Crônicas 1
por José António Baço
(Textos publicados no jornal "A Notícia")

 

30 - Para que, raios, serve um livro?

A discussão é antiga e divide opiniões. Os catastrofistas dizem que, nestes tempos de revolução digital, o livro tende a desaparecer. Os otimistas, como eu, vislumbram aí uma oportunidade de negócio. É preciso adentrar o mundo da moda e transformar o livro num artigo de decoração.
A única contra-indicação são os puristas, sempre a insistir na idéia de que os livros são para ler. Que inutilidade. Ler dá muito trabalho. E para quê? Todos sabemos que as pessoas que lêem muito tendem a ser infelizes. É uma chatice: querem mudar o mundo, a sociedade, o homem e outras milongas mais. Parece que nada está bem para essa gente.
Para evitar essas tolices, no futuro, o livro será um inofensivo objeto de decoração. Os intelectuais podem odiar, mas a idéia certamente terá a adesão dos magos da moda. E com vantagens para a economia, pois é uma forma de gerar empregos a sério para esses infelizes que vivem enfiados nas livrarias. De intelectuais passam a decoradores.
Do ponto de vista psicanalítico, os ganhos também serão imensos. É uma maneira de evitar um trauma existencial que historicamente afeta a burguesia: "para que, raios, serve um livro?"
Uma biblioteca revela sempre a personalidade do seu dono. Mas como o livro é um universo estranho para muita dessa gente, os decoradores ajudarão a escolher os títulos e autores específicos para cada tipo de imagem que se queira passar. Uma estante, um perfil.
Imagine. Os encontros do high-society vão ficar mais animados.
- "Viu as novas capas do Hemingway? Liiiiiindas. E o meu decorador já me recomendou um edição especial do 'Ulisses', do James Joyce, que tem uma capa em verde-musgo. Ele garante que vai ser o must da próxima estação."
E, claro, aquele ditado que diz que não se deve julgar um livro pela capa vai mudar.
- "O meu personal-stylist, que tem grife própria - em outros tempos ele foi intelectual e até publicou livros -, garante que as capas duras com título impresso em prata são a tendência para a primavera."
A economia só teria a lucrar com essa nova indústria. Haveria mais títulos impressos. As revistas da moda fariam reportagens sobre os livros da moda. Poderia haver desfiles de livros. Enfim, um mundo de possibilidades para o marketing.
Só haveria uma regra a obedecer. Os livros não poderiam ser abertos e folheados. É apenas uma precaução, para evitar que, com a leitura, as pessoas comecem a ter idéias estranhas e estraguem o negócio. E nem faria muita diferença, porque isso é o que já acontece hoje em dia.
É como diz o velho deitado: "Ler? Nem pensar eu fico à espera do filme".
José António Baço - Professor e publicitário


29 - Eu vi o futuro... e é chato

Você, leitor brasileiro, gostaria de viver na Europa ou nos Estados Unidos?
É fácil adivinhar que para a maioria dos brasileiros a resposta seria um inequívoco "sim". Os motivos são óbvios. Afinal, os países do dito primeiro mundo são o exemplo da sociedade que todos desejamos: melhores condições de vida, maior justiça social e respeito pela cidadania.
Mas há algumas contra-indicações. A tal sociedade de consumo - onde a maioria das pessoas pode consumir - tem as suas perversões. A verdade é que a figura do "cidadão" está declinando e em seu lugar aparece outra figura mais desejada: o "consumidor". Isso não significa que haja uma negação dos direitos do cidadão. O problema é que em sociedades abastadas tudo se torna objeto de consumo, inclusive a cidadania.
A própria palavra democracia, que em tempos se referia ao cidadão e à sua capacidade de interferir politicamente nos destinos da sociedade, hoje significa, para a maioria das pessoas, apenas liberdade de expressão. A democracia participativa deu lugar à democracia de opinião. O cidadão comum não participa da política, apenas consome os seus simulacros. Qualquer líder político que se preze só faz declarações às 8 da noite, para aproveitar as transmissões ao vivo dos telejornais. E ao cidadão comum resta o papel de consumir tais discursos e servir como número nas pesquisas de opinião que orientam as ações dos governantes.
O que se tem é uma profunda abulia política. Alijado da construção da sociedade, o indivíduo limita-se a consumir e trabalhar. A vida das pessoas está totalmente direcionada para o trabalho. À medida que cresce a preocupação em formar bons profissionais, definha o interesse em formar bons cidadãos.
Qual é o sentido dessa forma de vida? Trata-se de uma generalização (e todas elas são perigosas), mas o fato é que para a maioria das pessoas a vida desloca-se em torno de três objetos de desejo: casa, carro e, mais recentemente, férias nos trópicos.
Mas quando se conquista tudo isso, o que acontece? Ora, compra-se uma casa melhor, um segundo carro e vai-se de férias para lugares mais longínquos. E depois? Uma casa ainda melhor, um carro ainda mais caro e férias em lugares ainda mais exóticos. É o que dá sentido à existência.
A esta altura o leitor brasileiro pode perguntar: "O que mais é preciso para ser feliz?" Não verdade, há aqui uma confusão entre dois conceitos. O que se há são pessoas contentes, mas não felizes. Aliás, foi o que inspirou John Kenneth Gailbraith a publicar, há cerca de uma década, um livro chamado "A Cultura do Contentamento", em que estabelecia essa diferença.
O conservadorismo é a regra nessas sociedades, porque o contentamento produz indivíduos altamente resistentes às mudanças. Não por acaso nas últimas décadas os governos da Europa têm sido marcados pela alternância sem alternativas. Ora a centro-esquerda, ora a centro-direita. Por isso é difícil vislumbrar, nos países desenvolvidos, um futuro que não seja a lógica do contentamento.
Não fica bem chorar de barriga cheia, mas o preço que se paga pelo conforto material é um tremendo tédio existencial. Se acha que a felicidade pode ser proporcional ao "plafond" de seu cartão de crédito, então vai adorar o tal primeiro mundo. Mas se acha que a vida é mais do que isso e ainda acredita nas utopias, então vai achar isso uma chatice.
É o que torna o Brasil um lugar atraente. Uma das maiores riquezas do País é a possibilidade que dá às pessoas de intervirem na construção de uma sociedade futura. Os laços comunitários e de solidariedade ainda têm uma força enorme, ao contrário dos países ricos, onde esses valores foram praticamente aniquilados. O Brasil convida à ação, à intervenção e dá um significado mais intenso à vida. E isso é importante num momento em que o mundo procura alternativas para construir uma sociedade mais humanizada.
Que bom seria se essa sociedade surgisse nos trópicos.
José António Baço - Professor e publicitário


28 - Quero partilhar-te - que me fazes?
Aterrado e Imóvel: o Corpo Íntimo

Batman e Robin, os meus dois pobres neurônios bêbados, têm dificuldade em entender certos intelectuais do tal primeiro mundo. Os caras andam preocupados com as coisas mais estranhas e muitas vezes não se percebe patavina do que eles dizem. Tenho conversado com os meus botões e cheguei à conclusão de que só há duas hipóteses. Primeira: talvez eles estejam muito à frente e eu não tenha tirocínio suficiente para acompanhar um pensamento tão vanguardista. Segunda: por não terem com que se preocupar (por causa das suas vidinhas estáveis), eles caíram num abismo de frivolidades.
Eu, claro, aposto na segunda. Parece que isso de ter a barriga cheia tira a fibra e amolece o cérebro. O leitor duvida? Pois então eu mostro alguns temas de palestras, cursos ou teses de mestrado e doutorado que aparecem na academia aqui no velho continente. Se depender dos títulos, podemos concluir que o mundo real - de pessoas que sofrem e vivem na exclusão - não existe para essa gente.
Que tal, por exemplo, ouvir a palestra "Quero Partilhar-te - Que me Fazes? Aterrado e Imóvel: o Corpo Íntimo", apresentada num seminário que reuniu intelectuais europeus? Fico a imaginar o que a autora quer dizer com "quero partilhar-te"? Parece ser um convite para uma suruba. Mas ela não deve ser grande coisa nesse capítulo porque diz que o corpo íntimo dela está aterrado e imóvel. E todo mundo sabe que no sexo uma mexidinha sempre ajuda.
Outra palestra, proferida no mesmo seminário, atende pelo nome de "Redes Metafóricas em Lexia to Perplexia". É provável que haja, em todo o planeta, uma ou duas pessoas que saibam do que ela está falando. E devem ser os mesmos que curtem temas como "Os Ciborgs e os Corpos Artificiais". Cá para nós, chega a ser imoral que, num mundo onde ainda há gente morrendo de fome, alguns acadêmicos ocupem todos os seus neurônios discutindo o Robocop e o Frankenstein. Os caras simplesmente dão uma banana para o mundo real, onde vivemos eu e o leitor.
E já que estamos no campo da corporalidade, você leria uma dissertação que atende pelo nome de "Do Corpo Equívoco: Reflexões sobre a Verdade e a Educação nas Narrativas Epistemológicas da Modernidade"? Caramba. Se eu não consigo ler sequer este singelo título, como poderia entender a tese na íntegra? É um autêntico nó no cérebro. Mas há outras. Que tal encarar "O Homo Educandus, Ser Agônico ou Ser para a Felicidade? O Contributo da Educação para o Desvelamento da Intencionalidade Própria do Homem Enquanto Ser-em-Situação-Limite." Ufa! Ler esse título num único fôlego é quase uma tentativa de suicídio. Isso não é uma tese de mestrado, é uma maldade. O que aponta para outra leitura, sob o título de "O Absurdo do Mal e o Lugar da Práxis - Contributos da Antropologia Simbólica para a Razão Pedagógica". É auto-explicativo: o absurdo do mal é tentar imaginar o que isso quer dizer.
Mas talvez o problema seja meu, porque não consigo captar o excesso de criatividade dessa gente toda. Falha nossa. E para tentar consertar essa situação, vou começar a ler uma dissertação de mestrado que certamente dará todas as repostas: "Criatividade Intempestiva - Para repensar a criatividade em Carl Rogers a partir dos contributos de Gilles Deleuze". Ou seja, um intelectual, para repensar a criatividade de outro intelectual, precisa do contributo de um terceiro intelectual. Não entendeu? Junte-se a Batman e Robin.
É como diz o velho deitado: "É melhor proibir as bebidas alcoólicas nas universidades. Os caras estão todos bêbados".
José António Baço - Professor e publicitário


