instituições destaca a independência, ou seja, o fato de não estarem ligados aos governos. Até porque a fonte de financiamento, na maioria dos casos, são fundações, empresas ou pessoas comuns.
Até aí tudo bem.
Mas um olhar crítico permite ver nuvens negras no céu dos think tanks. Em primeiro lugar, porque dizem que produzem idéias sem ideologia, numa tentativa de se mostrarem apartidários ou, no limite, apolíticos. É conversa para boi dormir. A verdade é que a expressiva maioria tende para a direita (entendida como o modelo que se identifica com o neoliberalismo) e para a defesa do totalitarismo do mercado.
Michel Foucault diz que a verdade é mundana e não existe fora do poder ou sem poder. "Cada sociedade tem o seu regime de verdade, a sua 'política geral' de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto dos que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro".
É aqui que encontramos os think tanks em seu esplendor. Porque seus integrantes funcionam como técnicos em legitimação. Em tempos de pensamento único, são eles que dão "credibilidade" ao discurso do mercado. Não por acaso o vocabulário de esquerda acabou banido do sistema lingüístico e se tornou sinônimo de atraso. Foi decretado o fim das ideologias, o fim das utopias, o fim da história, o fim da luta de classes. É o fim da picada. Uma nova fraseologia, com um ar pretensamente moderno, foi imposta em escala planetária: globalização, pós-modernismo, desregulamentação, multiculturalismo, liberalização. É uma impostura, claro.
Há um ponto fulcral. Um dos papéis dos think tanks é influenciar os meios de comunicação. E a coisa tem resultado na perfeição. Não é preciso ser um gênio para ver o pântano onde se juntam o poder econômico e os meios de comunicação. Há uma seletividade: apenas são aceitos - e reproduzidos - os discursos que abriguem a verdade dos donos do poder. O jornalismo crítico e independente corre o risco de desaparecer, sufocado pela presença asfixiante da linguagem de defesa do mercado.
É possível que muitos leitores nunca tenham ouvido falar nos think tanks. Mas é também provável que muitas pessoas menos atentas estejam a repetir os discursos que eles intencionalmente pretendem ver reproduzidos. Dito isso, fica uma pergunta em tom de reflexão: será que a opinião que cada um de nós tem sobre os fatos é mesmo nossa?
José António Baço, jornalista, especialista em pensamento contemporâneo (PUC-PR)


38 - Ser "googleável" ou não ser: eis a questão

Sempre desconfiei dos sujeitos certinhos, que fazem tudo by the book. Os caras são chatos em qualquer momento da vida, mas é na universidade que se tornam insuportáveis. Um estudante universitário conservador só pode ser uma aberração. Afinal, os cursos superiores devem ser lugares onde as idéias fervilham, a atividade é febril e as pessoas estão sempre na contra-corrente da mesmice cotidiana. Mas a prática é diferente. O que se tem hoje em dia - na Europa, no Brasil ou lá em Cochabamba - são universitários incapazes daquela práxis que sempre pôs os estudantes na vanguarda das rupturas. Em vez de movimento estudantil, temos uma paralisia estudantil. É um tédio só.
Não há rasgos de rebeldia e o universo dos estudantes oscila entre os meninos bem comportados e os que não querem ter nada a ver com a responsa. Em comum, têm uma indecorosa alienação em relação aos problemas sociais e políticos. Foi-se o tempo de intervir, de fazer política. Talvez a minha geração tenha sido uma das últimas a viver essa época, apesar de haver já muito quietismo por parte dos estudantes.
Quando estava na universidade, integrei uma turma dividida em dois grupos. De um lado estavam os burocratas, que só jogavam pelas regras e nunca peitavam o sistema (acadêmico ou para além dele). Os caras faziam tudo o que os professores mandavam, viviam obcecados com as notas e eram incapazes de "chutar o balde".
O outro grupo era formado pelos sujeitos que não tinham o menor pudor de trocar uma aula chata por uma boa discussão no bar da faculdade. Os debates eram sempre bem regados com muita cerveja. Eu sempre preferi este time, claro. E não tenho dúvidas em afirmar que alguns dos momentos mais interessantes foram passados nas mesas de bar.
Discussões sobre filosofia, história, política, sexo, futebol, música, psicanálise ou a mais cretina das abobrinhas. Não havia temas tabu. Com o tempo, muita gente de outros cursos veio engrossar o grupo. Os debates diários, mesmo que numa mesa de bar, são um exercício poderoso. Obrigam a articular o discurso. Estimulam a verbalização. Ensinam a encarar o interlocutor. Incendeiam a criatividade. Desenvolvem o senso de humor. E o mais importante: a necessidade de ter o melhor argumento obriga à leitura. Todos líamos muito e a informação era socializada.
O fato é que o establishment acadêmico nunca foi muito com a nossa cara. Os bem-comportados eram os preferidos. Mas um dia destes, por brincadeira, decidi fazer um pequeno "acerto" com o passado. Coisa das novas tecnologias. Fui ao Google e pesquisei os nomes dos meus antigos colegas de sala. É interessante. Os caras da mesa de bar são quase todos "googleáveis". Isso significa que fizeram - ou ainda fazem - coisas relevantes. Uns têm livros publicados. Outros são professores universitários com projetos interessantes. Há também os que estão na vida política ativa.
E o que aconteceu aos sujeitos bem-comportados? Não há rastro deles (pelo menos no Google). Mas resta um consolo: todos devem ter na gaveta um diploma com excelentes notas.
É como diz o velho deitado: "Seja realista. Exija o impossível".
José António Baço, jornalista e publicitário em Portugal


