Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 147
Camilo Castelo Branco

 

INDICATIVO

Vamos hoje ouvir uma pequena nota biográfica de Camilo Castelo Branco e as primeiras páginas de uma das suas obras mais conhecidas: Eusébio Macário.

MÚSICA

Camilo Castelo Branco, nasceu em Lisboa, no Largo do Carmo, a 16 de Março de 1825. Teve uma vida atribulada, passional e impulsiva. Uma vida tipicamente romântica que terminou em suicídio.
Na sua adolescência formou-se lendo os clássicos portugueses e latinos, literatura eclesiástica e em contacto com a vida ao ar livre transmontana.
Com apenas dezasseis anos (1841), Camilo casa com Joaquina Pereira de França e instala-se em Friúme (Ribeira de Pena). O casamento precoce parece ter sido resultado de uma mera paixão juvenil, não tendo resistido muito tempo. No ano seguinte prepara-se para ingressar na Universidade, indo estudar com o Padre Manuel da Lixa, em Granja Velha.
O seu caráter instável e irrequieto leva-o a relações tumultuosos como as que teve com Patrícia Emília e a freira Isabel Cândida.
Camilo tenta o curso de Medicina no Porto que não conclui, optando depois por Direito. A partir de 1848 faz uma vida de boémia repleta de paixões, repartindo o seu tempo entre os cafés e os salões burgueses, dedicando-se entretanto ao jornalismo.

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Apaixona-se por Ana Plácido, e quando esta se casa com outro, tem, de 1850 a 52, uma crise de misticismo, chegando a frequentar o seminário que depois abandona.
Ana Plácido tornara-se mulher de um negociante de seu nome, Pinheiro Alves, um Brasileiro que o inspira como personagem em algumas das suas novelas, muitas vezes com caráter depreciativo. Seduz e rapta Ana Plácido e, depois de algum tempo a monte, são capturados pelas autoridades e depois julgados.
Naquela época o caso emocionou a opinião pública pelo seu conteúdo tipicamente romântico do amor contrariado, que se ergue à revelia das convenções e imposições sociais. Presos na cadeia da relação do Porto, escreveu Memórias do Cárcere, tendo conhecido o famoso delinquente Zé do Telhado. Depois de absolvidos do crime de adultério, Camilo e Ana Plácido passam a viver juntos, contando ele trinta e oito anos de idade.
Quando o ex-marido de Ana Plácido, morre o casal vai viver para a sua casa, em São Miguel de Sedie.
Entretanto, Ana Plácido tem um filho, teoricamente do seu antigo marido, ao que se somam mais dois de Camilo. Com uma família tão numerosa para sustentar Camilo vai escrever a um ritmo alucinante.

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Em 1885 é-lhe concedido o título de visconde de Correia Botelho e posteriormente, a 9 de Março de 1888 casa-se finalmente com Ana Plácido.
Camilo passa os últimos anos da sua vida ao lado de Ana Plácido, mas não encontrando a estabilidade emocional por que ansiava. As dificuldades financeiras, e os filhos dão-lhe enormes preocupações: considera Nuno irresponsável e Jorge sofre de uma doença mental.
A progressiva e crescente cegueira (causada pela sífilis), impede Camilo de ler e de trabalhar capazmente, o que o mergulha num enorme desespero.
Camilo Castelo Branco, depois da consulta a um oftalmologista que lhe confirma a gravidade do seu estado, em desespero desfere um tiro de revólver na têmpora direita, às 15h15 de 1 de Junho de 1890, acabando por morrer às 17h00 desse mesmo dia deixando uma enorme obra escrita num Português cristalino.

MÚSICA

Vamos ouvir as primeiras páginas do seu romance “Eusébio Macário.

