Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 151
Quinto aniversário

 

INDICATIVO

Este programa foi gravado e vai estar disponível, hoje, dia 6 de Julho de 2010. Exatamente há cinco anos, neste mesmo dia podia ouvir-se na Internet o primeiro programa do Estúdio Raposa, já com o título de “Palavras de Ouro”. Poucos meses antes tinha nascido nos EUA o podecasting e o Estúdio Raposa era um dos primeiros a usar essa tecnologia em língua portuguesa.

MÚSICA

Dado que se tratava de uma novidade eu não tinha quaisquer expectativas quanto ao sucesso do podcasting. Porém, logo durante os três primeiros meses o número de visitantes foi encorajador e passados cinco anos cerca de 2 milhões e meio de ouvintes passaram pelo Estúdio Raposa. Num país de poetas, mas de poucos amantes de tal arte, este número parece-me satisfatório, sobretudo porque sei que nas escolas em Portugal e por esse mundo onde se ensina a língua pátria, o programa é muito utilizado como material didático.

MÚSICA

São já perto de 500 os programas produzidos entre “Palavras de Ouro”, “Histórias”, “Lugar aos Outros”, “Audiobooks”, “Poesia Erótica” e mais recentemente “Horas de Poesia “ e “Ver Poesia”. Destes grupos, findou o “Lugar aos Outros” para dar lugar ao “Ver Poesia”. Trorna-se difícil dizer quantas horas foram disponibilizadas, mas o número deve andar à volta das 150 horas. Mas deixemos os números e falemos do programa de hoje.

MÚSICA

Mantendo a tradição, o programa que assinala o 5º aniversário terá os mesmos autores que me emprestaram as suas palavras douradas desde no primeiro programa e até hoje, em todos os que comemoraram o aniversário: Edson Athayde e Fernando Pessoa. Edson Athayde acaba de publicar o seu primeiro romance “O rapaz das fotografias eternas” e dele que vou ler o primeiro capítulo.
De Fernando Pessoa, ouviremos três poemas assinados pelos seus três mais famosos heterónimos: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Comecemos por Edson Athayde.

MÚSICA

De todas as coisas raras que poderíamos encontrar na Vila de Claraboia, o nome era o que menos deveria causar estranhamento. Chamar de vila aquele trecho de terra ocupada, perto de uma praia, lugar praticamente esquecido, numa ilha que também não constava de muitos atlas, era um manifesto exagero. Tinha duas dezenas de casas, cada uma de uma cor, como que para ajudar aos moradores a não errar o retorno para o lar. Na casa azul, morava o barbudo Apolónio e lá ele tocava o seu orgulhoso negócio: fabricante e técnico em conserto de guarda-chuvas. O facto de não chover em Claraboia não importava. Apolónio havia herdado o negócio do seu bisavô, o fundador da vila e o precursor da empresa guardachuvana ou guardachuvense, como ele mesmo preferia. Todos os claraboianos haviam comprado pelo menos um exemplar do objeto e guardavam-no para uma intempérie que nunca veio, o que até faz sentido, pois não sabemos o dia de amanhã e o de hoje vai a meio. É por isso que Dona Rosa, que vivia na casa idem, andava atrás dos porcos, chamando-os para o almoço. Havia muitos porcos em Claraboia. Viviam livres, gordos, foçando por rodos os lados, tratados como cães. Cão só havia um, chamado displicentemente de Cão. Que como a Lassie ou o Rintintim, nunca era o mesmo. O primeiro Cão latiu imenso na festa de inauguração da loja do bisavô Apolónio. Quando um Cão morria, era substituído imediatamente por um Cão novo. Nem sequer era importante ser da mesma raça. Ou do mesmo sexo. Havia lembranças ténues de um Cão fêmea, embora isso gerasse alguma controvérsia. O da vez era um rafeiro pequeno e branco com umas manchas castanhas. Como rodos os Cães, portava-se com total independência dos humanos. Era até um pouco crítico para com eles. Não raramente rosnava impropérios ininteligíveis, nas rodas que se faziam nas mesas em frente ao Bar do Inglês, por não tolerar mentiras. Quando percebia uma patranha, a meio das histórias contadas, primeiro uivava, depois latia e, se o mentiroso insistisse, avançava ameaçador, provocando mais risos do que medo.
O Inglês, invariavelmente, intervinha, desmobilizando o grupo e pedindo calma, sempre em inglês, claro, que ele não falava outra língua, muito menos a dos locais, que não falavam nem uma palavra de inglês, mas gostavam da sonoridade da coisa. Os de Claraboia não se incomodavam com esses pormenores. O Inglês tinha bochechas largas e vermelhas, coisa que só os bons homens têm, e aceitava fiado, o que dava uma ajuda. O fiado na vila era um hábito, coisa normal em lugares onde não se usa dinheiro.
Tudo era negociado na base do escambo. Uma galinha valia um metro de tecido do bom, de seda para cima. Os panos menos nobres iam na métrica dos ovos. Uma cerveja poderia valer um tomate, dependia da estação do ano. Nada era muito bem calculado. A matemática não era o forte do lugar. Todos tinham os seus bichos e as suas hortas. Fora os peixes que serviam para desempatar. Sabiam pescar e, embora não vivessem disso, de vez em quando dava jeito ter umas tainhas para o troco. O que não fosse da terra e do mar, vinha no sucateado Chevrolet do Dr. Paco, único médico da vila. Corno não tinha clientes, pois lá ninguém adoecia, vivia de fazer viagens ao outro lado da ilha, trazendo coisas e novidades. Os de Claraboia não gostavam de jornais, rádio e televisão. Preferiam contar e ouvir histórias. O que encantava as poucas, mas barulhentas, crianças. O número de infantes em Claraboia nunca mudava: cinco miúdos e três raparigas. Os miúdos, morenos. As raparigas, loiras. Sempre eram filhos únicos, logo quando cresciam, casavam entre si. Contas feitas, sobravam dois rapazes. Um tornava-se poeta. O outro enlouquecia. Ciclo prestes a se fechar outra vez, pois havia uma geração de jovens com idade suficiente para o amor, a poesia e a loucura. Sabendo da aritmética do lugar, eram feitas apostas secretas entre os adultos sobre qual seria o futuro de cada pequeno. Quem costumava acertar era a mulher do padeiro, Flora, a falsa oráculo da vila, que via o que não existia, através dos seus olhinhos apertados, filha que era de uma cigana andaluz com um samurai nipónico.
Flora lia as cartas todas as sextas, ao fim do dia. Raramente dizia algo que não se soubesse, em Claraboia todos sabiam da vida de todos.
Foi numa dessas sessões de cartomancia que Flora previu a chegada do Rapaz das Fotografias Eternas. Ele ainda não tinha nome, que mais tarde se saberia ser Pedro. Mas tinha, nas imagens descritas por Flora, o sorriso aberto, o coração grande e um triste segredo. Pedro, ou melhor, O Rapaz das Fotografias Eternas chegaria na manhã seguinte e era bonito e falador. Mas as cartas diziam outras coisas: naquele sábado, em Clara boia, alguém iria apaixonar-se, alguém iria enlouquecer, alguém iria morrer e alguém ressuscitaria. Assustada com as próprias palavras, Flora emudeceu. Era a primeira vez que estava a ter realmente uma visão, partindo do princípio que uma visão pode ser real. Desorientada, expulsou as visitas de casa e trancou-se. Não queria ser apanhada por alguma das suas profecias. Que eram todas verdade. Como em breve se verificaria.