27 - A virgem e o rapaz louco para dar um créu

Depois de usar todas as estratégias e malandragens sem sucesso, o garanhão faz a última investida para tentar chegar ao tesouro escondido da coroa. É uma mulher muito dura.
Rapaz – É jogo duro, tu não abre a guarda. Aliás, não abre nada, parece que tem cadeado nos joelhos.
Condoleeza – Acha que eu vou abrir as minhas defesas assim, sem mais nem menos. E sei que você só está interessado em penetrar a minha linha de frente.
Rapaz - Poxa, Condi, pensei que tu fosse mais moderninha. Ainda mais porque todo mundo diz que tu é uma mulher precoce. Não foi tu que entrou para a universidade aos 15 anos de idade?
Condoleeza - Umas coisas acontecem mais cedo, como entrar para a universidade. Outras demoram mais, como abrir mão do meu tesouro. Eu preciso me sentir segura.
Rapaz - Mas isso que tu quer segurar já tá fora de moda. Não é à toa que todo mundo fica te gozando porque tu não consegue marido.
Condoleeza - Eu já disse que tem a ver com a educação que eu recebi da minha mãe. Só depois de casar, meu querido.
Rapaz - E tu acha que faz sentido isso de ser virgem aos 50 anos de idade? Isto é o século 21, mulher. Tu vai deixar a coisa ficar criando teia de aranha?
Condoleeza – Não seja grosseiro.
Rapaz - É o povão que tá falando, eu não tenho culpa. E dizem mais. Dizem que tu é mal-amada.
Condoleeza – Mal-amada? Eu? Muito pelo contrário. Há quem me adore de paixão: o pessoal da Chevron, da Charles Schwab e do J.P. Morgan. Ah... e a família Bush também.
Rapaz – Hummm... os Bush gostam muito de sexo.
Condoleeza – Acho que estás enganado.
Rapaz – Enganado? Essa gente anda por aí a f... com a nossa paciência. Isso é claramente sexual.
Condoleeza – Esta conversa está a tomar um rumo estranho.
Rapaz - Relaxa, Condi, não sejas moralista. Tira esse tailleurzinho e vem gemer sem sentir dor.
Condoleeza – Você só pensa em sexo? Eu já disse que estou à espera de um momento especial, de algo verdadeiramente excitante.
Rapaz – Algo verdadeiramente excitante? Para ti?
O rapaz agarra Condoleeza com força, coxa contra coxa, peito contra peito, e sussurra ao ouvido:
Rapaz - Invadir o Irã...
Condoleeza (a revivar os olhos) – Hummm... sim, sim...
Rapaz - Aniquilar a Coreia...
Condoleeza (pronta para se entregar) – Hummm... é tão bom. Mais, mais...
Rapaz - Derrubar o Fidel...
Condoleeza (dando adeus a meio século de recato) – Ai... não pára. Continua, meu garanhão.
Rapaz - Fazer desaparecer o Chávez...
Condoleeza (gemidos profundos) - Oh... yes. Oh... yes...
Rapaz - Dar um susto no Lula?
Condoleeza (no auge) – Yes, yes, yes, yeeeeeeees.
E os dois, saciados, caem cada um para o seu lado.
É como diz o velho deitado: “Foi bom para você também?”
José António Baço - Professor e publicitário


26 - E se os ventos mudarem?

A história ensina. A humanidade é que insiste em não aprender.
Qualquer pessoa atenta ao desenvolvimento da economia mundial ao longo dos séculos sabe que não há modelos (nem modos de produção) definitivos. Mas hoje em dia o ideário neoliberal, impulsionado pelas diretrizes de grandes instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) ou o Banco Mundial, pretende se assumir como caminho definitivo e sem alternativas.
A economia foi convertida num campo de leis universais e inquestionáveis que os governos devem seguir com a máxima reverência. Aliás, ao contrário do que muitos pensam, a grande vitória do neoliberalismo não aconteceu no nível econômico, mas sim no plano cultural. E consiste justamente em impor a idéia de que não existe uma alternativa viável. É a gênese do "pensamento único": fazer o mundo acreditar que o caminho certo é aquele apontado pelos ricos (os países do Hemisfério Norte, que detêm 85% das riquezas mundiais). É uma forma de totalitarismo que não admite dissidências. Qualquer voz discordante é rejeitada a priori e tratada como atrasada.
Mas os ventos podem mudar. Por ironia, basta lançar um breve olhar sobre a história para ver que o próprio neoliberalismo, que tem a sua "origem" no período após a Segunda Grande Guerra, viveu quase na penumbra até ao final dos anos 70 e início dos anos 80. E só ganhou força quando Margareth Thatcher, recém-chegada ao governo, impôs o modelo na Inglaterra. E depois Reagan. E depois Kohl. E depois quase toda a Europa deu uma guinada à direita. E o resto do mundo, em especial os países pobres, não teve outra alternativa senão aceitar esse destino (todos sabemos que é grande o risco de ir contra).
Hoje o projeto neoliberal é hegemônico, mas amanhã o modelo poderá - e deverá mesmo - ser outro. Primeiro porque nada é definitivo. E depois porque ninguém pode acreditar que um sistema baseado na exclusão de 80% da humanidade possa durar para sempre. O problema é que as políticas neoliberais trilham um caminho de difícil retorno. Porque o que temos visto ao longo dos últimos tempos é o desmanche do Estado e o crescimento do poder das corporações. Qualquer governo, em qualquer parte do mundo, embarcou na onda das privatizações. Vivemos todos sob um mito (aqui no sentido de Barthes): privatização é modernidade, estatização é atraso.
Aliás, sob esse aspecto o Brasil e os países do chamado terceiro mundo queimaram etapas. Não aproveitaram os benefícios do chamado welfare state, mas já sofrem com os males da welfare reform.
Há perguntas que são incômodas, mas devem ser feitas. O que vai acontecer se a história apontar para outros rumos? E se a tendência for uma volta ao homem, ao social, e houver uma inversão nessa tendência de crescimento do poder do mercado? Como será possível recompor o patrimônio do Estado que, em última instância, pertence aos povos? O que vai acontecer com aquela hidroelétrica privatizada? Ou a companhia telefônica? Ou a siderúrgica? E mesmo com os sistemas públicos que foram se tornando privados, como a saúde, educação, habitação, transportes ou mesmo a cultura? Há o risco de ser um processo turbulento.
É legítimo perguntar, apesar do pensamento único e do estigma que recai sobre todos aqueles que o questionam. Porque há um indisfarçável mal-estar e anda muita gente triste nas ruas.
José António Baço - Professor e publicitário


25 - Tão longe, tão perto

O fato é que há cada vez mais brasileiros em Portugal (já superam os 100 mil, o que representa 1% da população do país) e isso acaba por provocar algumas "acomodações" no mercado de trabalho. E em tempos de crise econômica esse fato adquire alguma expressão. Mas o povo português não reclama, salvos casos pontuais e pouco significativos.

O problema é que a reprodução desse estigma do "brasileiro" muitas vezes é feita por pessoas cultas e influentes que, em teoria, deveriam ser avessas a esse tipo de atitude. É a forma refinada que as elites pensantes – e com espaço na mídia – encontram para substituir o popular "volta para a tua terra, pá!".

Seria possível tentar encontrar inúmeras explicações para o fato, mas basta apenas uma. É uma questão de geo-exclusão. É a nossa incapacidade para olhar o outro "terceiro-mundista" (em que pese a carga ideológica da expressão) como um igual. Há também um certo atavismo que remete à nossa história colonial. Nós, portugueses, somos os colonizadores. Nós, portugueses, somos um povo europeu, culto e moderno. E não podemos agora ser colonizados por essas hordas de botocudos que vêm do tal terceiro mundo.

O pior é que muitos desses brasileiros não se contentam com o lugar que lhes reservamos nas obras da construção civil. E não gostamos do estrangeiro que nos olha nos olhos. O problema (filosófico, bem visto) é que olhar o outro obriga a olhar para nós próprios. Um exercício que traz à tona aquela realidade que estamos sempre a varrer para debaixo do tapete. Não somos assim tão modernos. Nem tão cultos. Parecemos uma espécie de semi-periferia na Europa. De colonizadores do passado passamos a colonizados culturalmente pelas grandes potências. E chegamos à conclusão de que não estamos assim tão longe do terceiro mundo.

É isso o que incomoda nos estrangeiros: eles nos obrigam a olhar para nós próprios. E nem sempre gostamos do que vemos.

José António Baço - Professor e publicitário


24 - Crime de lesa-testículo

A descoberta da fotografia é uma grande sacada. Mas, como todas as invenções, pode se tornar uma arma perigosa. Foi assim com o avião, que acabou usado para a guerra. O automóvel, inventado para ser um simples meio de transporte, tornou-se uma espécie de prótese peniana para os machos. O mesmo vale para a televisão, que virou uma poderosa arma para emburrecer as massas.
Também é assim com as fotos. Quando mal usadas, elas podem substituir o mais poderoso dos gases soníferos. E não venha dizer, caro leitor, que nunca passou por uma daquelas intermináveis sessões em que um amigo ou parente – sempre com um brilhozinho nos olhos – insistiu em mostrar as fotos da última viagem. É um inferno.
- Olha, aqui é o hotel onde nós ficamos em Uagadugu.
- Uagadugu? Hummm, hã, hummm, hã.
- Dizem que é onde o Bin Laden está escondido.
- Bin Laden? Hummm, hã, hummm, uahhh.
Há também aqueles que adoram mostrar álbuns de família. E o pior: de uma família que não é a nossa, de gente que não conhecemos e que não tem qualquer interesse.
- Olha, o meu tio Fritz, na casa dele em Schroeder.
- Schroeder? Hummm, hã, hummm, hã.
- Esta é a tia Frida. Ela faz um apfelstrudel fantástico.
- Apfelstrudel? Hummm, hã, hummm, uahhh.
Mas os campeões do tédio hediondo são os pais-coruja que não perdem uma chance de mostrar as fotos dos filhos. É impossível escapar. Os pimpolhos estão por toda parte: nas telas de computador, nas carteiras das mães ou em álbuns escrupulosamente organizados.
Mesmo no meio das conversas mais inocentes, lá estão as criaturas prontas a atacar.
- Será que o dólar cai?
- Cai. A minha filha hoje acordou com dor-de-barriga e isso é sinal de que cai. Por falar nisso, já viu as últimas fotos dela?
E desatam a mostrar intermináveis álbuns. Mas se antigamente já era mal, agora com as máquinas digitais (mais uma invenção do demo) a chateação cresceu em escala geométrica. Aliás, o sujeito que inventou as tais câmaras merecia ser processado por crime de lesa-testículo, porque agora as pessoas enchem o saco em tempo real.
O que há de gente que adora mandar fotos dos filhos pela Internet é uma coisa de loucos. Estou na lista de e-mail de uma senhora que mal conheço (tive apenas umas poucas reuniões de trabalho) e tem o estranho hábito de quase todas as semanas entupir o correio eletrônico das pessoas com fotos das pimpolhas.
- Aí vão fotos recentes das minhas lindinhas.
É natural que os pais achem os filhos bonitos. O problema é que isso nem sempre é verdade para os outros. As duas lindinhas em causa, por exemplo, são crianças com os seus 12 ou 13 anos, mas com um detalhe: têm o peso do Mike Tyson e são a prova de que a beleza não freqüenta aquela casa. O pior é que, pelas leis da boa educação, a gente não pode dizer essas coisas aos pais.
E já que falamos em invenções, algum cientista podia criar um desconfiômetro para dar a esses pais. Era uma forma de nos pouparem de tanta corujice.
É como diz o velho deitado: "Fiz um trato com a minha mãe. Ela dizia que eu era bonito e eu esquecia que ela era mentirosa".