37 - É o mundo, animal

É estranha a relação de algumas pessoas com os seus bichinhos de estimação. Há gente que leva a coisa ao extremo e muitas vezes as coisas chegam a ser meio psicóticas.
No auge da paixão, o casal recém-ajuntado vivia a trocar presentes. Um dia a moça encontrou algo realmente especial para o seu cara-metade. Um cão raro, ainda filhote, originário do Egito ou qualquer país daquela região. O problema é que o animal (um saluki) tinha uma especificidade estranha: era uma raça que não podia sofrer estresse e que, pelo excesso de energia, não devia ficar confinada em espaços pequenos. O apartamento do casal não era propriamente uma mansão.
O veterinário avisou:
- Trate este filhote com carinho, porque ele é muito sensível.
- Sensível?
- Sim. Nunca grite com ele...
- Tá bem.
- E o mais importante. Não se pode sequer dar um tapinha no animal. Nada de violência.
- Qual é o problema?
- É uma raça muito sensível. O cão pode ficar magoado se lhe baterem. A mágoa dura horas, semanas, meses. Ou mesmo a vida toda.
Parece brincadeira, leitor, mas pode confirmar. Os criadores de cães dizem que essa raça é mesmo assim.
O namorado até curtiu o presente nos primeiros dias. O filhote era muito brincalhão. Mas logo no primeiro mês sentiu que tinha entrado numa roubada. O cão começou a crescer e, cheio de energia, desembestava pela casa a derrubar tudo o que tinha pela frente. Mesas, cadeiras, estantes, nada era obstáculo para o animal. A raça é conhecida pela capacidade de atingir grandes velocidades.
Mas o caldo entornou quando o bicho decidiu cagar pela casa toda. Na sala, na cozinha, no quarto, em todo lugar. Menos na rua. O rapaz estava decidido a "educar" o cão com uns belos sopapos. Mas a namorada, muito atenta às recomendações do veterinário, estava sempre vigilante.
- Cuidado para não estressar o pobrezinho.
O certo é que o cão acabou por levar o casal à beira de um ataque de nervos. Os dois já não se entendiam, estavam sempre a discutir e poucos meses depois de comprarem o animal a relação estava indo pelo esgoto.
Mas o destino tem das suas. Num domingo, durante um passeio pelo parque, o cão fugiu e simplesmente disparou. Não adiantava chamá-lo de volta. O bicho parecia um Schumacher sobre patas. A moça pôs a culpa no namorado por ter deixado o animal em perigo.
- E se ele for para a rua? E se vier um carro? Corre atrás, pega ele...
O rapaz, com uns quilinhos a mais, já se preparava para perseguir o cão quando o inesperado aconteceu. O bicho simplesmente desabou e rolou pelo chão como um carro quando capota. Ficou ali mesmo, imóvel, estatelado.
O que o veterinário tinha esquecido de avisar. Os tais cães são propensos a ter ataques cardíacos. E o coração do bicho simplesmente pifou em plena corrida. Os dois namorados, claro, ficaram tristes. Um consolou o outro. E isso fez com os seus corações reencontrassem a paixão. Mas não queriam mais saber de cães. Decidiram ter um filho.
É como diz o velho deitado: "Troque o seu cachorro por uma criança pobre".
José António Baço, escritor e publicitário.


