Estúdio Raposa

Palavras de Ouro 146
Uma lenda e uma canção

 

  • INDICATIVO

    Retomo neste programa uma tradição que foi muito apreciada pelos ouvintes do Estúdio Raposa: a leitura de lendas. Escutaremos uma lenda judia. Depois, vamos ouvir a história de uma famosa canção saída do baú de memórias de Maria Odete Coutinho

    MÚSICA

    A lenda que vamos ouvir faz parte da compilação de lendas judaicas recolhidas das fontes originais do midrash, particularmente do Talmude, pelo especialista lituano Louis Ginsberg (1873-1953) e intitula-se a “Punição de Caim”. A tradução é de Paulo Barbo. Esta lenda ganha oportunidade pelo facto do recente livro “Caim” de José Saramago ter levantado uma interessante polémica entre o autor e os defensores da Bíblia.

    MÚSICA

    A morte de Abel foi a mais cruenta possível. Sem saber qual ferimento seria fatal, Caim foi atirando pedras sobre todas as partes do seu corpo, até que uma atingiu-o no pescoço e infligiu a morte.
    Depois de cometer o assassinato Caim resolveu fugir, dizendo a si mesmo:
    – Meus pais exigirão de mim satisfação a respeito de Abel, pois não há outro ser humano sobre a terra.
    Ele havia acabado de refletir dessa forma quando Deus lhe apareceu, e dirigiu-se a ele com as seguintes palavras:
    – Dos seus pais você pode fugir, mas pode também fugir da minha presença? Pode alguém se esconder num lugar tão secreto que eu não possa vê-lo? Pobre de Abel por ter demonstrado misericórdia de ti, e por não tê-lo matado quando podia. Pobre dele por ter dado a ti a oportunidade de matá-lo.
    Quando Deus lhe perguntou “Onde está seu irmão Abel?”, Caim respondeu:
    – Sou por acaso o guardião do meu irmão? É o senhor que vigia todas as criaturas, e pede satisfação de mim? É verdade, eu o matei, mas foi o senhor quem criou em mim a inclinação para o mal. O senhor guarda todas as coisas, por que permitiu que eu o matasse? Foi o senhor quem o matou, pois se tivesse olhado favoravelmente para a minha oferta, como fez com a dele, eu não teria tido razão para invejá-lo, e não o teria matado.
    Porém Deus disse:
    – O sangue do seu irmão, brotando de seus muitos ferimentos, clama contra ti, e também o sangue de todos os justos que poderiam ter sido gerados dos lombos de Abel. A alma de Abel também denunciou o assassino, pois não pôde encontrar descanso em lugar algum; não pôde subir ao céu, nem habitar na sepultura com seu corpo, pois nenhuma alma humana havia feito qualquer das duas coisas antes.
    Apesar disso Caim recusou-se a confessar a sua culpa. Ele insistiu que nunca tinha visto um homem morrer; como poderia saber que atirar pedras em Abel acabaria causando a sua morte?
    Então, por causa de Caim, Deus amaldiçoou o solo, para que não produzisse fruto para ele. Com um único castigo Caim e a terra foram punidos, a terra por ter abrigado o cadáver de Abel ao invés de deixá-lo acima do chão. Na dureza do seu coração, Caim disse:
    – Ó, Senhor do mundo! Há por acaso informantes que denunciem os homens diante do senhor? Meus pais são os únicos seres humanos vivos, e eles nada sabiam do que fiz. O senhor habita o céu, como poderia ficar sabendo das coisas que acontecem na terra?
    Deus respondeu:
    – Tolo! Eu sustento o mundo inteiro. Eu o fiz, eu o suportarei.
    Essa resposta deu a Caim a oportunidade de fingir arrependimento.
    – O senhor suporta o mundo inteiro – disse ele – e meu pecado não pode suportar? É verdade, o meu pecado é grande demais para ser suportado. Mas foi apenas ontem que o senhor baniu meu pai da sua presença, e hoje está banindo a mim. Logo será dito, de facto, que a missão do senhor é banir.
    Embora isso não passasse de dissimulação, e não verdadeiro arrependimento, Deus concedeu perdão a Caim, e removeu metade do castigo. Originalmente o decreto condenava-o a ser fugitivo e errante sobre a terra. Agora ele não precisava mais de vagar eternamente, mas deveria permanecer fugitivo. E ser obrigado a suportá-lo foi difícil o bastante, pois a terra tremeu sob Caim, e todos os animais, selvagens e domésticos, entre eles a amaldiçoada serpente, reuniram-se, planeando devorá-lo a fim de vingar o sangue inocente de Abel. Finalmente Caim não foi mais capaz de suportar, e rompendo em lágrimas, exclamou:
    – Para onde me ausentarei do seu Espírito? Para onde fugirei da sua face?
    A fim de protegê-lo do massacre das feras, Deus gravou na testa de Caim uma letra do seu nome santo, e disse além disso aos animais:
    – A punição de Caim não será como a punição dos futuros assassinos. Ele derramou sangue, mas ninguém havia para dar-lhe instrução. De agora em diante, portanto, quem matar será morto. Deus então deu-lhe o cachorro como proteção contra as feras selvagens e, a fim de marcá-lo como pecador, afligiu-lhe com lepra.
  • O arrependimento de Caim, mesmo sendo insincero, produziu resultados bons. Quando Adão o encontrou e perguntou que condenação havia sido decretada contra ele, Caim contou como seu arrependimento aplacara a ira de Deus, e Adão exclamou:
    – Tão poderoso é o arrependimento, e eu não o sabia!
    Por essa razão ele compôs um hino de louvor a Deus, que começava com as seguintes palavras: “Boa coisa é confessar seus pecados ao Senhor!”
    O crime cometido por Caim teve consequências perniciosas não apenas para ele mesmo, mas também para toda a natureza. Antes os frutos que a terra produzia quando ele arava o solo tinham o sabor das frutas do Paraíso. Agora seu trabalho nada produzia além de espinhos e abrolhos. O solo alterou-se e deteriorou-se no exato instante do fim violento de Abel. Na parte da terra onde a vítima vivia, por tristeza pela sua perda, as árvores e as plantas recusaram-se a dar seus frutos. Foi só com o nascimento de Sete que as plantas que cresciam na porção de terra que pertencia a Abel começaram a florescer e produzir novamente. Elas porém nunca recuperaram seus poderes anteriores. Antes a videira produzia novecentas e vinte e seis variedades diferentes de frutos, agora produzia apenas uma. O mesmo aconteceu com todas outras espécies; apenas no mundo que há de vir elas recuperarão seus poderes originais. A natureza também foi modificada pelo sepultamento do corpo de Abel. Por um longo tempo ele jazeu exposto, porque Adão e Eva não sabiam o que fazer com ele. Sentados ao lado dele eles choravam, enquanto o fiel cão de Abel vigiava para que não lhe fizessem mal nenhum pássaro ou animal selvagem. Certa ocasião, em meio ao seu lamento, os pais observaram um corvo raspando a superfície do solo em determinado lugar, e em seguida enterrando ali um pássaro morto de sua própria espécie. Adão, seguindo o exemplo do corvo, enterrou o corpo de Abel, e o corvo foi recompensado por Deus.
    Seus filhotes nascem com penas brancas, pelo que os pássaros mais velhos os abandonam, não os reconhecendo como sua própria prole, mas tomando-os por serpentes. Porém Deus os alimenta até que a sua plumagem se torna negra, e os pais retornam a eles. Como recompensa adicional, Deus concede o seu pedido, quando os corvos pedem chuva.