José António Baço - Professor e publicitário


23 - O sexo é a solução (carta aberta)

Srs. Bin Laden e
George W. Bush.
Escrevo esta carta aberta para dizer que o mundo está com o saco cheio dessa briga de vocês. Ninguém mais tem paciência para aturar um maluco de turbante disposto a destruir tudo em nome de crenças da idade da pedra lascada. E nem para um presidente meio bocó, cercado de um bando de arrivistas, que está sempre com o dedo no gatilho, pronto a disparar sobre quem não concorde com a tal "democracia" (a democracia da pólvora, claro).
A gravidade da situação leva-me a fazer uma sugestão para acabar com essa palhaçada de guerras, atentados e o escambau. E nem é preciso haver encontros diplomáticos, entendimentos políticos ou reuniões das Nações Unidas. A solução é muito simples: o sexo. Parece que os senhores não sabem, mas os especialistas dizem que o sexo freqüente traz inúmeros benefícios para a saúde física e mental. É um santo remédio porque faz as pessoas mais felizes e ajuda a melhorar o convívio social. É disso que os senhores precisam.
Os psicólogos dizem que as pessoas ativas sexualmente são mais equilibradas e estáveis. Os senhores podem não levar muito a sério, mas a Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que a atividade sexual satisfatória é um dos fatores importantes para calcular o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) dos povos. Perceberam? O sexo é essencial para o desenvolvimento da civilização.
Os senhores estão sempre a tomar decisões difíceis. Um, que tem mente terrorista, fica a imaginar formas de destruir lugares e matar inocentes. Outro, que tem mente democrática, fica a imaginar formas de destruir lugares e matar inocentes. É muito estresse. Pois então fiquem sabendo que o sexo é um poderoso antiestressante, tão importante para a saúde quanto uma boa alimentação e a prática de esportes. Não sabiam?
Aliás, vocês poderiam ganhar um lugar na história servindo de exemplo para humanidade. Era só propor aos seus seguidores: "Façam amor, não façam guerra". E já imaginaram a economia que o sexo produziria nos sistemas de saúde dos países em todo o mundo? Mais sexo, menos doentes. Era perfeito. Ah... e tem mais. Os mesmos especialistas garantem que o sexo tem uma influência muito grande na beleza das pessoas, porque faz bem para a pele (inclusive combate a celulite). O sexo também ajuda a tonificar os músculos. Seria uma forma de gerar economia para as famílias, pois haveria uma diminuição no número de cirurgias plásticas, menores gastos com cremes anti-rugas e menos horas de sofrimento nas academias.
Portanto, meus senhores, em vez de ficarem por aí a pensar em abrir a caixa das maldades, aproveitem a dica: que tal aproveitar este domingo, dar uma cafungada no cangote da "nega veia" e iniciar uma nova era de amor. Amor e paz. Porque se os senhores tiverem bom sexo, vão ficar mais felizes e certamente não vão mais ter tempo para explodir com a nossa paciência.
É como diz o velho deitado: "Você acredita em sexo à primeira vista?"
José António Baço - Professor e publicitário


22 - Em inglês dói menos

 Qualquer idiotice dita em inglês fica logo parecendo uma coisa do outro mundo. Mesmo as piores sacanagens ficam parecendo obras de anjinhos. Os gurus da economia, por exemplo, usam e abusam. Duvida? Então vamos ver alguns exemplos de coisas que, em inglês, assumem significados quase inofensivos.
Downsizing – Na língua dos administradores significa uma inocente redução dos níveis hierárquicos de uma empresa. Mas em linguagem de gente quer dizer que algum gestor inepto não soube fazer o seu trabalho e, para salvar o couro, teve que fechar departamentos e demitir uma porrada de gente. Há uma diferença entre dizer “o cara demitiu funcionários” ou “o administrador procedeu a um downsizing na empresa”. Em inglês, o sujeito até parece um Einstein.
Outplacement – Isso acontece depois das demissões do tal downsizing. É quando se tenta recolocar um ex-trabalhador numa outra empresa. Dito em língua de gente simples quer dizer: “Nós te demitimos e estamos nos cagando para ti. Mas somos simpáticos e até indicaremos um consultor para te orientar. Também vamos escrever umas cartinhas para levares a outras empresas. No fim vais achar que nós, que te demos com o pé na bunda, somos mais bonzinhos que a Madre Teresa de Calcutá”.
Just In Time – É uma técnica das fábricas que consiste em ter em estoque apenas os produtos necessários e na hora necessária. Pretende o fim dos desperdícios e a melhora contínua dos processos produtivos. Traduzindo, é mais ou menos como dizer aos empregados: “trabalhem como robôs e cumpram os prazos, nem que tenham que fazer horas-extras. Ou estão ferrados”.
ASAP – É o acrônimo da expressão “as soon as possible” (tão rápido quanto possível). Na verdade significa apenas que algum chefe incompetente não fez a parte dele no tempo certo e agora o atraso vai estourar nas mãos de quem realmente tem que fazer o trabalho.
Empowerment – Significa dividir o poder de decisão com o grupo de trabalho. É uma forma de um superior se livrar de tarefas chatas e passar a batata quente para as mãos dos subordinados. E o chefe sempre tem alguém para pôr a culpa se a coisa sair mal.
Benchmarking – É tomar decisões a partir do exemplo de outras empresas. Ou seja, quando um administrador não tem a menor imaginação, ele copia os outros. Copiar é mau. Mas um cara que faz “benchmarking” é capaz de acabar candidato ao Nobel de Economia (que, por sinal, é outra fraude descarada, pois só há Nobel de Física, Química, Medicina, Literatura e Paz).
Outsourcing – É a tal “terceirização”: uma empresa compra soluções a outra empresa. Ou seja, demite os seus funcionários (que tinham custos laborais e outras coisas mais), perde o know-how acumulado e passa a comprar de outro sujeito que produz com custos menores.
Brainstorming – Tempestade cerebral. Os marqueteiros adoram os tais brainstormings, reuniões onde se gastam horas e horas a dizer besteiras e a não fazer nada. Mas parece que estão trabalhando. É muito “storming” e pouco “brain”. É como diz o velho deitado: “Fool me. I like it (mingana que eu gosto”).
José António Baço - Professor e publicitário


21 - É F.O.D.A.

Diz a lenda que os espanhóis têm imensas dificuldades em falar línguas estrangeiras. Há explicações simples - e simplificadoras - para o fato. Uma delas aponta direto para as dublagens dos filmes exibidos no cinema e na televisão. Dizem alguns especialistas - e aqui a análise serve também para o Brasil - que a dublagem, por retirar os diálogos originais, extingue o contacto com a língua do filme e torna as pessoas mais preguiçosas no sentido da sua compreensão. Tem toda a lógica.
Mas há quem defenda as dublagens como forma de defesa da língua nativa. O fato é que nuestros hermanos têm a tradição de pôr tudo em espanhol, desde os filmes até aos nomes próprios. É uma das razões para que, vez por outra, eles sejam motivo de risos para os parceiros europeus. Uma das gozações mais comuns é, por exemplo, o fato de o grupo britânico Rolling Stones ainda hoje ser conhecido por muitos espanhóis como Piedras Rolantes.
Mas um dos casos mais hilariantes vem do marketing. Qualquer pessoa familiarizada com esta área já ouviu falar na Análise SWOT, uma ferramenta de gestão usada pelas empresas para avaliar estratégias de negócio. O acrônimo SWOT resulta das iniciais de quatro palavras do inglês: strenght (força), weakness (fraqueza), opportunity (oportunidade) e threat (ameaça).
A análise SWOT tenta identificar os pontos fortes e os pontos fracos de qualquer empreendimento empresarial. E é um recurso muito utilizado pelos gestores por ser um esquema fácil de aplicar e de resultados confiáveis.
Em tempos de mercado global, é claro que os espanhóis também utilizam esse tipo de abordagem. Mais compreensível ainda é que tenham traduzido tudo para o espanhol. Não faz diferença para eles, mas para os falantes da língua portuguesa o resultado ficou bastante curioso.
A tradução das palavras originais do inglês SWOT ficou assim: fortalezas, oportunidades, debilidades e amenazas. E eis, caros senhores, que temos o método de análise F.O.D.A. (também conhecido como o método D.O.F.A.).
Dizem os especialistas que o método F.O.D.A. é um instrumento tão simples e eficiente que pode ser usado por todas as pessoas e em todos os departamentos de uma organização. Faz sentido. De fato, a utilização do método F.O.D.A. pode não aumentar a produtividade nas empresas, mas certamente vai tornar as pessoas muito mais felizes.
É como diz o velho deitado: "O marketing é a mais antiga das profissões. Ou acha que a serpente no paraíso não era uma marqueteira?"

José António Baço - Professor e publicitário


20 - A bomba da viadagem

Li, reli e treli, mas foi difícil acreditar na notícia publicada num jornal aqui do velho continente. Documentos secretos divulgados recentemente revelavam que o Pentágono teria considerado a hipótese de fabricar uma bomba sexual. Mas não tirem conclusões apressadas. Enganam-se as senhoras mais espevitadas que já estão a pensar numa espécie de sex bomb, um homem que seja uma autêntica máquina na cama. O objetivo era mesmo criar uma arma de guerra.
A tal bomba seria uma arma química não-letal, mas de forte efeito moral. Ou imoral. A proposta consistia em desenvolver uma espécie de bomba-afrodisíaco que faria os soldados atingidos nas linhas inimigas ficarem sexualmente atraídos uns pelos outros. Acredite se quiser.
Não dá para imaginar a fórmula dessa poção do amor, mas ia ser uma loucura com a viadagem instalada nas trincheiras. Imaginem, por exemplo, uma cidade invadida por terroristas barbados, todos apaixonados uns pelos outros e a andarem de mãozinhas dadas. Ou o Bin Laden a cafungar no pescoço do Saddam Hussein. Que tal o Mullah Omar a fazer cafuné no Kim Il Sung? É de tirar o turbante para essa idéia genial. O eixo do mal iria se tornar o eixo das malucas.
Aliás, a tal arma teria efeitos culturais e merece uma reflexão: o que ia acontecer com aqueles fundamentalistas doidões que acreditam encontrar 75 virgens no paraíso? Não haveria mais homens-bomba, mas "boiolas-bomba" dispostos a morrer para encontrar 75 marmanjos de barba rija no outro mundo.
Guerra é guerra. Quando se lê a reportagem percebe-se que a engenhosidade dos militares americanos não tem limites. Não contentes em espalhar a viadagem nas hostes inimigas, os sujeitos estavam sempre dispostos a abrir a caixa das maldades. Outra das formas para estropiar os inimigos era a criação de armas - também químicas - que atraíssem vespas, ratos e outros bicharocos para as posições inimigas. A ideia era tornar impossível a permanência nesses lugares e conquistar terreno no campo de batalha sem nenhum esforço.
Sinal dos tempos: guerras feitas com bichos e bichas.
Os caras do Pentágono são muito imaginativos. Segundo a reportagem, um dos projetos apresentados pretendia criar um produto capaz de causar um tremendo - e duradouro - mau hálito no inimigo. A idéia era detectar os soldados que tentassem passar disfarçados entre os civis. Já fico a imaginar um ponto de checagem. Em vez de passaporte e carteira de identidade, o teste do bafômetro: os tipos teriam que bafejar na cara dos fiscais, que receberiam treino especial para reconhecer o bafo-de-onça.
O problema é que poderia haver algumas contra-indicações. Porque se essa bomba fosse usada ao mesmo tempo que a primeira - a que transformava todos em viados - o caldo ia entornar. É que ia criar muitos problemas de relacionamento. As bichas iam ficar muito chateadas, porque não há nada mais broxante do que a tal da halitose. Já imaginou um terrorista barbudo a perguntar para o outro:
- Queridinha. O que foi que você comeu? As meias do Ariel Sharon?
Parece piada, mas segundo o jornal essas propostas foram feitas em 1994 por um laboratório da Força Aérea do Ohio. É por coisas como estas que os Estados Unidos são a maior potência bélica do planeta. Os milicos são pura imaginação.
É como diz o velho deitado: "Em época de guerra qualquer buraco é trincheira".
José António Baço - Professor e publicitário