MÚSICA

Havia na botica um relógio de parede, nacional, datado em 1781, feito de grandes toros de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor de um picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda como quem tira um balde da cisterna. Por debaixo da triplicada cornija do mostrador havia uma medalha com uma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada, com uma romeira e uma pescoceira crassa e grossa de vaca barrosã, penteada à Pompadour, com uma réstia de pedras brancas a enastrar-lhe as tranças. Cada olho era maior que a boca, de um vermelho de ginja. Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto, com um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas. Este relógio badalara três horas que soaram ríspidas como as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da Hécate de Shakespeare.
O farmacêutico Eusébio Macário sentara-se espapado, com as carnes desfalecidas, à porta, num largo mocho de cerdeira com assento de junco roto, espipado, com uns esbeiçamentos de palhiça muito amarelada do atrito. Havia grande calor enervante. O sol punha nas paredes clareiras faiscantes, cruas. Moscas zumbiam com asas lampejantes em giros idiotas; gatos agachados como velhos sicários pinchavam com muitas perfídias à caça dos pássaros nas densas verduras desbotadas dos arvoredos; carros chiavam nas terras baixas, barrentas, com grandes gretas de calcinações do grande Sol; os lentos bois nostálgicos vergastavam com as
caudas ásperas os mos cardos que os atacavam de entre os tapumes com grandes sedes impetuosas de frescores de sangue. Havia molezas e estonteamentos abafadiços no ar cheio de sensualidades mordentes. Lavandiscas esvoaçavam nas ourelas húmidas dos regatos, muito garbosas, com pipilações joviais; besouros azuis de tons metálicos luzentes rodopiavam em volteios curtos e muito sonoros; pardais abandados infestavam as painçadas, dando pios hilariantes de bandidos canalhas; cerejas bicais vermelhavam as suas provocações sorridentes como beiços rubros de mulheres vitalizadas de lascívias aquecidas de bom sangue; pêssegos abeberados de sucos doces penujavam; varas de porcos com grunhidos regalados esfoçavam nas esterqueiras, banhando-se com grandes espalhafatos como odaliscas epilépticas de volúpias escandecidas; raparigas esguedelhadas, de narizes arrebitados, com as caras fuliginosas de suor e poeira, muito escaneladas, com olhos espantadiços, de secreções amarelas, saias de estopa suja, frangalhona, a trapejar nos canelos esburgados, guardavam bácoros, e davam gritos de um timbre muito agudo que punham ecos nas colinas batidas do largo sol; galinhas cacarejavam; galos de cristas escarlates e recortadas, arrastavam a asa com arremetidas parlapatonas de sultões. A Natureza estava cheia de mistérios amorosos e de uma grande espiritualização sensual.
Eusébio Macário ofegava, enxugava com o lenço de Alcobaça, pulverulento de meio-grosso em pastas esmoncadas, as roscas do pescoço que porejavam as exsudações da carne opilada de um farto jantar. Ele tinha feito anos neste dia e enchera-se de capão com arroz açafroado e de muito vinho de Amarante, com muita aletria engrossada de ovos e letras de canela.
- Que não queria saber de histórias - pensava -; que a vida eram dois dias; quem cá ficasse que o ganhasse.
E dava arrotos muito cheios de gases e estrondos.
A filha, a Custódia, era uma rapariga pimpona, de muito seio e braços grossos, roliços, com pregas de carnação mole nos cotovelos e uma penugem de frutas mimosas que lhe punha umas tonalidades cupidíneas, irritantes. Ela andava cheia de desejos animais; queria feiras e romarias com bailados de saracoteios desnalgados, pelintras; pedia socas de ponteira de verniz marchetadas de amarelo, com palmilhas de um escarlate de carne viva, e casibeques sarapantões de listras rubras e amarelas; lavava as pernas, brancas como pedaços de marfim polido das velhas imagens e maciezas cetinosas, nos riachos, com grande desfaçatez e presunção; boleava-se num quebrar de quadris reles de servilheta; tinha cheiros de mulher suspeita com grandes lampejos crus de óleo de amêndoas doces nos cabelos em bandós e muitos ardores.
- Que queria a bela pândega - dizia -; que estava na flor da mocidade. Pudera! que a sua mãe não fazia outra. Pois não fizeste! que o gozar era agora; que depois de velha, contas e borracha. - E escancarava umas risadas vibrantes, sandias, sapateando com as mãos cheias de missangas, e fazendo trejeitos brejeiros, garotices, dando palmadas sonoras no ventre. Tal era ela.