36 - Os homens comem soja, a soja come os homens

A crônica da semana passada fazia uma referência aos comedores de tofu. Foi o que bastou para que eu recebesse alguns e-mails - uns simpáticos, outros nem tanto - a reclamar que estava a ser injusto com os vegetarianos e os sujeitos que fazem a tal alimentação macrobiótica. É claro que eu estava apenas a brincar.
Mas não deixa de ser curiosa essa mania recente de muitas pessoas - em especial dos jovens europeus - que aderiram com tudo aos produtos feitos à base de soja. Leite de soja. Sobremesas de soja. Salsichas de soja. Hambúrguer de soja. Queijo de soja (o tal tofu). E o escambau de soja.
Nada contra. O problema é que há, entre essa gente toda, uns caras que aderiram a esse tipo de alimentação apenas para evitar a carne. Eu explico: outra mania aqui na Europa é a preocupação com a ecologia e, principalmente, com os direitos dos animais. Isso é bom. Mas a maioria dessas pessoas jamais viu uma taturana na vida e de fato está a defender uma causa virtual. Porque as novas gerações de europeus só conhecem os animais "selvagens" dos jardins zoológicos. Aliás, quando se fala em animais, a maioria pouco consegue imaginar além dos cãezinhos e gatinhos que têm em casa. Nunca tiveram contacto com a "territorialidade" dos animais selvagens.
Não comem carne. É justo. Mas há uma ironia. Repete-se aqui aquela constatação do princípio da revolução industrial: as ovelhas comem os homens (os homens eram expulsos da terra para dar lugar às ovelhas). Ou, no nosso caso, a soja come os homens. É que na tentativa de defender os animais, eles passam a consumir produtos de soja. Foi o que fez surgir um mercado de enorme potencial na Europa.
Mas de onde vem a soja? De países como o Brasil que, para responder às exigências desse mercado, acabam por plantar mais. E, todos sabemos, esse tem sido um dos maiores fatores de desmatamento e de avanço do homem sobre, por exemplo, o cerrado e algumas áreas amazônicas.
Os tais jovenzinhos pensam que estão a ajudar. Mas se olharmos com mais atenção é provável que seja o contrário. Para tomarmos apenas o exemplo do Brasil, a área plantada vem crescendo de forma exponencial nos últimos anos, porque a soja também é utilizada para alimentar o gado nos países ricos.
Ou seja. Os tais "ecologistas" podem estar a estimular o desaparecimento das matas e, em consequência, contribuindo para extinguir o habitat de muitas espécies animais. Tudo isso sem falar que o avanço para áreas desabitadas leva atrás mais gente, mais estradas, mais poluição.
O próprio World Wildlife Fund (WWF) advertiu, num relatório recente, que o avanço da plantação de soja na América Latina vai trazer consequências drásticas para ecossistemas únicos e para muitos povos índios. As mudanças climáticas também serão inevitáveis. E, no caso específico do Brasil, o crescimento da área plantada de soja só faz aumentar a antiga distorção na agricultura, que está voltada para as exportações em detrimento de alimentos para a população como trigo, arroz ou feijão. O que seguramente não é a melhor opção num país onde ainda há muita gente a passar fome.
É como diz o velho deitado: "Tô fu... com esses ecologistas".
José António Baço - Professor e publicitário