19 - Partido dos colaboradores

Meus amigos, tenho más notícias: o trabalhador morreu. E o que mais me chateia é que, em parte, ajudei a matá-lo. Mea culpa. Quem, como eu, tenha trabalhado em comunicação empresarial nas últimas décadas vai se lembrar do momento do seu assassinato. Foi quando os empresários decidiram extirpar a palavra trabalhador do dicionário das empresas, substituindo-a por essa forma abjeta chamada "colaborador".
Quem não se lembra? Os jornalistas que trabalhavam nas publicações empresariais estavam proibidos de usar o termo trabalhador (e ainda hoje estão). Foi assim que ajudamos a matar o pobre coitado, porque nunca mais falamos nele e o relegamos ao esquecimento.
Não é preciso nenhum grande exercício mental para entender a lógica. "Trabalhador" é uma expressão que vem do discurso de classes. É um sujeito incômodo, que luta pelos seus direitos, que se organiza, faz greve. O colaborador colabora. Numa economia de mercado, nada mais natural que exista uma economia do mercado lingüístico. Quem detém o poder econômico, comunicacional e político pode impor o seu logos. É um fenômeno que podemos chamar "logocracia". O poder da palavra. O poder pela palavra.
É célebre o diálogo entre Alice e Humpty Dumpty, em que o escritor Lewis Carrol sintetiza, de forma despretensiosa mas acutilante, a questão da relação entre linguagem e poder:
- Quando eu emprego uma palavra, ela quer dizer exatamente o que me apetecer... nem mais nem menos - retorquiu Humpty Dumpty
- A questão é se você pode fazer com que as palavras queiram dizer tantas coisas diferentes.
- A questão é quem é que tem o poder... é tudo - replicou Humpty Dumpty.
A conclusão é óbvia. Os donos do poder têm a capacidade de fundar o vocabulário do mundo. Se linguagem e pensamento são indissociáveis, então a manipulação da linguagem será a manipulação do pensamento. O "colaborador" é filhote dessa contrafação. O processo é muito eficaz. Tanto que a expressão foi assimilada pelo próprio trabalhador, que já se autodefine orgulhosamente como "colaborador". E colabora, claro.
Isso facilitou sobremaneira a vida dos donos do poder. Se em outros tempos era preciso baixar o cacete para submeter os trabalhadores, agora com a utilização de um simples truque lingüístico (de fundo ideológico, claro) deu-se um passo decisivo para atingir esse objetivo. Ou acha que não? Então imagine a situação. Um Partido dos Trabalhadores (PT) que preserve a consciência de classe sempre poderá fazer muito barulho. Mas um Partido dos Colaboradores seria dócil, o paraíso para os fundamentalistas do mercado. É como diz o velho deitado: "É claro que eu acredito em você, Pinóquio".

José António Baço - Professor e publicitário


18 - Já pegou no mastruço?

Há pessoas que gostam de palavras. Uma simples passadinha pelo dicionário pode ser uma viagem muito prazerosa: abro ao acaso e aterrisso em plena letra "M". Lá no rodapé da página aparece uma palavra que salta aos olhos: "mastruço". Nem tento saber qual é o significado. Afinal, o divertido é tentar imaginar as hipóteses. Penso com os meus botões:
- Deve ter alguma relação com mastro. Parece lógico.
A imaginação voa e novas associações vão surgindo:
- Talvez um mastro grande. E, para o povão, pode ter uma leitura mais malandra e significar, por exemplo, um pênis mastodôntico.
Já imaginava os cochichos num vestiário feminino, com as mocinhas a falarem do mastruço do centroavante do time de futebol. E até podia ver a reação escandalizada de uma senhora bem comportada ante a pergunta:
- Já pegou no mastruço alguma vez?
Leio o significado e... grande decepção. Mastruço é apenas uma inocente plantinha. Que coisa mais sem graça. O cérebro se recusa a aceitar a explicação do dicionário e insiste em misturar ficção e realidade.
- Uma plantação de mastruços é um campo cheio de plantas em formato de pênis.
Uma palavra assim não pode ser inocente. Afinal, há muitos indícios de sacanagem, na pronúncia, na grafia. Viro a página e tenho a confirmação: a seguir vem "masturbação". Ora, é a prova necessária para desmascarar o tal mastruço.
- Está na cara que tem algo a ver com pênis. Se está entre mastro e masturbação, é mais do que óbvio.
Os olhos percorrem o resto da página à procura de mais revelações que justifiquem a tese. Nada. Apenas descubro uma ciência muito estranha, a "mateologia". É o estudo "que se fundamenta em coisas que a inteligência humana não alcança, tornando-se inútil". Heureca. Agora entendo algumas pessoas que só sabem falar para o próprio umbigo e usam uma linguagem inatingível: são "mateólogos". Inúteis, portanto.
Vou adiante no dicionário e, na letra S, dou de cara com uma palavra para lá de estranha: "sinizese". Não é uma palavra, mas uma tortura para a língua. Leia alto, caro leitor: si-ni-ze-se. Pois eu acho que deve ser a palavra mais difícil de pronunciar na língua portuguesa. Se bem que o "sinistrorso", imediatamente acima na mesma página, também não é mamão com açúcar. Mas sinizese é uma palavra que parece estar gozando com a cara da gente. E ainda obriga a perambular pelo dicionário para saber o significado: é "prolação de duas vogais distintas numa só emissão...". Prolação? E lá vou eu à letra P em busca de novas luzes.
A primeira palavra que encontro é "prolixo", que significa difuso, fastidioso, enfadonho. Talvez seja uma dica para terminar esta crônica.
É como diz o velho deitado: "Se a pátria é a língua, então eu sou um exilado".
José António Baço - Professor e publicitário


17 - É isso que vocês chamam civilização?

Primeiros dias de 2005. Parece o futuro, mas alguns acontecimentos demonstram que estamos na idade da pedra. Dá para acreditar que realmente somos civilizados?

VIOLAÇÕES - Como pode o mundo fazer de conta que desconhece o estupro de centenas - talvez milhares - de mulheres do Darfur Ocidental, no Sudão, pelos Janjawid, milícias árabes e exército do governo? O que dizer dos deslocados (quase um milhão de pessoas) e das milhares de pessoas que já morreram ou ainda vão morrer? E há por aí uns burocratas a decidir se é um genocídio ou não.

INSANIDADE - O exército de Israel que, sob a alegação de defender a própria segurança, dispara com armas pesadas sobre crianças palestinas armadas com simples pedras. E o mundo silencia.

VENENO - O envenenamento do líder ucraniano Viktor Iuschenko é algo em que só se acredita porque as fotos do homem - com o rosto desfigurado - estão a correr o mundo. É incrível que ainda hoje se use o envenenamento como arma política.

SILÊNCIO - O silêncio sobre as mortes e torturas praticadas durante a ditadura de Augusto Pinochet, que só agora vieram a público. É incompreensível que pessoas ditas civilizadas tenham ficado caladas durante tanto tempo (ele deixou o poder há 15 anos). Agora, já gagá e perto da morte, é certo que não vai pagar por isso. E o pior: há gente a querer que ele seja enterrado com honras militares. Honra?

AIDS - Quase 70 milhões de africanos poderão vir a morrer nas próximas duas décadas por causa da Aids (fala-se em quase 10 milhões de pessoas contagiadas neste momento) sem que nada - ou muito pouco - seja feito. Os problemas não se restringem à morte dessas pessoas, mas também à destruição dos sistemas produtivos. A conseqüência será mais miséria, mais fome e mais mortes. Como pode o primeiro mundo "civilizado" - onde se vive uma cultura do supérfluo - permanecer impassível ante a tragédia anunciada?

ECOLOGIA - Os países do tal terceiro mundo, como o Brasil, recebem indústrias pesadas em troca de alguns empregos e uns presentinhos bolados pelos marqueteiros em ações de charme. Mas todos sabemos que essas indústrias exploram, destroem e depois "deslocalizam" (ou seja, dão uma banana para o país e vão procurar outro lugar para explorar).

CONTRADIÇÃO - O mundo capitalista rejeita o regime comunista de Cuba, por ter à frente um ditador, pela falta de liberdade e por não haver respeito pelos direitos humanos. O mesmo mundo capitalista ama de paixão o regime comunista da China, liderado por ditadores, onde não há liberdades e os direitos humanos são atropelados (10 mil execuções por ano não são para brincar). Esse neoliberalismo é uma coisa muito estranha.

AUTISMO - Um ano depois da prisão de Saddam Hussein, a tão propalada vitória dos Estados Unidos não aconteceu. As tropas americanas somam 1,4 mil mortos e a maioria dos soldados já nem se lembra por que está nessa guerra. Quanto aos iraquianos, o mundo nunca saberá quantos civis e militares perderam a vida. O caos está instalado: não há atendimento de saúde, transportes, segurança e água e luz são precários. Tudo isso em nome de uma democracia que tortura prisioneiros, cria as próprias leis de exceção (Guantanamo é logo ali) e ignora o resto da humanidade. E os líderes do resto do mundo ficam com o rabinho entre as pernas.