O filho de Macário, o José Fístula, era caçador e fadista de tavernas sertanejas. Tinha andado para padre, e esbanjara a herança materna em Braga, em orgias de frigideiras e na boémia das Travessas, onde mulheres de saias engomadas que rugem, esfervilham, de penteados altos, untados, com muita caspa e fitas azuis, arrastam chinelos de ligas, com os calcanhares de fora a esbeiçarem, com clavículas esqueléticas mordidas das herpes e dos vampiros das noites vinolentas, cheias de delírios devassos e indigestões de iscas de cebolada. Ele tornara para o pai com grande humildade faminta, de lázaro maltrapilho, com a camisa roída de imundície e a cara chupada de deboches e bebedeiras.
- Que se faria ladrão de estrada - ameaçava - se o pai
o não sustentasse; que estava pronto a labutar na botica, pisando drogas no almofariz, e iria às ervas para os xaropes, que as conhecia muito bem. Pois não conhecia? Havia de ler a Farmacopeia do doutor Pereira Reis, e até - resumia - tinha tineta para boticário.
E o pai:
- Pra burro, pra burro é que a tens! - resmungava apopléctico de cóleras, crescendo para ele, inflamado como um vulcão explosivo, com a cara biliosa, e muitas palavras de abominação e trejeitos de pai turbulento de comédia palhaça.
Depois, o Fístula portou-se bem, laborioso, inteligente. Ia à colheita das ervas na estação própria, e fazia manipulações, aviava receitas com limpeza, assobiando fados cheios de saudades das Travessas e dos seus condiscípulos malandros. Conhecia as flores do urgebão, em espigas filiformes, roxas, de sabor amargo, boas para cataplasmas com gemas de ovos nas intumecências do fígado; as urtigas, sedosas, cheias de tubérculos que espirram à epiderme um líquido cáustico, e que bem espremidas dão um suco muito medicinal na brotoeja; a alfavaca sudorífera; a arruda, muito oleosa, de um odor acre, muito usada em infusão pelas mulheres opiladas, amarelas, congestionadas, histéricas, com grande peso nas virilhas e zumbidos nas orelhas; a parietária vermelha, empubescida, acre, nitrosa, muito diurética; a malva emoliente, estimável em gargarejos e clisteres e nos semicúpios refrigerantes; o verbasco que frutifica umas cápsulas biloculares muito peitorais; a bardana dos monturos, de raiz fusiforme, tónica, sudorífera, antídoto das herpes;
a salva, de flor violácea, aromática, muito provada nas esquinências, gargarejada com um golpe de mel; os grãos do funcho estriados, cilíndricos, famosos nas cólicas; a erva-cidreira, de aroma citrino, excitante, digestiva e antiespasmódica; a erva-moura que é narcótica; a hortelã vermelha, eficaz contra o reumatismo e nos narizes tapados por fluxões crassas; a mostarda, sinapis nigra, a do sinapismo, o divino sinapismo derivativo, revulsivo, que puxa às pernas o morbo do cérebro, dos olhos, da garganta; as bagas dos murtinhos para lavagem das impigens, cozidas e feitas em pó, muito antipútridas, contra chagas canceradas, crónicas; a tília para os chás das velhas que impam e arrotam com grandes borborigmos de gases, e dizem que têm flato. Conhecia todas as ervas e arbustos que secavam em tabuleiros na eira. E os porcos às vezes foçavam nas ervas e raízes, misturando-as; mas ele com o fino sentimento moderno ecléctico em terapêutica, colhia do sequeiro as plantas às manadas e atirava com elas às gavetas que tinham rótulos grudados, fonéticos em ortografia. Ele também manipulava o unguento de basilicão, derretendo o pez no azeite e na cera; e, quando o mexia no gral, zangava-se, dando ao diabo a farmácia, ou cantava fados com um grande azedume mefistofélico. Fazia ceroto de espermacete, com que se curam os cáusticos e as queimaduras; e o unguento de Genoveva e o da Madre Tecla, muito bom para amadurecer abcessos com o seu litargírio, e sebo de carneiro; não lhe punha a manteiga da fórmula porque preferia comê-la com pão trigo. Havia grande provisão em potes de unguento da Madre Tecla, receita que lhe ensinara o brasileiro da Casa Grande, muito atreito a furúnculos nas costas e na região sob e sobre; tinha de sua lavra muitos frascos de pomada mercurial de que ele gastava um terço no seu consumo próprio pessoal; enquanto o pai e o abade, inveterados nas hemorróidas, lhe gastavam em breves prazos o unguento de populeão em unturas, de cócoras, José Macário, o Fístula, trabalhava, regenerava-se.

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Acabámos de ouvir o Palavras de Ouro 147 com as primeiras páginas do romance de Camilo Castelo Branco, “Eusébio Macário”
Até ao próximo programa.

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