35 - 7º Festival do Clube de Criativos
 
PONTAPÉ DE SAÍDA - Gostei. O novo formato do Festival do CCP é promissor. E não tenho dúvidas de que a edição deste ano, apesar de alguns percalços, foi o pontapé inicial para o evento que, no futuro, deverá vir a ser o acontecimento de referência da publicidade em Portugal. É só aproveitar esta experiência para corrigir os erros e aperfeiçoar o que saiu bem. Foi bom.
QUANTA  ESQUISITICE - A conferência de Piyush Pandey, director criativo da O&M Índia, permitiu um interessante o contacto com aspectos da cultura indiana. Deu para constatar que ainda sobram muitas esquisitices no mundo. Uma delas é a proibição de mostrar beijos nos anúncios. Outra é ter que anunciar roupas interiores sem poder mostrar os corpos das pessoas. Exageros estranhos,ainda mais para quem tem o Kama Sutra.
GO HOME - Apesar de ter ouvido muitas coisas interessantes, a frase que mais chamou à atenção na palestra de Piyush Pandey veio do público. Um muar presente na plateia que, na altura das perguntas, zurrou, com um tom de enfado:
- Can we go home now?
Havia pessoas dispostas a fazer mais perguntas? Talvez sim, talvez não. Sei que Piyushi Pandey, um homem simpático e atencioso, estava ali disponível para conversar. Mas o tal cretino queria ir para casa e foi muito descortês (se era para ter piada... não teve). E acabou por mandar todos para casa.
UMA TOURADA - O ponto alto do ciclo de conferências foi mesmo a palestra de Neil French. O homem, que já foi toureiro e cantor, deu uma verdadeiro “show”. Quem esteve na Estufa Fria saiu com um sorriso de orelha a orelha. French não é só bom publicitário. Também sabe tomar conta do palco. E dos copos.
QUANDO O JAPONÊS É GREGO - Menos conseguida foi a palestra do japonês Hideki Inaba, o momento mais esperado pelos designers portugueses. O principal problema foi compreender o que ele estava a dizer. A palestra foi toda na língua japonesa e a tradução para o inglês, feita por um amigo de Inaba, deixou muito a desejar. Falou grego.
O GUIÃO À RISCA - A intervenção de Jureeporn Thaidumrong, ex-Saatchi Saatchi Bangkok e agora a criar a própria agência, também prometia. A própria Judite Mota faz a apresentação dizendo que seria um fecho com chave de ouro. Nem tanto. A dificuldade de expressão limitou a comunicação. A publicitária tailandesa usou um guião para apresentar filmes do seu país e não houve qualquer intervenção de improviso. Se bem que o público também não fez perguntas a Jureeporn. Nós, portugueses, somos um povo tímido nessas coisas.
É PRECISO USAR OS COELHOS – A semana foi marcada por uma rotina. Sempre que um orador encerrava a intervenção e abria espaço para o debate, havia um tremendo silêncio. Somos maus perguntadores ou não temos o que perguntar? Alô, Mandacaru e Judite. Os organizadores de conferências têm que usar a técnica do “coelho” (como no atletismo). É preciso ter gente do staff com algumas perguntas prontas. Para estimular o debate e também para não criar situações de constrangimento para os oradores. Para o ano já sabem.
BULLITS
- Os horários das palestras precisam ser repensados. O certo é que às 19 horas ainda há muita gente a trabalhar nas agências. Na verdade, às 19, 20, 21, 22 e por aí vai. Afinal, isto é Portugal.
- O programa de música prometia. Mas só na teoria. Na prática sobraram DJs e faltou público. Talvez o pessoal quisesse ir para casa ver a novela.
- Muita gente sequer deu o ar da graça na Estufa Fria. Muitos devem ter ficado distraídos a contemplar os umbigos.
- Fui um dos assíduos do bar, claro. Mas o fabricante daquela cerveja ruiva diz que ela deve ser servida em copo tulipa. Os copos de plástico comprometem o sabor.
- A Estufa Fria é um bom lugar para o festival.
José António Baço - Professor e publicitário


34 - Macho que é macho...