É como diz o velho deitado: "Se isso é ser civilizado, eu quero voltar para a minha caverna".
José António Baço - Professor e publicitário


16 - Coisas que eu não discuto - Cinema

Gostei do "Rambo - First Blood". Pronto, confessei. Imagino que ao lerem esta descarada heresia, os intelectuais e os críticos de plantão fiquem a saltar dentro das calças. Mas alguém ainda liga para os intelectuais e os críticos? O fato é que eu realmente gostei (estou falando apenas do primeiro, o que deu origem à série). Podia explicar os motivos, mas a citação de um filme do Stallone é apenas uma provocação.
Eu não discuto cinema e tenho os meus motivos: os filmes são produtos feitos para as massas e qualquer criatura, por mais pacóvia que seja, tem sempre uma opinião - que por acaso é a única válida.
Não concorda, caro leitor? Então olhe para o seu ambiente de trabalho. Não há lá aquele intelectualóide que vive a gargantear: "Você viu o último filme do Tarantino?" Ante a sua negativa, ele abana a cabeça e faz um ar de reprovação, como se estivesse olhando para uma barata cultural.
Não discuto filmes (e tenho dezenas de filmes publicitários no currículo), mas acho importante analisar a relação entre o cinema e o mercado. Porque, em se tratando da sociedade de consumo, o que hoje é uma porcaria amanhã pode virar culto. Tudo depende daquilo a que Pierre Bourdieu chama "gosto de classe". E os gostos mudam.
Vamos a exemplos práticos. Fiquemos no "Rambo". O leitor deve lembrar do Brian Dennehy, que faz um xerife mauzão no filme. A crítica dizia que era mau ator. Pois o desempenho do mesmo Dennehy, tempos depois, no filme "A Barriga de um Arquiteto", de Peter Greenaway (um queridinho dos intelectuais), foi considerado excelente e ele até ganhou prêmios.
Mais casos? Muita gente lembra que durante um longo tempo Clint Eastwood foi desprezado pelo intelectuais. Um dos seus personagens mais marcantes, o detetive Harry Callahan, era o símbolo do atrabiliário, do que não se devia fazer em cinema. Mas hoje o homem é incensado pela crítica e os filmes da mesma série Dirty Harry, relançados recentemente, atingiram outros públicos mais "refinados".
De vez em quando a moda do mercado nos leva aos lugares mais inesperados. Filmes do Irã, da Índia, do México, da Coréia ou até mesmo da Bósnia são apresentados como o que há de melhor. Não questiono. Só que mexeram no meu vespeiro. Há quatro ou cinco anos, para ver um filme de artes marciais eu tinha que ir disfarçado ao cinema, para não ser reconhecido e não ter que dar explicações. Mas agora esses filmes viraram moda e até inauguraram uma nova estética. Os tipos voam sobre as árvores, pairam no ar, andam por cima d'água. Quanto mais inverosímeis e sanguinários, melhor. E há até atores e diretores de culto. Alguém entende?
É como diz o velho deitado: "É a mesma porcaria. O que muda é o dia".
José António Baço - Professor e publicitário


15 - A burrice é uma arma perigosa

O preconceito é sempre filhote da burrice. Mas há casos em que a burrice e o azar se encontram: então temos o que o povo chama de justiça divina. A história é a seguinte. Além de trabalhar no jornalismo e na publicidade, sou professor de taekwondo, arte marcial e modalidade olímpica de origem coreana. A maioria das pessoas acha que uma arte marcial ensina apenas a pancadaria e estimula a violência. É um erro. Nas minhas aulas, por exemplo, sempre procurei dar atenção à componente pedagógica e à formação do caráter dos meus alunos.
Parte desse trabalho consiste em ensinar o respeito pelo outro. Essa é a lição: todos diferentes, todos iguais. Sem preconceitos. Mas às vezes a coisa não funciona. Faz alguns anos, quando ainda vivia no Brasil, durante algum tempo tive um atleta, já perto dos 30 anos de idade, que tinha todos os preconceitos possíveis. Era racista, homofóbico e tudo que se possa imaginar. E não havia discurso que o fizesse mudar. Um dia o sujeito desapareceu dos treinos. Só retornou duas semanas depois, com o pé no gesso, para dizer que tinha tido uma fratura e, como era óbvio, não podia treinar.
A história que ele contou faz pensar nas deliciosas ironias do destino. Num sábado à tarde, o sujeito passeava de bicicleta pelo bairro da periferia onde morava quando, de repente, viu três rapazes negros tentando tirar a carteira de outro jovem, esse loirinho. O cara nem pensou duas vezes e saiu em defesa do rapaz. Afinal, imaginou, já treinava taekwondo havia seis meses e certamente estava preparado para encarnar o papel de justiceiro (na verdade seis meses é muito pouco tempo e ele não sabia quase nada). Sem perguntar qualquer coisa, foi logo distribuindo chutes.
Mas deu azar, porque um dos rapazes percebeu o avanço e desviou do pontapé. O chute escapou e o pé foi bater justamente na viga de metal que sustentava o ponto de ônibus. Resultado: uma fratura. Mas o pior veio depois. É que ele teve tempo de assistir ao desenrolar da história e percebeu que havia cometido um tremendo erro. Na verdade, o loirinho é quem tinha batido a carteira de um dos outros rapazes dentro no ônibus. Ao perceberem o que se passou, os três saíram no encalço do ladrão e estavam apenas tentando reavê-la.
Parece mentira, caro leitor, mas aconteceu. É uma história que sempre conto aos meus alunos para mostrar que a estupidez é muito perigosa.
É como diz o velho ditado: "Não faça da sua burrice uma arma, a vítima pode ser você".
José António Baço - Professor e publicitário.


14 - O homem que tentou ler Heidegger

Era difícil, mas ele estava determinado: ia ler Heidegger. Foi à estante, tirou nada menos do que "Ser e Tempo", acomodou-se no sofá e começou a leitura. Mal chegou à segunda página e caiu no sono. Dormia de babar no pijama quando, altas horas da madruga, sentiu uma mão a tocar-lhe o ombro. Abriu os olhos e viu um vulto. Tomou um susto.
- Quem é você?
- A grande tragédia do mundo é que não cultiva a memória e, portanto, se esquece dos mestres.
- Heidegger? Não pode ser verdade...
- O que, pois, se entende ordinariamente por verdade? Esta palavra tão sublime e, ao mesmo tempo, tão gasta e embotada designa o que constitui o verdadeiro enquanto verdadeiro.
- É um pesadelo, claro. Você já morreu...
- Assim que o homem ingressa na vida, é logo suficientemente velho para morrer. A temporalidade constitui o significado primordial do ser do Dasein.
- Dá sem? Ora, dá um tempo...
- O tempo não é. Dá-se o tempo. O dar que dá tempo determina-se a partir da proximidade que recusa e retém.
- Foda-se, ô Heidegger. Se vai falar do jeito que escreve, acabou a alucinação. Vou acordar.
Heidegger, com um ar impaciente, caminha até a estante, tira um livro da Hannah Arendt e lança um olhar de reprovação.
- Vejo que não entendeste a minha obra.
- O que você queria? Os seus textos são um pé no saco. Ninguém consegue ler.
- O problema é que as pessoas aspiram à compreensão imediata. É preciso ter alguma concentração.
- Concentração. Hummm, a palavra lembra qualquer coisa. Que tal campos de concentração?
- Estava demorando. Vocês estão sempre a insistir nessa tecla do nazismo.
- Ora, agora vai dizer que não aderiu ao delírio hitlerista?
- Eu vesti a camisa marrom e foi um erro. Mas o movimento tinha a sua grandeza e não havia nenhuma alternativa para fazer a Alemanha sobreviver.
- Claro. Até porque o senhor parece não gostar muito das democracias.
- As democracias são uma reunião de indivíduos fracos. Que mal há em querer uma sociedade de homens fortes?
- Não há mal. Mas apenas se eu conseguir separar o homem da obra, como fazem muitos intelectuais.
- Mas se não consegues ler a minha obra, como queres julgar o homem?
- Pois quanto à obra, tenho uma pergunta simples e direta: que porra é essa?
Heidegger franze o cenho. Depois relaxa e diz, desconsolado:
- Já que invadi o teu sonho, sinto-me obrigado a fazer uma confissão: não faço a menor idéia. Para dizer a verdade, eu próprio só comecei a entender um pouquinho do que escrevi quando li a tradução para o francês.
É como diz o velho deitado: "Doch das Sein - as ist das Sein? Es ist Es selbst (Mas o ser - o que é o ser? É ele mesmo)".
(José António Baço, jornalista e publicitário - ze.antonio@netcabo.pt .)
José António Baço - Professor e publicitário.


13 - ANTIGAMENTE É QUE ERA BOM

É um vício dos publicitários. Sempre que um tipo vai ficando mais velho, começa a repetir a lenga-lenga de que antigamente é que era bom trabalhar em publicidade. O facto é que hoje em dia, com o ritmo quase industrial da actividade, o estímulo vai desaparecendo e é cada vez maior o número de pessoas dispostas a largar tudo para levarem outro tipo de vida.
O leitor conhece pessoas assim. Eu, por exemplo, sou capaz de lembrar de inúmeros casos. Um director de arte que quer trabalhar com shiatsu. Um copy que quase não resistiu ao convite para trabalhar numa pousada no litoral brasileiro. A jovem designer que foi para a Índia aprender ioga. A account que deixou o emprego e foi gastar as economias a conhecer a Europa.
Mas, apesar de ter consciência do cliché, permitam-me dizer: antigamente é que era bom. A publicidade nos dias de hoje tornou-se uma máquina de moer carne. Dizem que é a tal profissionalização. Hoje temos ao dispor um arsenal de conhecimento e de técnicas que tornam a publicidade quase uma ciência exacta. Óptimo. É bom para o negócio. Mas falta qualquer coisa. Talvez mais cheiro de gente.
O perfil dos publicitários mudou. Houve um tempo (não tão distante assim) em que os redactores não precisavam de formação específica. Uns eram escritores que viviam da publicidade "até escreverem um livro". Outros, como no meu caso, eram jornalistas recrutados pelas agências. O importante era ter jeito e gostar da escrita.
Os directores de arte eram sujeitos com aptidões para as artes gráficas ou artistas que não tinham mercado para as obras que produziam. Alguém duvida? Pois sou capaz de apostar que qualquer publicitário quarentão tem em casa um quadro pintado por um amigo director de arte.
Hoje as agências perderam muito do charme com o desaparecimento dos antigos estúdios (onde ficavam os maquetistas e arte-finalistas). Era o lugar onde todos os assuntos tinham vez: a anedota mais recente, o futebol, as curvas da mulher do vizinho, a novela das oito, o anúncio da concorrência, a pescaria do fim-de-semana. O pessoal da criação - e todos os outros - sempre dava um saltinho ao estúdio para o saudável hábito de rir e jogar conversa fora. Hoje um arte-finalista passa o dia em silêncio à frente do computador.
O clima era quase sempre de alto astral. Os maquetistas e arte-finalistas traziam para a agência uma certa humanidade, um jeito de povo. Eles eram povo. Hoje esse elo de ligação foi perdido e talvez por isso muitos publicitários - para quem o consumidor é apenas estatística - tenham maior dificuldade em entender e falar para o povão.
O facto - sem qualquer desprimor para os mais novos - é que naqueles tempos as agências eram formadas por pessoas que tinham mais alma, mais história e um enorme tesão pela vida (pela vida e não pelos objectos que podiam comprar). Vivia-se a publicidade com o mesmo tesão com que se tentava comer a morenaça do sexto andar, com que se falava de política ou com que se tomava uma bebedeira com os amigos.
Para muita gente a publicidade era um meio e não um fim.
Mas isso tinha que mudar. O mercado evoluiu. E a evolução trouxe escolas especializadas que todos os anos inundam o mercado com carradas de novos publicitários e marketeers. É essa gente que hoje está nas agências, nos anunciantes e nos meios. E isso fez surgir um exército de yuppies e cripto-yuppies desenraizados, pessoas muito preocupadas com a "carreira" e o estatuto social.
Foi uma machadada na publicidade mais intuitiva de outros tempos. E, de certa forma, desapareceu o gosto pelo risco, pelas grandes sacadas. Ficou tudo muito previsível. Isso se reflecte no trabalho que vemos sair às ruas: o predomínio de uma publicidade sensaborona e pouco instigante. Aliás, é por isso que pouca gente ganha prémios com trabalhos de verdade.
Não se trata de uma crítica à evolução e à tal profissionalização. Mas, temos que admitir, algo de bom se perdeu.