MÚSICA

A espantosa realidade das coisas
E a minha descoberta de rodos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quando isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei-de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada,
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

MÚSICA

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimente demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio,
Pagã triste e com flores no regaço.

MÚSICA

Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa
Aquele homem mal vestido, pedinte por profissão que se lhe vê na cara,
Que simpatiza comigo e eu simpatizo com ele;
E reciprocamente, num gesto largo, transbordante, dei-lhe tudo quanto tinha
(Excepto, naturalmente, o que estava na algibeira onde trago mais dinheiro:
Não sou parvo nem romancista russo, aplicado,
E romantismo, sim, mas devagar. .. ),

Sinto uma simpatia por essa gente toda,
Sobretudo quando não merece simpatia.
Sim, eu sou também vadio e pedinte,
E sou-o também por minha culpa.
Ser vadio e pedinte não é ser vadio e pedinte:
E estar ao lado da escala social,
É não ser adaptável às normas da vida,
As normas reais ou sentimentais da vida -
Não ser juiz do Supremo, empregado certo. prostituta,
Não ser pobre a valer, operário explorado,
Não ser doente de uma doença incurável,
Não ser sedento da justiça ou capitão de cavalaria,
Não ser, enfim, aquelas pessoas sociais dos novelistas
Que se fartam de letras porque têm razão para chorar lágrimas,
E se revoltam contra a vida social porque têm razão para isso supor.

Não: tudo menos ter razão!
Tudo menos importar-me com a humanidade!
Tudo menos ceder ao humanitarismo!
De que serve uma sensação se há uma razão exterior para ela?

Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,
Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:
E ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,
E ter pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte.

Tudo mais é estúpido como um Dostoievski ou um Gorki.
Tudo mais é ter fome ou não ter que vestir.
E, mesmo que isso aconteça, isso acontece a tanta gente
Que nem vale a pena ter pena da gente a quem isso acontece.

Sou vadio e pedinte a valer, isto é, no sentido translato,
E estou-me rebolando numa grande caridade por mim.

Coitado do Álvaro de Campos!
Tão isolado na vida! Tão deprimido nas sensações!
Coitado dele, enfiado na poltrona da sua melancolia!
Coitado dele, que com lágrimas (autênticas) nos olhos,
Deu hoje, num gesto largo, liberal e moscovita,
Tudo quanto tinha, na algibeira em que tinha pouco, àquele
Pobre que não era pobre, que tinha olhos tristes por profissão.

Coitado do Álvaro de Campos, com quem ninguém se importa!
Coitado dele que tem tanta, pena de si mesmo!

E, sim, coitado dele!
Mais coitado dele que de muitos que são vadios e vadiam,
Que são pedintes e pedem,
Porque a alma humana é um abismo.

Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro da minha alma!
Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.

Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.
Não me queiram converter a convicção: sou lúcido.

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.

MÚSICA

Ouvimos o “Palavras de Ouro” 152 onde se comemora o 5º aniversário do Estúdio Raposa que nasceu no dia 6 de Julho de 2005. Cinco anos a transformar em som algumas das palavras de ouro da nossa língua.

INDICATIVO