O homem está em crise. E não o homem enquanto ser humano, mas o homem enquanto macho. É que o surgimento dessa triste figura chamada homem "sensível" pôs o verdadeiro macho em xeque. Tempos bons eram aqueles do John Wayne, em que os caras palitavam os dentes com as esporas e não levavam desaforo para casa. Todo mundo sabia que macho que é macho não engole sapo, come a perereca.
Quem não se lembra do Dean Martin no filme "Rio Bravo"? O sujeito tinha sido um dos mais temidos pistoleiros de região, uma verdadeira lenda, mas por causa de um rabo-de-saia acabou mergulhando no álcool. Bebia forte e feio. Tremia mais que casa perto de linha de trem e passou a ser chamado "El Borrachón".
Mas macho que é macho confia mais numa garrafa de uísque (a melhor amiga do homem) do que nessa mariquice de psicanálise. E sabem como ele se curou do alcoolismo? Simples. Substituiu o uísque pela cerveja. Para se tornar um abstêmio, o sujeito bebia hectolitros de cerveja quente. E voltou a ser o pistoleiro mais rápido do Oeste, com a pontaria ainda melhor.
Bons tempos aqueles. Hoje em dia os atores de cinema levam anos e anos construindo a imagem de machões e fortalhões. Mas quando conseguem conquistar a confiança do público, o que fazem? Uma traição: decidem ser sensíveis e humanos. Quem não se lembra do Stallone numa ridícula comédia cripto-edipiana em que a mãe, uma velhinha gagá, era mais macho do que ele? Ou o Vin Diesel, considerado o protótipo do macho da nova geração, que no filme mais recente faz o papel de um baby-sitter a cuidar de um monte de pentelhos? E o caso mais escabroso, que é o Schwarzeneger a engravidar, ficar barrigudo e parir um moleque no filme "Júnior". Ora, façam-me o favor. Há valores a respeitar.
O problema é que hoje em dia isso de ser sensível virou moda entre os homens. Sinal dos tempos. Eu, por exemplo, não me lembro de ter qualquer amigo vegetariano na minha juventude. Quando o pessoal queria fazer uma festa, marcava logo numa churrascaria. Hoje em dia temos que ir a restaurantes tibetanos, indianos ou macro-não-sei-o-quê porque há uns caras que desmaiam ao ver uma picanha sangrando. O planeta está infestado dessa praga que são os comedores de tofu. Como o pessoal da minha geração não sabe o que é tofu, eu traduzo: é uma coisa feita de soja e que tem o sabor de isopor.
Outra coisa que não podia faltar aos homens do meu tempo era uma boa pelada. A rapaziada calçava a chuteira e, dentro de campo, não havia tempo para nhem-nhem-nhem. Ninguém tirava o pé de bola dividida e era raro o jogo em que não se tinha um hematoma como troféu. O futebol era apenas o pretexto para a cervejinha que vinha depois. Mal acabava o jogo e a rapaziada se atracava com uma loira gelada. Mas também havia muita conversa: 90% dos assuntos eram sobre mulheres, os outros 10% eram frases como "garçom, traz mais uma" ou "traz a saideira". Aliás, depois da primeira todas eram saideiras.
O que os caras fazem hoje em dia? Jogam futebol no videogame, organizam campeonatos à frente da televisão e chamam aquilo de "diversão". Nem pimbolim os tipos jogam mais, porque faz suar muito. O mundo está mesmo perdido.

Do jeito que as coisas vão, daqui a pouco haverá homens que acham normal discutir relação.
É como diz o velho deitado: "Macho que é macho não come mel, mastiga a abelha".
José António Baço - Professor e publicitário


33 - Contra a DECO, a favor do cidadão
Esta crônica de José António Baço não foi publicada na "A Notícia" 

Qual é a fronteira que separa o cidadão do consumidor?
E porquê, raios, a DECO, tão interessada nos direitos do consumidor atropela, ela própria, os direitos do cidadão?
Quem lê os classificados do jornal “Expresso” talvez tenha notado, há algumas semanas, um anúncio da DECO Proteste Editores a recrutar um redactor para os seus quadros. Dizia o texto:

FUNÇÃO:
-      A pessoa a recrutar será responsável pela redacção de notícias para as nossas publicações e edições electrónicas com base em relatórios técnicos e traduções.
 
PERFIL:
-      Formação superior em Jornalismo ou Ciências da Comunicação;
-      De preferência com experiência relevante na função;
-      Boa capacidade de redacção na língua portuguesa para revistas e internet;
-      Bons conhecimentos de inglês e/ou francês;
-      Serão valorizados conhecimentos informáticos na óptica do utilizador (aplicações Microsoft Office, InDesign, InCopy, Internet, etc);
-      Idade até 30 anos.
Se não reunir todos estes requisitos, por favor, não responda.