José António Baço - Professor e publicitário


12 - Coisas estranhas na língua

A língua portuguesa tem as suas esquisitices. A palavra veementemente, por exemplo, é uma das mais estranhas e chatas de pronunciar. É daquelas que não saem do rame-rame, que ficam a tropeçar nas sílabas. Um ingênuo pode até imaginar que é usada para indicar quem mentiu duas vezes ú só isso explicaria o "mentemente". Nada disso. Serve apenas para os advogados usarem nos tribunais:
- Protesto veementemente, meritíssimo.
Aliás, meritíssimo é outra palavra intrigante, pois pronunciada rapidamente tem o som muito parecido com meretrício. Temos aqui uma irônica coincidência. Afinal, o juiz Lalau e outros da mesma laia não transformaram o Poder Judiciário numa autêntica zona?
Faz tempo que não ouço falar em meretrizes ou zonas do meretrício. É que a maioria das pessoas prefere usar prostituta, um termo bem mais popular. Outra palavra errada, claro. O certo deveria ser prostiputa. Era mais lógico. Os anarcas-pichadores teriam uma nova frase para as paredes:
- Prostiputas ao poder já, porque os filhos estão lá.
Não sei se daria uma dignidade à coisa, mas pelo menos seria mais sonoro. Engraçado que no português de Portugal puta também é puta, como no Brasil, mas no masculino é diferente: puto é moleque.
- Olha, lá vai o puto a correr.
É chato tratar uma criança assim. Aliás, as crianças são muito intuitivas no tratamento da língua e muitas vezes têm razão. A minha filha, por exemplo, quando era criança insistia em dizer:
- Cê tá mentirando.
Faz sentido. Contar uma mentira devia ser "mentirar". Os lingüistas é que complicaram tudo, porque o verbo "mentir" é antinatural. A propósito, o prefixo anti é uma autêntica dor-de-cabeça. Ou haverá palavra mais estranha do que antiinflação, com os dois "i" juntos? Aliás, só no Brasil, porque em Portugal é separado. É o tal desacordo ortográfico.
Até parece que falamos a mesma língua, mas é difícil quando se transita de um país para o outro. O pior, no meu caso, é entender as tais próclises, mesóclises ou ênclises. Ainda não atinei com a coisa. Mas um amigo brasileiro que trabalha na publicidade lusitana tem a solução:
- Como é que se diz? "O carro se atolou" ou "o carro atolou-se"?
- Não sei. Para mim é tudo igual.
- É assim: se for com as duas rodas da frente é "se atolou", mas se for com as duas de trás é "atolou-se".
- E se for com as quatro rodas?
- Hummm... nesse caso é "se atolou-se".
É como diz o velho deitado: "Pesporrente, o jovem grulhento usou a antracomancia para esquadrinhar a elanguescência genesíaca das globulariáceas".
José António Baço - Professor e publicitário


11 - Burro, burro, burro!

O futebol é o esporte mais popular do mundo. Não é por acaso. As regras são muito simples e qualquer pacóvio, mesmo que jamais tenha dado um chute numa bola, se acha autoridade no assunto. Na arquibancada, cada torcedor é um técnico.
- Com esse Osvaldão a gente não ganha de ninguém. É um técnico que só sabe inventar. Ih, olha essa jogada do Luisinho. O cara tropeçou na bola.
 E grita para o banco.
- Ei, Osvaldão, tira essa múmia de campo.
A partida está no fim e o sujeito ao lado, a roer as unhas de nervoso, acha que o jogador não tem culpa.
- Pô, o culpado é o Osvaldão. Todo mundo sabe que o Luisinho é atacante, mas esse técnico fica inventando e escala o coitado como meio-de-campo.
- O Luisinho é craque, mas está velho e não tem mais pulmões para jogar no meio-de-campo. Só o Osvaldão é que não vê.
- Assim vamos ficar no 0 a 0 e jogando em casa contra um timeco. Haja coração.
- Como é que a diretoria foi contratar essa besta de técnico?
- É culpa da imprensa. Os jornalistas ficaram enchendo a bola do cara só porque foi campeão num time lá na Arábia.
- Eu nem sabia que os árabes jogavam futebol. Pensei que o negócio deles fosse explodir bombas.
- Pois é, mandaram essa bomba de técnico para cá. O pior é que esse Osvaldão ganha um dinheirão.
- Eu é que quero o meu dinheiro de volta. Esta pelada não vale um tostão.
Nesse momento Luisinho dá de canela na bola. A torcida vai à loucura.
- Tira essa múmia de campo, Osvaldão.
- Foda-se. O cara escala mal e não sabe a hora de fazer as substituições. Técnico burro. Filho da...
E a galera, em coro, acha o mesmo.
- Burro, burro, burro.
Osvaldão tenta organizar o time e, do banco, grita para os jogadores manterem a calma. Pede que toquem a bola e não entrem no desespero do chuveirinho na área. Ainda faltam três minutos para o fim do jogo. A torcida continua:
- Burro, burro, burro.
Nesse momento, Luisinho recebe a bola no meio do campo, deixa dois zagueiros sentados com dribles geniais e, na saída do goleiro, toca no canto. Gol de placa. A torcida, delirando, ensaia um coro:
- Luisinho, Luisinho, Luisinho.
Os dois torcedores olham um para o outro.
- Eu não disse? O Osvaldão é um líder. Sabe jogar para os três pontos e dá confiança aos jogadores.
- É um técnico experiente. Sabe que craque não se tira. Craque resolve. Ele fez bem em deixar o Luisinho em campo.
É como diz o velho deitado: "Burros, burros, burros".
José António Baço - Professor e publicitário


10 - Até os craques pisam na bola

Todo mundo tem dias maus, até mesmo os craques da filosofia. É o caso do pensador Friedrich Hegel, que deu algumas grandiosas pisadas na bola. O homem andava louquinho para mostrar a superioridade dos europeus em relação aos outros povos (é o tal eurocentrismo) e desatou a chutar para todos os lados. Mas algumas das suas teses mais parecem jogadas de cabeça-de-bagre.
Quando fala nos índios da América Latina, o pensador não quer saber de jogo amistoso e parte logo para a botinada. "Há-de ainda passar muito tempo até que os europeus consigam neles atear algum sentimento de si. Foram olhados na Europa como desprovidos de espírito e sem a menor capacidade de educação. A inferioridade destes manifesta-se sob todos os aspectos". É jogo duro.
Não contente com essa canelada na bola, o filósofo dá de bico. "Com efeito, os indígenas, desde que os europeus desembarcaram no continente, foram progressivamente desaparecendo ao sopro da atividade européia. Também nos animais se revela a mesma inferioridade que nos homens. A fauna apresenta leões, tigres, crocodilos; estas feras assemelham-se, sem dúvida, às configurações do velho mundo mas são, sob todos os aspectos, mais débeis e mais impotentes." Fique claro que o tal sopro da atividade européia foi, na verdade, um furacão devastador: o genocídio que, segundos alguns estudiosos, vitimou quase 70 milhões de índios. Um lance sem rebote.
Havia uma besteira que nos ensinavam nas escolas: os índios eram preguiçosos e os portugueses tiveram de fazer escravos na África. Hegel acreditava nisso e entrou de sola. "Os americanos são, pois, como crianças irrefletidas que se limitam a viver de um dia para o outro, longe de todos os pensamentos e fins mais elevados. A debilidade do natural americano foi uma das causas principais do transporte de negros para a América, a fim de com as suas forças realizarem os trabalhos. Com efeito, os negros são muito mais receptivos à cultura européia do que os índios." Pimba na gorduchinha.
Hegel invadiu a pequena área dos nativos ao escrever que, de tão preguiçosos, sequer tinham vontade para o sexo. Os religiosos que viviam nas comunidades indígenas tinham de usar truques para habituá-los aos costumes europeus. "Escolheram o modo mais hábil para os elevar, e lidaram com eles como se deve lidar com as crianças. Recordo ter lido que, por volta da meia-noite, um eclesiástico tocava uma campainha para recordar aos indígenas o cumprimento dos seus deveres conjugais, porque, por si mesmos, nem sequer se teriam lembrado." Será que o pensador alemão gostava de uma pelada?
Tudo bem, serve de atenuante o fato de Hegel ser um homem do seu tempo. Afinal, era uma época em que se buscavam enquadramentos filosóficos para justificar avanços "imperialistas" de Norte para Sul. Mas o fato é que esse autêntico festival de gols-contra está no livro "A Razão na História - Introdução à Filosofia da História Universal".
É como diz o velho deitado: "Até os craques têm dias de bumba-meu-boi".
José António Baço - Professor e publicitário


9 - Desempregado flagrado a roubar

Quando voltava do trabalho, João Pedro lembrou-se que a mulher lhe tinha pedido para ir ao supermercado. Foi lá que encontrou Carlos José, um vizinho com o qual não tinha intimidade e limitava-se aos "bom-dias" e "boas-noites" da boa educação. Sabia pouco sobre ele, mas lembrou que a mulher, muito dada a falar com as vizinhas, comentara que o homem estava desempregado e que a família - tinha três filhos - estava em dificuldades.
João Pedro, um homem muito religioso e com valores firmes, sentia pena, mas nada podia fazer. Como não havia o que conversar, limitou-se a um simpático "olá, como vai?" e continuou as compras. Achou estranho Carlos José estar vestido com um blusão pesado, porque o frio ainda era pouco.
Andou por entre as prateleiras e alguns minutos depois, ao passar de um corredor para outro, voltou a avistar o vizinho desempregado. E, para sua surpresa, o homem escondendo pacotes de arroz e de feijão no blusão. No mesmo instante viu o vigia do supermercado a surgir de rompante. O homem, ao ver que ia ser flagrado, instintivamente atirou os pacotes para uma prateleira e tentou sair. Mas o vigia havia percebido o que se passava e, num tom duro, acusou:
- Você está roubando.
- É claro que não. Que maluquice é essa?
- Eu vi quando pôs os pacotes no agasalho.
- Pode olhar. Eu não tenho nada aqui.
Levantou os braços, abriu o blusão e o vigia nada encontrou.
- Tenho certeza de que você estava roubando. Eu vi.
- Você está enganado.
O vigia, convicto de que era mesmo um roubo, virou-se para João Pedro, que assistia a tudo.
- O senhor também viu. E pode confirmar que ele estava roubando.
João Pedro empalideceu. Tinha entrado ali para fazer umas simples compras e agora estava no meio de uma confusão dos diabos. O vigia insistia e ele não sabia o que fazer. Confirmar o roubo ou mentir? É uma daquelas situações em que o cérebro tem que processar as informações muito mais rápido. João Pedro via as hipóteses passarem pela mente.
- Se eu digo que não vi, estou mentindo e isso vai contra os meus princípios.
- Se digo que vi o roubo, complico ainda mais a vida do coitado.
- Mas se não denuncio, ele pode vir a roubar novamente. E ainda acaba por enveredar por esse caminho. O que aconteceria se fosse uma joalheria e ele estive roubando jóias?
- O problema é que se eu confirmar o roubo, ele vai preso e deixa a mulher e os filhos numa miséria ainda maior.
Uma decisão difícil. E você, leitor, o que faria à frente desse dilema?
É como diz o velho deitado: "É mais fácil tomar decisões sobre a vida de outras pessoas quando não se tem que olhá-las nos olhos".
José António Baço - Professor e publicitário