    MÚSICA

    “Canção do Mar” é uma das composições portuguesas mais conhecidas no mundo graças sobretudo às interpretações que dela fizeram Amália Rodrigues e mais recentemente, Dulce Pontes. Outras cantoras a divulgaram pelo mundo, nomeadamente Sarah Brightman e Helena Segara. Porém, a “Canção do Mar” nasceu por volta por volta dos finais dos anos quarenta com a voz de Maria Odete Coutinho.

    MÚSICA

    Maria Odete Coutinho fez parte do famoso Coro Feminino da Emissora Nacional, onde estavam também, nomes como Maria Fernanda, Ester de Abreu e Maria de Lourdes Resende. Aliás, todas as cantoras do Coro Feminino tinham a sua carreira a solo. Maria Odete Coutinho, destacou-se no famoso espetáculo de Igrejas Caeiro, “Os Companheiros da Alegria”, onde, aliás, a canção foi estreada. Vamos então ouvir como Maria Odete Coutinho recorda o nascimento da “Canção do Mar” numa entrevista ao programa “A Minha Amiga Rádio” da RDP.

    RM
    (Depoimento de Maria Odete Coutinho)


    Chegou agora o momento de ouvir numa gravação em disco de acetato de 78 rotações e recuperada pelo Estúdio Raposa, vamos ouvir, dizia, a primeira interpretação da “Canção do Mar” cantada por Maria Odete Coutinho. Chamo a vossa atenção para o excelente solo de Guitarra de Carlos Meneses.

    CANÇÃO

    Ainda mais uma canção de Maria Odete Coutinho gravada no glorioso tempo dos discos de acetato ouvidos numa grafonola com uma agulha de aço.
    Ouvimos, no programa de hoje, uma lenda judia, a lenda de Caim e a origem da conhecida “Canção do Mar” nas palavras da sua criadora, Maria Odete Coutinho. Aproveito para agradecer à Teresa Cunha, filha de Maria Odete Coutinho por me ter disponibilizado o material sonoro que tive o privilegio de transmitir. Aproveito, ainda, o momento, para informar que a Teresa Cunha acaba de publicar o seu primeiro livro intitulado “Por tentativa e erro”, editado pela Chiado Editora.

    MÚSICA

    Dois dedos de conversa

    INDICATIVO

    Como deve ser já do conhecimento de muitos ouvintes, o programa “Lugar aos Outros” fechou portas. Aproveito a oportunidade para repetir os meu pedido de desculpa aos muitos autores que haviam proposto os seus trabalhos e que aguardavam a oportunidade de serem ouvidos. Foram transmitidos, até agora 109 programas e perto de duas centenas de autores. Ainda serão escutados mais três, o 110 o 111 e o 112, respetivamente com trabalhos de Agnelo Morgado, João de Sousa Teixeira e Miguel Santos Teixeira.
    Esta suspensão do “Lugar aos Outros” vai dar lugar a novos projetos de que darei notícia em momento oportuno. Posso, porém, desde já adiantas que têm a ver com um novo áudio livro e a introdução de nova categoria dedicada à poesia em imagens.
    Até ao próximo programa.

    INDICATIVO