Deixe ver se eu entendi. Querem alguém com idade até 30 anos? E aquela conversa da Constituição da República Portuguesa que, quando se refere aos direitos dos trabalhadores, diz que não pode haver distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas?
Quero deixar claro que não sou candidato ao lugar. Mas tenho mais de 30 anos e me sinto pessoalmente agredido e desrespeitado por esse anúncio. Já estamos acostumados com as restrições, pois a maioria dos anúncios pede sempre pessoas com idade até aos 35 anos. Mas este chama a atenção por vir de onde vem.
Todo preconceito é burro, mas este é triplamente burro. Primeiro por impor o limite de idade. Segundo porque qualquer pessoa com dois dedos de testa – e que já tenha estado numa redacção de jornal – sabe que a idade não é factor relevante para um redactor. Se for, será ao contrário, porque a experiência dos mais velhos torna-os mais eficientes. Terceiro por ser de uma entidade que deve zelar pelos direitos das pessoas.
É interessante que a DECO esteja interessada em saber se eu consumo muito sal. Que se preocupe com o facto de eu praticar desporto sem declaração médica. Que me informe do risco de produtos fora da lei. Ou mesmo que constate que a justiça é cara, cega e lenta. É uma ajuda importante, claro.
Mas, ao que parece, entre os objectivos da DECO está o de “defender os cidadãos como consumidores”. E mais: também funciona como “grupo de pressão junto dos poderes públicos e dos agentes económicos”. Se é assim, então os autores do anúncio prestariam um excelente serviço à nação se folheassem os cadernos de emprego e fizessem um documento para pressionar as autoridades. Porque a maioria dos classificados traz alguma forma de discriminação, em especial no que se refere à idade.
Quem nos defende dos nossos defensores?
Esta crônica de José António Baço não foi publicada na "A Notícia" 


32 - José Alencar, o Habermas dos trópicos

Nunca pus muita fé no vice-presidente José Alencar. Não é uma coisa pessoal (não o conheço e ele sequer suspeita da minha existência), mas sou daqueles que sempre acharam péssimo o fato de o PT, para chegar ao poder, ter feito alianças que desvirtuam a sua essência. Mas agora fiquei rendido ao brilho do segundão de Lula e acho que terei de rever os meus conceitos. Porque, afinal, eu e o José Alencar já temos uma coisa em comum: também acredito que o melhor lugar para consertar o Brasil - ou o mundo - é uma mesa de bar. É uma questão que pode ser analisada sob dois pontos de vista (que, no final, acabam por convergir).
O primeiro é o da "esquerda festiva" que, usando as palavras do vice, faz as suas revoluções "nas mesas de bar com idealismo, mas tomando uma cervejinha, porque ninguém é de ferro". Não posso negar: as minhas raízes políticas estão na esquerda festiva. Aliás, lamento que hoje em dia ninguém ponha fé nas nossas idéias só porque gostamos de uma geladinha e de uma mesa de bar que, em essência, é um espaço público, aberto e democrático.
Mas dá para entender. É natural haver essa rejeição num País que foi sempre governado pela direita do regabofe, muito chegada aos espaços fechados, pouco democráticos e próprios para a trafulhice. Aliás, é impossível haver uma direita festiva, porque a direita não está interessada em resolver os problemas da nação. Quando os caras se reúnem é para falar sobre quem anda comendo a vizinha, o carro novo ou para abrir a caixa das maldades.
Mas há uma segunda forma - esta mais acadêmica - de analisar a questão. É provável que José Alencar não tenha percebido, mas esse foi um momento de grande filosofia. Talvez sem notar, ele se aproximou muito do pensamento de Jürgen Habermas. Para quem não está familiarizado com o filósofo alemão, digo apenas que é o autor da teoria da ação comunicativa. E propõe relações sociais construídas a partir do discurso e da racionalidade. Trocando em miúdos: é a proposta de acabar com o poder dos tecnocratas e devolver a palavra aos cidadãos. E, através do confronto livre das idéias, encontrar a "verdade" (ou o consenso sobre essa verdade) através do melhor argumento.
Até aí tudo permanece no plano acadêmico. Mas Habermas fez um recuo no tempo para resgatar os cafés e os salões do século 18 que, no seu entender, são os ambientes onde se formam as opiniões de maneira participativa (hoje são os jornais e a TV). É a essência do espaço público. Não deixa de ser interessante, mas se o pensador frankfurtiano vivesse no Brasil, nem seria preciso deambular no tempo. Porque a versão tropical desse saudável convívio dos cafés é muito atual: a mesa de bar.
É aqui que a esquerda festiva e o pensamento habermasiano se encontram para corroborar o vice-presidente.
Habermas diz que numa situação comunicativa ideal a participação é aberta e o diálogo é transformado em crítica. Como na mesa de bar. Diz ainda que todos têm voz e o direito a expor os seus argumentos. Como na mesa de bar. Outro aspecto é que os argumentos devem ter sempre o mesmo peso, valendo a racionalidade e não o estatuto social da pessoa que os profere. Como na mesa de bar. O filósofo pretende que as pessoas estejam livres de coerções sociais. Como na mesa de bar.
A filosofia encontra a mesa de bar. José Alencar encontra Jurgen Habermas. Isso é a democracia.
É como diz o velho deitado: "A saideira, por favor".
José António Baço - Professor e publicitário