8 - Fora, brasucas

O preconceito é sempre aviltante. Mas é preciso senti-lo na pele para entender a sua real dimensão. Eu nasci em Portugal, mas cresci no Norte do Paraná e carrego aquele sotaque "porteira véia" do interior. Mesmo já tendo voltado para terras lusas há mais de uma década, ainda mantenho os "erres" carregados dos caipiras.
Quem me ouve julga que sou brasileiro e isso já me fez passar por situações estranhas. Um dia precisei ir ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras em Lisboa e tomei um táxi. Quando disse o destino, o homenzinho ao volante percebeu o sotaque e disparou de chofre, sem o menor constrangimento:
- Estrangeiros? Por mim seriam todos expulsos.
E quem perguntou, catso? Fiquei estupefacto com a cara-de-pau do homem. Pensei em descer, mas como o táxi já ia em movimento, preferi tentar o diálogo.
- Olhe, eu sou português e imigrei para o Brasil ainda jovem. Sempre fui bem tratado lá. Já imaginou se eles fizessem o mesmo e decidissem expulsar todos os portugueses?
O homem nem ligou. Indiferente, soltou outro petardo.
- Vocês são os piores. Deviam ter ficado aqui a cavar e a plantar. Foram todos embora, deram com os burros n'água e agora voltam com o rabinho entre as pernas. O pior é que como foram bem recebidos lá, agora temos de receber cá os brasileiros que vêm tirar os nossos empregos.
Como dois monólogos não fazem um diálogo, eu desisti.
O caso é real, mas pontual, pois os portugueses são um povo receptivo. O problema é que nos últimos anos Portugal tornou-se destino de imigrantes que vêm da África, da Europa do Leste e, mais recentemente, do Brasil (calcula-se que já são 100 mil brasileiros no país, o que representa 1% da população local). O certo é que os fluxos migratórios já fazem surgir, aqui e acolá, alguns casos de xenofobia.
Para se ter uma idéia, uma pesquisa recente da Universidade Católica diz que três em cada quatro portugueses não querem mais imigrantes no país. E isso faz surgirem aberrações como um inexpressivo (e que assim continue) Partido Nacional Renovador, de extrema direita, que quer fechar as fronteiras e repatriar todo mundo.
Quanto ao taxista, é vítima da própria ignorância. Na verdade, ele precisa - e a Europa precisa - dos imigrantes, em especial dos mais jovens, para manter o pouco de wellfare state que ainda resta nestes tempos de neoliberalismo voraz. As populações estão envelhecidas e só com os impostos pagos por esses imigrantes-trabalhadores será possível evitar que os sistemas de previdência do continente vão para o buraco.
A ironia: quando o taxista quiser se aposentar, terá de torcer para haver muitos imigrantes que paguem a sua aposentadoria.
É como diz o velho deitado: "Idiota é uma pessoa que julga ter sempre razão. Mais idiota só mesmo quem discute com ela".
José António Baço - Professor e publicitário


7 - "Soy latino-americano"

"Entravam pelas aldeias, não poupando crianças nem velhos, nem sequer mulheres prenhas a quem rasgavam o ventre e faziam em pedaços, como se dessem com cordeiros metidos em seus redis. Faziam apostas sobre quem de um só golpe havia de abrir ao meio um homem, ou lhe cortaria a cabeça com uma espadeirada ou lhe poria fora as entranhas". (Bartholomé de las Casas.)

O texto reproduzido acima é um dos inúmeros episódios relatados por frei Bartholomé de las Casas (1484-1566) sobre as atrocidades cometidas contra os nativos durante a colonização da América. É uma cortante denúncia contra a dita "civilização" e por isso houve, ao longo dos séculos, quem tentasse desacreditar o religioso, acusando-o de ser um demagogo, um alucinado ou, por ridículo que seja, um pregador marxista.
O fato é que as suas crônicas constituem o mais candente relato das
brutalidades cometidas pelos invasores europeus logo após Colombo ter
chegado ao "novo mundo". Las Casas presenciou a invasão, e seus escritos são indispensáveis para analisar aquele que foi o maior genocídio da história. Não há censos, como é óbvio, mas as estimativas apontam para números entre 20 e 70 milhões de ameríndios mortos apenas nos primeiros 150 anos da intrusão européia. É uma ferida impossível de cicatrizar.
O horror de homens degolados por mera diversão, crianças mortas e atiradas aos cães ou mulheres violadas sem a menor contemplação deveria estar sempre presente na mente de cada cidadão
latino-americano (os habitantes daquilo que Eduardo Galeano chamou a "sub-América"). Mas, por estranha ironia, houve mesmo um tempo em que o dia do Descobrimento da América (12 de outubro) era
comemorado nas escolas brasileiras. Faz tanto sentido quanto um judeu
comemorar o dia em que encontrou os nazistas.
O trágico percurso histórico do continente poderia ser o cimento para o surgimento de uma "identidade latino-americana". Mas estamos longe disso. Se o colonialismo primitivo tinha o objetivo estrito de explorar as riquezas das colônias, nos dias de hoje o processo é mais sofisticado. Há uma imposição dos padrões do centro (Europa e Estados Unidos) nos planos cultural e econômico.
Temos uma colonização das mentes. É um sintoma fácil de identificar, por exemplo, nas elites, que não se revêem como latino-americanas ou
brasileiras. Vivem o delírio de pertencer a um certo primeiro mundo, mesmo que em outras latitudes. O resultado é o tal "apartheid social" tão comum no continente.
Como são as elites que governam, as economias acabam sendo arrastadas para a submissão aos interesses do centro. E conceitos como dependência, globalização, exclusão ou neoliberalismo passam, contranatura, a fazer parte do vocabulário cotidiano dos povos. A vida econômica - e a própria soberania - dos países latino-americanos é estrangulada pelos interesses externos, bem configurados, por exemplo, no Consenso de Washington, que tem o FMI como ponta-de-lança.
Há solução? Talvez. Que tal resgatar (e adaptar aos nossos tempos) o sonho da Pátria Grande de Bolívar e San Martín? Em primeiro lugar, seria preciso romper com os mitos que levam à submissão e à idéia de que a dependência é inevitável. O continente é rico e tem uma gente forte. A integração dos países latino-americanos criaria um bloco com capacidade mais do que suficiente para defender eus interesses. Seria mesmo uma forma de evitar a tal Alca, esse truque manjado do Tio Sam.
Como todos sabemos, uma longa caminhada começa com o primeiro passo. Esse passo é simples e será, com certeza, o momento em que cada cidadão disser: "Soy latino-americano".
José António Baço - Professor e publicitário


6 - Tem uma mamata para mim?

Dia de eleições. Pedro acorda um pouco mais tarde e, ainda de roupão, vai buscar o jornal na caixa do correio. Do outro lado da cerca vê Juarez, o vizinho, com jeito de quem está a se preparar para sair.
     Então, já vai votar?
     Sim, mas contra a minha vontade. Acho que isso de voto obrigatório é coisa de terceiro mundo.
     Se não for obrigatório as pessoas ficam em casa e não votam.
     Não é democracia? Então eu não devia ser obrigado.
     Quando não vota, você deixa que outra pessoa decida no seu lugar.
     Não faz diferença. Não são sempre os políticos que ganham?
     Mas há políticos bem intencionados, que pensam grande.
     Pensam grande? Os caras são quase pornográficos. Só pensam em grandes tetas para mamar, isto sim.
     Está a ser injusto. Há pessoas que querem servir o povo.
     Ora, querem é se servir do povo. Não concorda? Então diga o nome de um político pelo qual poria a mão no fogo.
     Isso de pôr a mão no fogo é complicado. Eu não arrisco. Mas tem o Efigênio, aquele sujeito aqui da rua que se elegeu vereador. Lembra dele?
     Eu lembro. Ele é que não se lembra de mim. Os políticos sofrem de amnésia seletiva. Depois de se elegerem e ficarem por cima da carne seca logo esquecem os outros. A memória só volta nas próximas eleições.
     Mas pelo menos ele é honesto.
     Honesto? Esse cara sozinho vale por uma gangue. Antes era amador, mas agora que chegou ao poder virou um profissional.
     Não vá dizer que acredita nessa conversa de que o poder corrompe.
     Ora, não dizem que a política é a arte de negociar? Eu concordo. Os caras estão sempre a negociar propinas, comissões e verbas por baixo da mesa.
     É uma pena. Eu estive ontem com o Efigênio e ele está à procura de um assessor. Falei no seu nome. Mas agora, sabendo da sua posição, vou ter que indicar outra pessoa.
     Eu? Assessor do Efigênio? Não brinca.
     Sim. Ele quer alguém das bases, do bairro onde sempre viveu. Pena que você não esteja disponível, porque o salário é bom.
     É claro que eu estou disponível.
     Mas você acabou de falar em corrupção, falcatruas…
     Ora, não leve tudo tão a sério. Era apenas uma forma de expressão. Aliás, eu ia mesmo votar no Efigênio, sou eleitor de carteirinha dele.
É como diz o velho deitado: “Falcatrua é só quando alguém faz uma sacanagem e não nos convida para participar nos lucros”.
José António Baço - Professor e publicitário


5- Você é um metrossexual?

