Sebastião da Gama
OBRA


Elegia para uma gaivota

Morreu no mar a gaivota mais esbelta,
a que morava mais alto e trespassava
de claridade as nuvens mais escuras com os olhos.

Flutuam quietas, sobre as águas, suas asas.
Água salgada, benta de tantas mortes angustiosas, aspergiu-a.
E três pás de ar pesado para sempre as viagens lhe vedaram.

Eis que deixou de ser sonho apenas sonhado. É finalmente sonho puro,
sonho que sonha finalmente, asa que dorme voos.

Cantos de pescadores, embalai-a! Versos dos poetas, embalai-a!
Brisas, peixes, marés, rumor das velas, embalai-a!

Há na manhã um gosto vago e doce de elegia, tão misteriosamente, tão insistentemente,
sua presença morta em tudo se anuncia.

Ela vai, sereninha e muito branca.
E a sua morte simples e suavíssima
é a ordem-do-dia na praia e no mar alto.


Elegia para a aminha campa

Agora, só,
que é o meu corpo terra confundida
na terra desta Serra minha Mãe;
agora, só,
a minha voz que sempre cantou mal
ao Céu se eleva...
Agora, só,
que no ventre da Serra minha Mãe repousa
meu corpo de Poeta,
de Poeta mudo em vida, por ausente
do ventre maternal os nove meses;
agora, só, claríssima se eleva
a minha voz-louvor,
a minha voz-carícia a minha Mãe,
ao Céu...
Agora, só,
que os meus lábios são terra de onde nascem
as moitas de folhado e de alecrim,
a minha voz saudosa de cantar
se elevará
até aonde o Céu tem cor e fim.
Se elevará a minha voz, perfume
desprendido, suavíssimo, dos matos
que surgiram de mim...

Agora, só,
que sou terra na terra misturada,
que a minha voz é voz de rosmaninho, eu poderei tratar por tu
a meu Irmão Frei Agostinho... Agora, só, a meu Irmão,
que comigo nasceu naquele Dia
em que ao Céu se entregou,
ébria de Sol e Maresia,
nossa Mãe Serra...


Companheira

Não te busquei, não te pedi: vieste.
E desde que eu nasci houve mil coisas
que a meus olhos se deram com igual
simplicidade: o Sol, a manhã de hoje,
essa flor que é tão grácil que a não quero, o milagre das fontes pelo Estio ...
Vieste (O Sol veio também, a flor,
a manhã de hoje, as águas ... ). Alegria,
mas calada alegria, mas serena,
entendimento puro, natural
encontro, natural como a chegada
do Sol, da flor, das águas, da manhã,
de ti, que eu não buscara nem pedira.
E o Amor? E o Amor? E o Amor?
-: Vieste.


Apareces tão pouco

A pareces tão pouco nos meus sonhos
que quando os sonho chego a ter saudades tuas.

E entretanto tu és ainda a mesma continuas
a pôr cravos e rosas ao pé do meu retrato,
a idealizar uma casa ao rés das ondas
(mal pensas nela, riem nos teus ouvidos nossos filhos)
e a fazer da Vida precisamente a ideia
que fizeste de mim desde a primeira hora.

Era assim, boa e simples, que antigamente chegavas aos meus [sonhos.
E como eu, pela minha, calculava a tua pressa,
fazia-te chegar rosada e ofegante, exausta de correr da tua porta à porta da minha fantasia.

O tempo era o das flores ...
E tu colheras uma no caminho e vinhas dá-la
ao maior e melhor de todos os poetas.
Eu fingia fingir acreditar no que de mim julgavas,
e era já acordado que beijava as tuas mãos,
pois desceras comigo do sonho e à minha volta
o estremecer alegre e o perfume suavíssimo do ar
e um silêncio igualzinho ao que se faz quando te calas
eram tua presença verdadeira ...
Por que não vens agora?
Todo o tempo é o tempo das flores, para os poetas ...
E tu pensas de mim o que pensaste sempre
e bordas nos lençóis as nossas iniciais.
Por que não vens?
Chegarias ainda rosada e ofegante.
Não virias molhar de lágrimas meus sonhos,
porque não sabes nada ... Nem sequer
que até esqueci a cor e o corte do vestido
que tu estreaste (há quantas Primaveras?)
no último sonho em que sonhei contigo ...


Quando eu nasci
ficou tudo como estava.
 
Nem homens cortaram veias,
nem o sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
 
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
 
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
 
Pra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha mãe...



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