31 - Chico Buarque e o elevador de serviço
 
Não surpreende que a recente entrevista que Chico Buarque à Folha de S. Paulo tenha provocado um rancoroso ranger de dentes em parte da burguesia e da pequena burguesia do patropi. O músico tem por norma não falar à imprensa, mas quando o faz é de forma cortante, incisiva. E não dá para deixar de refletir sobre um aspecto específico da sua análise: o sentimento de desprezo que as elites têm pelos pobres.
O inconsciente social (para usar um conceito de Erich Fromm) das elites nacionais esconde dilemas quanto à condição de brasilidade. É certo que essa gente “educada” é capaz de vestir uma camisa amarela e se misturar ao povo nos jogos da copa. Mas para elas o “ser brasileiro” é um sentimento ambíguo. Porque a identidade brasileira é formada também – e principalmente – pelo sujeito que tem um carro velho, pelo mulato ou o homem mal vestido, como destacou Chico Buarque. Os nossos ricos – salvo, claro, raras exceções – não se revêem nesse perfil.
É preciso considerar o processo histórico e social que começou com o colonialismo (lembremos que o conceito “brasileiro” como definição de nacionalidade surgiu apenas no século XVIII) e em tempos mais recentes desembocou na teoria da dependência. As elites locais têm os pés no Brasil, mas vivem o delírio de serem Primeiro Mundo. Não por acaso há tanto deslumbramento com as viagens aos Estados Unidos, para comprar tênis e outras bugigangas, ou à Europa, onde não se importam de ficar três horas numa fila de museu para tomar os tais banhos de cultura. Vivem entre mulatos, mas aspiram ser loiros de olhos azuis.
O horror à pobreza encontra a sua expressão mais emblemática na rejeição de um presidente que já foi operário, não fez uma faculdade e gosta de uma cachacinha. É perfeitamente lógico que as elites não se sintam atraídas por um partido surgido no seio dos movimentos sociais ou pelos seus líderes. O problema é que essa recusa não tem a ver com os partidos ou as idéias políticas, como seria legítimo no jogo democrático. O que está subjacente é um certo ódio de classe que torna difícil, para essa gente, aceitar que alguém vindo da pobreza ocupe o cargo mais importante da nação.
O preconceito está espalhado na imprensa, nos e-mails em série que circulam pela internet ou nas conversas de café. Os argumentos políticos – quando os há – trazem a reboque uma fraseologia que demonstra o repúdio aos pobres (o presidente incluído, claro). Foi o que ressuscitou uma semântica na linha do “quem nunca comeu mel se lambuza”. E não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos. Um artigo publicado terça-feira neste mesmo jornal (“Tapete voador presidencial”) questionava – legitimamente – a compra do novo avião pela Presidência da República. Até aí tudo bem. Mas o autor não conseguiu evitar frases que desembocam no ranço de quem não consegue esquecer as origens do presidente: “vocação burguesa e elitista para o luxo e a ostentação do ex-líder sindical”, “fascinado por suas viagens ao redor do mundo”, “uma opção pelo luxo e pela ostentação”, “ comprovado pela ação de um ex-metalúrgico”. Não é apenas o líder político a ser questionado, mas também as suas origens, o seu lugar na sociedade (de onde, ao que parece, não devia ter saído).
É o apartheid social oportunamente lembrado por Chico Buarque. Mas são palavras ao vento. É difícil falar de solidariedade a pessoas que acham normal haver elevadores sociais para os ricos e elevadores de serviço para os pobres.
 José António Baço - Professor e publicitário