Dois amigos numa mesa de bar.
Sabe de uma coisa? Acho que você é um metrossexual.
Opa, meu. Não precisa ofender.
Não é ofensa. É que tem tudo a ver com o teu estilo.
Respeito é bom e eu gosto. Você não tem de falar das preferências sexuais de ninguém. Até porque eu sou hetero.
Ser metrossexual está na moda no primeiro mundo.
Não quero estar na moda se a palavra acaba em "sexual".
Não seja careta. É coisa de gente moderna.
Careta uma ova. A minha mãe anda meio surda, vai que ela não ouve direito e entende outra coisa. A coitada ainda tem uma coisa ruim.
Quer apostar que você tem o perfil de um metrossexual?
Pô, larga do meu pé.
Então responda lá. Você é um homem urbano, das metrópoles?
Sim, eu gosto de viver na cidade.
Metrossexual, com certeza. E tem um apurado senso estético?
Bem, eu curto as coisas boas e bonitas. Roupas, arte, perfumes.
Está vendo, é um metrossexual. Ou vai dizer que nunca usou um produto de beleza, daqueles contra o envelhecimento?
Ora, um homem tem de se cuidar. E as mulheres gostam.
É o que eu estou dizendo. Você é um metrossexual. Ah e tem uma coisa que eu sei. Você cozinha muito bem.
Cozinhar é uma terapia, um exercício de criatividade.
Os metrossexuais são assim. Cozinham, cuidam dos filhos, não se importam de ir ao supermercado. É um cara sem preconceitos, que sabe lidar com o seu lado feminino.
Tá vendo, eu não disse? Sabia que logo ia pintar mariquice.
Não é isso, meu. Tens de saber trabalhar a tua sensibilidade.
Esquece. O meu lado feminino é sapatão, coça o saco e cospe no chão.
Ambos tomam mais um gole de cerveja.
Você sabia que o Beckham, o jogador de futebol, é um metrossexual?
Bem, o cara é casado com aquele avião. E, pelo que dizem os jornais, ainda fatura montes de outras mulheres.
É mulher a metro, meu. É disso que elas gostam, homens sensíveis.
Hummm pensando bem, talvez eu não me importe de ser um metrossexual. Mas fala baixo. O cara ali na mesa ao lado já está me olhando com um jeitão meio esquisito.
É como diz o velho deitado: "Metrossexual? Nada que duas semanas a trabalhar no cabo da enxada não cure".

José António Baço - Professor e publicitário


4 - Coluna (anti)social

Para a Europa
Afivelando malas para viajar à Europa centenas de mulheres brasileiras. A viagem em busca do sonho dourado muitas vezes tem como destino os bordéis de países europeus, onde são obrigadas a trabalhar como prostitutas. Alguns roteiros incluem até mesmo escalas na prisão.

Debut
Quem completa 15 anos em outubro e portanto já com idade para debutar é a burrice das elites nacionais, que, em 1989, fez eleger Fernando Collor para a Presidência da República. Parabéns a vocês

Arte
A verdadeira arte é sobreviver com um salário de R$ 260,00.

Educação à mesa
Na Inglaterra, o governo está empenhado em educar os seus pobres. Os sujeitos estão tão gordos que precisam passar por um processo de reeducação alimentar. Ser pobre num país rico é coisa fina: morre se de obesidade.

Gente fina
Por outro lado, gente fina, pura pele e osso, são os milhões de africanos em fuga na região de Darfur. Vão morrendo de fome e outros males ante a passividade do dito mundo civilizado. Afinal, o que importam uns 300 mil mortos a mais?

Coquetel
A ditadura do mercado. O pensamento único neoliberal. O progresso que destrói coisas belas. A distância cada vez maior entre os ricos e os pobres. Eis um coquetel explosivo.

Nos States
George W. Bush, ao que tudo indica, vai ser reeleito. A estupidez dos americanos realmente não conhece limites. Se bem que votar no Bush ou no John Kerry é mais ou menos como escolher entre o nada e o vazio. Ainda bem que só um pode ganhar.

Em bom português
Definição de socialite. Social: do latim sociale, relativo a sociedade. Ite: sufixo de inflamação. Ou seja, uma doença da sociedade.

Pensamento do dia
É como diz o velho deitado: "Futilidade é aquilo que desaparece quando a mente se abre".
José António Baço - Professor e publicitário


3 - Carta aberta aos meus amigos

Caros amigos. Peço desculpas por escrever uma carta aberta e sem citar nomes. É que alguns de vocês são candidatos nas eleições e a moçada do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) pode achar que estou fazendo propaganda política.
Mas esta semana assisti, no "Jornal Nacional", da Globo, a uma matéria sobre as diferenças sociais no Brasil. Mostraram o lado abastado, bem abastado. E o lado miserável, bem miserável. As imagens provocaram um calafrio. O mesmo calafrio que eu sentia quando ainda vivia no Brasil e que me empurrou para a atividade política.
Foi graças a isso que nos conhecemos. Pelo encontro de idéias, inquietações e esperanças. Mas, fundamentalmente, por um sentimento de solidariedade para com os excluídos. Não é por acaso que maioria de vocês está ligada à política, uns candidatos, outros simples militantes (e, felizmente, nenhum quietista). O ponto comum foi sempre o desejo de construir uma sociedade mais justa. Afinal, como dizia o velho filósofo, não basta olhar para o mundo: é preciso transformá lo.
Força, companheiros.
A reportagem da Globo mostrou muitas caras brasileiras. A cara de uma gente sofrida, sem educação e que morre por motivos tão estúpidos quanto a falta de comida. São as mesmas caras que as nossas elites, encasteladas nos seus condomínios de luxo, fingem não ver. As imagens reacenderam aquele velho sentimento de indignação. Mas estou longe e a única coisa que posso fazer é pedir, a cada um de vocês, que não desistam de lutar. Mantenham se firmes nas suas convicções, mesmo tendo que enfrentar a lei do "cada um por si", num tempo em que os idealismos estão a ser postos na prateleira da história.
Força, companheiros.
O combate é insano, bem sei. Mas o País vive uma escandalosa realidade social e precisa de pessoas que lutem pela mudança. É preciso romper com esse passado viciado que insiste em nos empurrar mais e mais para o "apartheid social". Só uma revolução ética pode provocar essa ruptura. O destino do Brasil é ser um país generoso.
Força, companheiros.
Eu sei que é difícil. As pessoas acham que "os políticos são todos iguais". Sabemos que não. É a estratégia dos eternos donos do poder para manter os privilégios: desacreditar para reinar. A lógica é pôr tudo num mesmo saco porque, no meio da confusão, ninguém vê a sacanagem. Enfrentar essa gente é mais ou menos como lutar com porcos: acabamos sujos e eles se divertem. Mas é preciso resistir. A indignação tem que ser hoje como sempre foi a nossa maior arma.
Força, companheiros.
É como diz o velho deitado: "Um homem com um ideal faz uma maioria".
José António Baço - Professor e publicitário


2 - Saias justas

Há uma coisa na publicidade que na maioria das vezes dá merda: é juntar a família com o trabalho.Faz alguns anos, criei um anúncio que tinha a fotografia de uma mãe e um bebê. O cliente aprovou, a produção foi à luta para encontrar os modelos e as fotografias foram feitas. Eu só retomei o trabalho na hora de escolher as fotos, que me foram apresentadas pelo diretor de criação. Não gostei. O bebê era sem graça. Dei a minha opinião, na descontração:
Olha, esse bebê é feinho. Tem cara de joelho. A mãe até é boazuda, mas tem um ar meio tonto.
O homem engoliu seco e disse:
Pô, vai com calma, é a minha nora com o meu netinho.
Oooops!
Um amigo, também diretor de criação, desenvolveu uma campanha com uma atriz conhecida. Mas como ainda estavam na fase de proposta e a atriz custaria dinheiro, decidiram fotografar outra moça qualquer para simular o trabalho real (é o que os publicitários chamam layout).
Depois das fotografias, o pessoal discutia a apresentação quando entrou o contato (o tipo que atende o cliente) e, ao ver a foto da moça, disparou:
Nossa, que cara de puta. E das mais vagabundas. Onde arranjaram essa piranha?
O diretor de criação respondeu, meio sem jeito:
É a minha filha, eu fiz a foto ontem lá em casa.
Tremenda saia justa. O contato não sabia onde enfiar a cara.
Outro caso. Estávamos produzindo uma campanha de TV e na hora das filmagens uma das atrizes ficou doente. Foi um corre corre para encontrar uma substituta. E nada. A campanha tinha prazo para ir ao ar e o desespero já estava batendo. Até que uma das moças da agência sugeriu:
Eu posso convidar a minha mãe. Ela tem a idade certa e é desinibida ao falar.
Os outros se entreolharam e sutilmente recusaram. É que a tal moça nada devia à beleza. E como quem sai aos seus não regenera, logo imaginaram a progenitora como um dragão na versão mais velha. Mas o tempo foi passando e nada de arranjar a modelo. No desespero, acabaram por aceitar a sugestão e disseram à mãe da moça que fosse até ao estúdio. Uma boa maquiagem poderia resolver o problema.
Quando chegaram às filmagens, surpresa. A mãe era uma quarentona enxutésima, ainda gata. E o assistente de produção, sem perceber que a filha estava por perto, disse exultante:
Uau, quem podia imaginar? Um pé de uva que deu jaca.
É como diz o velho deitado: "Uma pessoa educada é aquela que conta até dez, antes de não dizer nada".
(5 de Setembro de 2004)
José António Baço - Professor e publicitário


1 - Fome zero no high society

A socialite mal acreditou quando viu a notícia na TV. De imediato passou a mão no celular e ligou para a melhor amiga:
Tucha, que horror.
O que aconteceu, Dete? Um terremoto? Um furacão?
Nada disso. O tal plano Fome Zero, aquele para acabar com a fome no Brasil, parece que não está dando certo.
E daí?
Ora, temos de fazer alguma coisa para ajudar os pobres. A caridade é importante.
Não sei. Tenho as minhas idéias a respeito dos pobres. Acho que não devemos dar o peixe, mas ensinar a pescar.
Mas é uma situação de emergência. O operário presidente pediu a ajuda de todos.
O que você sugere?
Que tal um jantar beneficente?
Boa ideia. A temporada de eventos sociais anda meio fraquinha. Imagine que eu comprei um vestido em Paris, um Lacroix lindíssimo, e ainda não tive onde usar.
Então é agora. Porque vamos reunir o grand monde.
Podíamos fazer o jantar no country club, que é longe da cidade. O meu marido quer experimentar o BMW conversível novo na estrada.
Ah, vai haver muitos carros na festa. Talvez seja melhor contratar uma empresa de segurança.
Sim. Aqueles moleques molambentos, filhos dos empregados do clube, não podem ver um carro que querem passar a mão, entrar.
É gente sem educação, que não conhece o seu lugar.
A segurança é boa idéia. Podemos usar as nossas melhores jóias sem preocupações.
Podíamos contratar um daqueles chefs de cuisine famosésimos.
E o cardápio? O prato principal poderia ser Coq au Vin.
Cocovã? O que é isso?
Aves com champignons e molho de vinho e conhaque.
Eu acho que já comi algo parecido. Mas era frango
É frango. Mas em francês tem outro sabor, ma chérie.
E vamos convidar todos os colunistas sociais.
Decidiram fazer uma reunião para organizar a festa e fazer as contas. O jantar iria custar R$ 400,00 por pessoa.
É barato.
Mas assim, no final, vão sobrar apenas R$ 100,00 para a campanha da fome.
Não há problema. Sabes como são esses pobres. Não se pode dar demais, senão eles ficam mal acostumados.
É como diz o velho deitado: "A guerra contra a pobreza acabou. E a pobreza perdeu".

José António Baço - Professor e publicitário